O CINEMA NÔMADE DE TONY GATLIF
Latcho Drom, Gadjo Dilo e Je suis né d’une cigogne

Latcho Drom, 1993, França
Gadjo Dilo, 1997, Romênia/França
Je suis né d’une cigogne, 1999, França

Nos planos iniciais de Gadjo Dilo, Stéphane (Romain Duris) caminha por estrada coberta de gelo. Ao chegar à encruzilhada, pára, olha para ambos os lados, senta-se, come. Finalmente, para escolher qual direção seguir, realiza estranha dança que, de forma aleatória, indica-lhe o sentido, o qual é aceito pela protagonista. Mais à frente, encontra-se com Izidor, velho cigano romeno, a quem pergunta sobre a cantora Nora Luca, que seu pai ouvia antes de falecer. Stéphane e Izidor não falam a língua um do outro, jamais se entendem ao longo do filme, mas, ainda assim, desenvolvem amizade sincera. Viagens, em que não importam nem a origem nem o destino, contatos e relacionamentos afetivos com desconhecidos, lembranças a serem exorcizadas permitindo o recomeço, minorias excluídas da representação dominante do cinema, privilégio dos sentidos e das sensações corporais: temas recorrentes no cinema nômade e libertário de Tony Gatlif, cujos Latcho Drom, Gadjo Dilo e Je suis né d’une cigogne, exibidos pelo TV5, confirmam a impressão positiva deixada por Exílios no Festival do Rio e na Mostra São Paulo de 2004.

Tony Gatlif nasceu na Argélia, em 10 de setembro de 1948. Filho de pais franceses, Michel Dahamani – seu nome verdadeiro – é descendente de ciganos romenos, povo sobre o qual pautou a maioria de seus 16 filmes (não apenas os dirige e os escreve, como também é responsável pela trilha musical). Embora, com Latcho Drom, tenha vencido a mostra Um Certain Regard, Gatlif obteve reconhecimento este ano com o polêmico prêmio de direção no Festival de Cannes, injustamente contestado pela imprensa internacional: as atenções exageradas ao tendencioso e inócuo Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, cegaram a crítica para a celebração da diversidade oferecida pelo cineasta franco-romeno-argelino-árabe-cigano no intenso e vital Exílios.

A multiplicidade étnica, social e cultural que caracteriza o próprio Gatlif está no cerne de Latcho Drom, Gadjo Dilo, Je suis né d’une cigogne e Exílios. Cinema-nômade, filmes de descobertas, personagens desenraizados: mesmo que Stéphane, em Gadjo Dilo, ou Zano (novamente Romain Duris), em Exílios, partam em busca do passado sentimental – o primeiro, da cantora favorita do pai; o segundo,da família argelina – negado pelas fraturas político-econômicas do território Europeu, tanto as históricas, herdadas do século XIX (as delimitações das fronteiras entre os países, a qual fez dos ciganos perpétuos estrangeiros), quanto as contemporâneas, fruto do processo de globalização (a imigração em massa das ex-colônias africanas, pobres, para as antigas metrópoles, ricas), as jornadas de ambos não representam mera nostalgia estéril do diretor, já que ao cineasta interessa o ato de procurar, ou seja, o evento em si, bem como os encontros – físicos, carnais, pele-a-pele – por ele suscitados. Para Gatlif, ao contrário, está em jogo o desapego a todas e quaisquer raízes que sirvam para aprisionar os homens, em favor da construção permanente de novas subjetividades, advindas do choque direto com o Outro, desconhecido, assustador e maravilhoso. Trata-se do personagem-mutante, sempre fora de si, um acontecimento antes de uma identidade, o qual compreende a superfície corpórea não como limite da estabilidade interior, e sim enquanto ferramenta de mergulho na instabilidade exterior: é Stéphane, em Gadjo Dilo, que quebra e depois enterra os cassetes de Nora Luca, sob o olhar contente e apaixonado da cigana Sabina (Rona Hartner), ou então Naima (Lubna Azabal), que convulsiona o próprio corpo, a fim de abandona-lo em definitivo, no impressionante clímax de Exílios.

Há, no cinema de Tony Gatlif, clara influência de Alain Tanner: as duas amigas que caem na estrada, no road movie que vai do nada a lugar algum de Messidor, em que se verifica a marginalização crescente das protagonistas, remetem ao casal de Exílios, que se auto-exilam para entender os párias sociais, verdadeiros exilados com quem travam contanto durante a viagem da França à Argélia. Je suis né d’une cigogne, porém, baseia-se explicitamente em Jean-Luc Godard, o qual é homenageado quando o desempregado Otto (o onipresente Romain Duris), cansado de vender sem sucesso jornal operário, anuncia pela rua "New York Herald Tribune", citando Acossado, ou quando o crítico de cinema carimba a palavra "Deus" na fotografia de Godard (o personagem nada escreve, apenas carimba frases feitas e chavões como "filme asiático de ação" ou "filme europeu de arte" nas fotos das obras assistidas). Como em Weekend à Francesa, tem-se o deslocamento enlouquecido e não-motivados dos protagonistas – além de Otto, Louna (Rona Hartner) e Ali (Ouassini Embarek) – pela França, rompendo no caminho os códigos de conduta e as leis estruturantes, tanto da sociedade, quanto do cinema. Desse modo, enquanto Otto larga a preocupação com o emprego e com a mãe gorda que vive à frente da TV, Louna maltrata de propósito os clientes do salão de beleza onde trabalha para ser demitida (conectando-se à personagem principal de A Salamandra, de Tanner) e Ali incendeia o carro do pai, o qual o obriga a "integrar-se" ao novo país, chamando-lhe agora de Michel (porque, segundo o patriarca, todos os franceses se chamam Michel, piada recorrente durante o filme). Juntos, eles roubam carros, assaltam lojas, invadem casas para almoçar, além de arranjarem tempo para auxiliar cegonha ferida, na realidade imigrante árabe de nome Mohammed que deixou a Argélia rumo à Alemanha.

Com Je suis né d’une cigogne, Gatlif revela fascinante ambigüidade quanto à imagem cinematográfica, pois, se a contesta, ao quebrar os mecanismos de montagem invisível do cinema clássico, como simples ilusionismo – os personagens conscientes da presença voyeurística da câmera, os jump cuts que suprimem os raccords de continuidade, animosidade de Otto com o narrador, o qual está fora da diegese do filme –, também a exalta, justamente pelo aspecto mágico que possui – a arma que Otto materializa entre um corte e outro, o desaparecimento de Louna da narrativa por insultar mestres tais quais John Ford e John Cassavetes –, em iconoclastia paródica que encontra paralelo na mulher que admite ser erro de continuidade em Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Coni Campos. Mas, a despeito do caráter festivo e carnavalesco, Je suis né d’une cigogne reflete como poucos (Os Galhos da Árvore, de Satyajit Ray, por exemplo) o término das ideologias e das crenças modernas que fundamentaram o pensamento contestatório do Ocidente, fim simbolizado no olhar perplexo de Ali (o qual atravessa o filme lendo e recitando Marx, Lênin e Che Guevara) para os livros rasgados e amontoados na biblioteca destruída: na era pós-moderna, quando tudo se problematiza para evitar o posicionamento contra as injustiças do mundo, a solução, proposta por Gatlif, é o renascimento através do contato humano, deste apoiar-se mútuo que aponta o sexo entre Otto e Louna no ninho da cegonha.

O nomadismo de Tony Gatlif, a postura de se transformar em estrangeiro a fim de se identificar com aqueles que não têm vez nas representações caricaturais do cinema homogeneizante – desempregados, árabes, ciganos, pobres, mulheres, idosos, imigrantes – alcança o ápice no extraordinário Latcho Drom, mistura de documentário e musical, em que o diretor faz da própria câmera personagem principal do filme, uma vez que é a sua presença que garante a existência (e a resistência) do povo e da cultura cigana para os espectadores. Assim como Exílios, Je suis né d’une cigogne e Gadjo Dilo, Latcho Drom assume a forma de viagem que, durante um ano, do verão ao outono e do inverno à primavera, acompanha diversos grupos nômades, desde a Índia até a Espanha, passando pela Turquia, Romênia, Hungria, República Tcheca, Alemanha e França, relembrando o massacre nazista que dizimou milhares de ciganos nos campos de concentração e finalmente denunciando/exorcizando os crimes e preconceitos sofridos ao longo dos séculos. Por intermédio de rituais coletivos – que valem não pela codificação que instituem, mas sim pelo reunir de pessoas a fim de compartilhar experiências individuais com a comunidade –, os quais se manifestam na música e na dança, Gatlif, com fé e alegria juvenis, acaba por celebrar a vida, que explode em cores, ritmos, movimentos e energia contagiantes. Em cinema, enfim.


Paulo Ricardo de Almeida