TIRESIA
Bertrand Bonello, Tiresia, França, 2003

Tanto é possível ver Tiresia com autonomia cinematográfica, descolado de sua origem e de suas outras representações, como se pode encará-lo como atualização do mito grego. Tirésias era um profeta de Tebas que ficou cego ao ver nudez de Atena. Sua figura é citada por Homero em A Odisséia, por Sofócles em Édipo Rei e especialmente por Ovídio em Metamorfose III, no qual é homem e mulher em momentos diferentes. Betrand Bonello, que diz ter realizado seu filme a partir do sonho de um amigo sobre um transexual com poderes de vidência, vai além do mito: parte dele para elaborar uma fabulação filosófica que, justamente por legitimar a tragédia clássica, questiona os valores contemporâneos mais caros. Bonello põe em xeque a construção da identidade individual, auto-construção, e retrata seus personagens presos à uma (des)ordem. Eles não fazem o que fazem porque querem, mas porque estão condenados a fazer e a querer. Podemos até ser o que desejamos ser, ao menos parcialmente, mas, segundo o cineasta, o que desejamos ser não cabe a nós decidir, pois esse desejo não seria opcional e sim determinado pela natureza. A modernidade do ser é posta no muro.

O questionamento da auto-construção pela imagem e pela palavra se dá pela própria condição de seu protagonista, um travesti que, ao perder a imagem de si próprio – por conta do fascínio de seu agressor por essa mesma imagem – passa a enxergar no escuro por meio de frases proféticas. No mito grego, Tirésias fica cego por, sobretudo, enxergar a beleza alheia. No filme, é sua beleza, em última instância, que vai cegá-lo para, na seqüência, fazer ele ver pelas palavras. Primeiramente só imagem, construído a custo de muita química e vaidade, ele(a) torna-se oráculo. Será preciso esvaziar a aparência para se comunicar com "os outros". Será preciso deixar de aparentar para ser. Tirésia, o travesti, é espetáculo. Encenação. Pois seu seqüestrador tenta apossar-se de sua beleza, trancá-la, não deixar que ele(a) seja espetáculo público. Tentará descobrir o que há abaixo da superfície, por trás das evidências, o ser escondido pela aparência. Quer investigar o que existe atrás da máscara. Porque a imagem esconde.

Bonello já havia discutido a banalização da imagem em O Pornógrafo. Em Tiresia, retoma a questão. Não condena a imagem, mas sua fetichização. Prega e pratica uma imagem simples. O próprio travesti, quando cego, torna-se um monge. De batina e tudo. Essa simplicidade está também na sobriedade minimalista das imagens empregadas no filme. Não são poucos os momentos em que um plano existe apenas por si só. Pelo que mostra, não pelo que diz. Pelo que evidencia, não pelos artifícios. Tais planos não servem como elo de ligação entre um anterior e outro posterior, não carregam uma etiqueta que explique seu significado, não têm diálogos a tentar dar lhes função e sentido na "história". Eles apenas estão lá, independentes de tudo, com existência própria, absolutos mesmo. Não podem ser traduzidos em palavras. Parecem repelir análises racionais. Expressam apenas o que está ali evidente. Não se trata de imagens fetiches, de meras aparências, de representação, mas de imagem que apenas são. Não estamos também vendo nelas imagens ontológicas, que tenham um sentido em seu próprio interior. O uso da música, uso escancarado, evidencia manipulação. Mas não há sentido a ser buscado. Há apenas possibilidade de relação sensorial. Bonello busca um mistério nessas imagens sem decifrá-las. Nestes mesmos momentos, temos a figura humana. São imagens de pessoas, de pessoas em silêncio, de pessoas em contemplação, caladas diante de si mesmas, de outras pessoas, de um quadro ou da escuridão, silenciosas diante de dúvidas, mudas diante da vida.

Bonello parte do pressuposto de que a linguagem visual e falada omite – tanto quanto revela. Nem sempre o emissor atinge o destinatário ao juntar um signo com outro. Muitas vezes ele apenas emite signos sem haver qualquer comunicação e significação. Apenas ostentação. Pois ao lado de Tirésia, depois da perda da visão, há uma jovem muda. Ele no escuro, ela no silêncio. Estando impedidos de olhar para si, no caso dele(a), e de falar sobre si mesma, no caso dela, os dois só podem entregar-se, dar-se aos outros, jamais impor-se por imagens e palavras. São submissos ao mundo, às suas condições e limites. Agem porque estão determinados a agir. Se optam por isso ou aquilo, é porque, na lógica do filme, estão condenados a optar. Essa submissão à natureza é sublinhada pela prisão uma idéia de origem. Não à toa o travesti, em seus momentos mais íntimos, canta, grita e sussura em português, seu idioma número um, do Brasil. O idioma não é da natureza, mas, sendo o único a nos ensinarem na infância, torna-se parte de nós. Faz parte de nossa maneira de relatar e pensar a vida. Também não à toa, quando Tirésia larga a química, volta à sua aparência masculina, embora efeminada. Essa ambigüidade está nele. Não é uma escolha.

Tiresia tem dois focos e duas partes. Uma expressa o ponto de vista do seqüestrador. A outra do seqüestrado quando em "liberdade", aqui entre aspas, porque esse conceito inexiste no filme. Esses dois focos são opostos. E é irônico, apesar de esquemático, que o padre, na segunda parte, tenha a imagem do sequestrador. O mesmo ator. Duas faces de um mesmo signo. Multiplicidade de significados em um mesmo corpo. Imagem que engana. Em vez de crer na vontade e na beleza de Deus, esse signo padre-seqüestrador só quer ver e enetender a imperfeição do homem. O seqüestrador é mais claro. Ele ama o humano e recusa o divino, ama a criação e repudia a natureza, ama a incapacidade do homem de ser à imagem e semelhança do Criador. No caso do padre, há mais dúvidas. Pois quer evitar a sacralização do homem, sua transformação em milagreiro, em ser divino, para ver apenas sua condição limitada. Não quer vê-lo em suas aptidões naturais. Quer vê-lo como invenção de si nmesmo. Um truque. Tirésia, o travesti, a criação de si próprio, o artifício, é o contrário. Ele se define como vítima de uma natureza cruel e não como uma construção opcional. Isso porque nunca poderá optar entre ser homem ou mulher. Não pode escolher qual futuro melhor para ser profetizado (nunca o dele). Vive em desespero, conforme suas palavras. Tirésia é uma piada de Deus. Tenta fugir do destino de homem e ficará cega por conta de sua transformação. Não tem controle sobre seus passos. E aqueles a quem guia do escuro estão ainda mais no escuro quando precisam optar por um caminho em momentos de decisão. Precisam de alguém que decida por eles. Recusam o livre arbítrio. Querem uma força que designe tudo, que digam para onde irão, que os livre de ter opções. Querem cumprir papéis sem precisar criá-los. Querem um Deus.

Um Deus? Na visão do signo padre/sequestrador, não há Deus algum, apenas o homem. O seqüestrador acha vulgar o original e julga a cópia superior. O original seria um defeito, a cópia um aperfeiçoamento. Não havendo Deus, e é impossível não pensarmos em Nietzsche e Dostoievski, tudo é permitido. Para o padre, não. Porque, na ausência da onisciência de Deus, o homem vê. E julga. E sendo o homem a única testemunha do fascínio subversivo do sequestrador pela imagem recriada do travesti ou, no caso do padre, pela imagem supostamente farsesca do profeta, ele terá de tirar a visão dessa testemunha para não ser visto em sua própria humanidade. O amor do seqüestrador pelo humano não diz respeito ao que há de humano em sua própria pessoa. O amor do padre pelo humano proíbe-o de ver nesse humano algo de divino. Porque de nada vale refugiar-se em dogmas religiosos ou intelectuais se a natureza fala mais alto. Padre e seqüestrador revestem seus sentimentos com conceitos e retóricas, mas, sobretudo, parecem ser escravos de uma emoção acima de racionalidades. Não se trata de um elogio do filme à natureza, mas de uma constatação sobre a incoerência e desequilíbrio das coisas naturais. Se o humano é múltiplo, mostra Bonello, é porque é múltiplo, não porque assim deseja ser. As imagens de magma vulcânico e de um porco espinhos, ambos signos de transformação e transitoriedade, de aparência em modificação, não deixam dúvidas sobre essa relação homem-forças naturais. A opção pelo mito da tragédia grega é pertinente. Na visão de Bonello, as representações da modernidade, com seu excesso de imagens, conduzem à escuridão. O cineasta expressa essa penumbra, porém, com imagens nada cegas. Nem tão luminosas. Seu registro é das sombras e das dúvidas.

Cléber Eduardo