Existe um prólogo estranho
em Tudo Sobre Minha Mãe: nele, sabemos
tudo o que acontecerá no filme, temos do filme
todas as primeiras pistas para construí-lo na
nossa cabeça antes que realmente vejamos a confirmação
na tela. Temos de primeira uma dica: All About Eve,
o filme de Joseph L. Mankiewicz, que passa na televisão;
depois, a silhueta de Manuela (magnificamente interpretada
por Cecilia Roth) em frente ao enorme rosto da atriz
Huma (Marisa Paredes), que nos indica que Huma exercerá
um papel enorme na vida de Manuela; Huma interpreta
Um Bonde Chamado Desejo, peça de Tennessee
Williams, que Manuela vai ver com seu filho Estéban:
saberemos que o filme irá emular a peça;
vemos, por um descuido, Estéban atravessar na
rua e esbarrar num carro que freia rapidamente: saberemos
que, por uma grande paixão, ele morrerá
atropelado; no começo do filme, Manuela representa
uma encenação em que ela faz uma mãe
que tem que doar os órgãos de seu filho
morto: não há dúvidas de que isso
ocorrerá durante o filme. Todo o poder de narrativa
de Padro Almodóvar pode ser encontrado nesse
começo de filme, nessa pequena tragédia
de amor materno que acaba com a morte do jovem Estéban.
Almodóvar cria uma rede de referências
impressionante, juntando A Malvada, Um Bonde
Chamado Desejo e Noite de Estréia,
de John Cassavetes. Mas quem imagina que toda essa mestria
narrativa servirá para fazer um filma asseptizado,
como nos filmes recentes de um Peter Greenaway, em que
a função referencial é o propulsor
do filme, está redondamente enganado. Se Almodóvar
tem compulsão a citar, é mais por amor
de suas vivências de cinema do que por virtuosismo.
Todo o alardeado "pós-modernismo"
de Pedro Almodóvar não diz respeito a
outra coisa: sua agilidade em citar, em criar metanarrativas
para comentar seu próprio filme. Mas se formos
retomar a divisão de Jakobson das funções
da linguagem, a função metalingüística,
função privilegiada por todos os teóricos
formalistas do século XX e por escritores que
vão de Joyce e Faulkner a Burroughs e Pynchon,
não desempenha em Almodóvar um papel preponderante.
Ao contrário, ela está em seus filmes
explicitamente para se submeter à grande função
almodovariana, a função emotiva. O estudante
aprende na escola o que é a função
emotiva: é aquela que apresenta a maior ênfase
no emissor, nos sentimentos que o emissor tem quando
transmite a sua mensagem. E o filme de Almodóvar,
se perfaz o percurso estético moderno (função
poética) e pós-moderno (metalinguagem),
é justamente para mostrar que a função
emotiva é muito mais transbordante e rica de
sentidos que as outras. Daí a submissão
da primeira parte de Tudo Sobre Minha Mãe
sobre a segunda: a primeira metade do filme é
inteligente, mescla e desmescla de discursos, de jogos
de linguagem (quando vemos o menino ser atropelado num
dia de chuva ao tentar receber um autógrafo de
sua atriz preferida, lembramos imediatamente de Noite
de Estréia, mas a graça da cena reside
principalmente na convergência de emoção
que as duas cenas desencadeiam); a segunda é
pura entrega à narrativa, completa agregação
da mensagem à tela. Talvez seja esse o desejo
profundo de Almodóvar: citar num primeiro momento
para que não estejamos mais, num segundo momento,
no cinema de Almodóvar, e sim no próprio
mecanismo do cinema, num mecanismo puro de emoções
onde pouco importa o autor, mas onde toda a atenção
deve ser dada ao desenrolar dos acontecimentos e da
vida dos personagens.
O desejo de cinema de Almodóvar,
principalmente de A Flor do Meu Segredo em diante,
chegando a Má Educação,
indica uma crescente profissão de fé na
lógica materna do autor de A Lei do Desejo:
nunca a culpabilização, nunca a pena (seja
de morte ou em vida, tanto faz). A lógica dos
personagens é a lógica da mãe,
a lógica que permite tudo de seus filhos: daí
não acharmos nenhum absurdo quando Lola, a travesti
que é responsável por grande parte das
desgraças de Tudo Sobre Minha Mãe,
é permitida colocar no colo um bebê (ou,
mais tarde, em Fale com Ela, um aborto ser praticado
como ressurreição por uma pessoa de nome
Benigno). Se num filme tão adorado por Almodóvar
como A Noite do Caçador (de Charles Laughton)
o horror está em ver o monstro (Robert Mitchum)
tentando chegar perto das crianças indefesas,
em Tudo Sobre Minha Mãe o monstro é
outro: é o preconceito e o orgulho da mãe
de Rosa, que atormenta a filha por ter decidido ser
freira, depois por ir viajar para El Salvador, depois
por trazer uma prostituta para a casa. Almodóvar
opõe tolerância a naturalidade ao falar
sobre seu filme: a tolerância envolve um elemento
moral de aceitação, mas com um fundo de
preconceito embutido; a naturalidade, ao contrário,
implica toda a positividade do ato humano, todo o aspecto
feminino da lógica de Almodóvar. A lógica
assume o papel do preconceito. A lógica, como
ato social da recognição dos valores estabelecidos,
assume como seu o que se lhe parece e como outro aquilo
que não se assemelha. O feminino da lógica
seria justamente aquela esfera onde entra tudo,
a esfera da naturalidade. Tudo Sobre Minha Mãe
é esse universo mítico onde o feminino
vence, onde não se trata mais de tolerância
burguesa, e sim de total aceitação materna.
A verdadeira liberdade seria a instância onde
o elemento da tolerância não mais entrasse;
onde se pudesse dizer sim a tudo, a todos os atos concretos
da vida.
Daí poder finalmente
florescer um universo próprio do amor em Almodóvar.
O amor é aquilo que pode ser partilhado numa
comunidade, num ambiente ideal de convivência.
Esse ambiente pode ser um quarto — lembre-se da bela
cena em que Cecilia Roth, Penelope Cruz, Marisa Paredes
e Antonia San Juan se encontram na casa de Manuela para
discutir assuntos sérios e tudo que vemos depois
são as moças conversando sobre as designações
de chupetas, boquetes e pirus —, mas pode também
ser um país: a linda fábula que é
Carne Trêmula ou a alfinetada à
prisão de um figurão espanhol em Todo
Sobre Mi Madre. O desejo de uma agremiação
que acolha o desejo é o reflexo da mais pura
beleza moral — e mais uma vez aqui eis o esforço
para incorporar a estética apenas como um ramo
da ética — do cinema de Pedro Almodóvar.
Quanto a isso, basta ver o itinerário de Manuela,
inicialmente emulado da peça de Tennessee Williams:
ela foge de casa, grávida tal qual a Estela do
Bonde..., para criar o filho longe do marido dominador.
Ela dá ao menino o nome do pai, Estéban
(o pai, antes da saída de Manuela, já
chama-se Lola, a travesti). Manuela cria o filho, e
consegue uma estável posição de
enfermeira. Depois da morte do filho, ela vai à
procura de Lola, mas o que ela encontra é uma
outra mulher que está grávida de Lola.
A mãe está doente com o vírus do
HIV e não se sabe se sobreviverá ao parto.
Resta viva apenas Manuela com a nova criança,
que mais uma vez se chamará Estéban. A
maternidade por via transversa, eis um tema intimamente
almodovariano, como também a noção
de autenticidade dada pela travesti Agrado: "Uma pessoa
é tanto mais autêntica quanto mais se parece
com aquilo que ela sempre sonhou para si mesma".
Ruy Gardnier
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