Tanto é possível
ver Tiresia com autonomia cinematográfica,
descolado de sua origem e de suas outras representações,
como se pode encará-lo como atualização
do mito grego. Tirésias era um profeta de Tebas
que ficou cego ao ver nudez de Atena. Sua figura é
citada por Homero em A Odisséia, por Sofócles
em Édipo Rei e especialmente por Ovídio
em Metamorfose III, no qual é homem e
mulher em momentos diferentes. Betrand Bonello, que
diz ter realizado seu filme a partir do sonho de um
amigo sobre um transexual com poderes de vidência,
vai além do mito: parte dele para elaborar uma
fabulação filosófica que, justamente
por legitimar a tragédia clássica, questiona
os valores contemporâneos mais caros. Bonello
põe em xeque a construção da identidade
individual, auto-construção, e retrata
seus personagens presos à uma (des)ordem. Eles
não fazem o que fazem porque querem, mas porque
estão condenados a fazer e a querer. Podemos
até ser o que desejamos ser, ao menos parcialmente,
mas, segundo o cineasta, o que desejamos ser não
cabe a nós decidir, pois esse desejo não
seria opcional e sim determinado pela natureza. A modernidade
do ser é posta no muro.
O questionamento da auto-construção pela
imagem e pela palavra se dá pela própria
condição de seu protagonista, um travesti
que, ao perder a imagem de si próprio
por conta do fascínio de seu agressor por essa
mesma imagem passa a enxergar no escuro por meio
de frases proféticas. No mito grego, Tirésias
fica cego por, sobretudo, enxergar a beleza alheia.
No filme, é sua beleza, em última instância,
que vai cegá-lo para, na seqüência,
fazer ele ver pelas palavras. Primeiramente só
imagem, construído a custo de muita química
e vaidade, ele(a) torna-se oráculo. Será
preciso esvaziar a aparência para se comunicar
com "os outros". Será preciso deixar de aparentar
para ser. Tirésia, o travesti, é espetáculo.
Encenação. Pois seu seqüestrador
tenta apossar-se de sua beleza, trancá-la, não
deixar que ele(a) seja espetáculo público.
Tentará descobrir o que há abaixo da superfície,
por trás das evidências, o ser escondido
pela aparência. Quer investigar o que existe atrás
da máscara. Porque a imagem esconde.
Bonello já havia discutido a banalização
da imagem em O Pornógrafo. Em Tiresia,
retoma a questão. Não condena a imagem,
mas sua fetichização. Prega e pratica
uma imagem simples. O próprio travesti, quando
cego, torna-se um monge. De batina e tudo. Essa simplicidade
está também na sobriedade minimalista
das imagens empregadas no filme. Não são
poucos os momentos em que um plano existe apenas por
si só. Pelo que mostra, não pelo que diz.
Pelo que evidencia, não pelos artifícios.
Tais planos não servem como elo de ligação
entre um anterior e outro posterior, não carregam
uma etiqueta que explique seu significado, não
têm diálogos a tentar dar lhes função
e sentido na "história". Eles apenas estão
lá, independentes de tudo, com existência
própria, absolutos mesmo. Não podem ser
traduzidos em palavras. Parecem repelir análises
racionais. Expressam apenas o que está ali evidente.
Não se trata de imagens fetiches, de meras aparências,
de representação, mas de imagem que apenas
são. Não estamos também vendo nelas
imagens ontológicas, que tenham um sentido em
seu próprio interior. O uso da música,
uso escancarado, evidencia manipulação.
Mas não há sentido a ser buscado. Há
apenas possibilidade de relação sensorial.
Bonello busca um mistério nessas imagens sem
decifrá-las. Nestes mesmos momentos, temos a
figura humana. São imagens de pessoas, de pessoas
em silêncio, de pessoas em contemplação,
caladas diante de si mesmas, de outras pessoas, de um
quadro ou da escuridão, silenciosas diante de
dúvidas, mudas diante da vida.
Bonello parte do pressuposto de que a linguagem visual
e falada omite – tanto quanto revela. Nem sempre o emissor
atinge o destinatário ao juntar um signo com
outro. Muitas vezes ele apenas emite signos sem haver
qualquer comunicação e significação.
Apenas ostentação. Pois ao lado de Tirésia,
depois da perda da visão, há uma jovem
muda. Ele no escuro, ela no silêncio. Estando
impedidos de olhar para si, no caso dele(a), e de falar
sobre si mesma, no caso dela, os dois só podem
entregar-se, dar-se aos outros, jamais impor-se por
imagens e palavras. São submissos ao mundo, às
suas condições e limites. Agem porque
estão determinados a agir. Se optam por isso
ou aquilo, é porque, na lógica do filme,
estão condenados a optar. Essa submissão
à natureza é sublinhada pela prisão
uma idéia de origem. Não à toa
o travesti, em seus momentos mais íntimos, canta,
grita e sussura em português, seu idioma número
um, do Brasil. O idioma não é da natureza,
mas, sendo o único a nos ensinarem na infância,
torna-se parte de nós. Faz parte de nossa maneira
de relatar e pensar a vida. Também não
à toa, quando Tirésia larga a química,
volta à sua aparência masculina, embora
efeminada. Essa ambigüidade está nele. Não
é uma escolha.
Tiresia tem dois focos e duas partes. Uma expressa
o ponto de vista do seqüestrador. A outra do seqüestrado
quando em "liberdade", aqui entre aspas, porque
esse conceito inexiste no filme. Esses dois focos são
opostos. E é irônico, apesar de esquemático,
que o padre, na segunda parte, tenha a imagem do sequestrador.
O mesmo ator. Duas faces de um mesmo signo. Multiplicidade
de significados em um mesmo corpo. Imagem que engana.
Em vez de crer na vontade e na beleza de Deus, esse
signo padre-seqüestrador só quer ver e enetender
a imperfeição do homem. O seqüestrador
é mais claro. Ele ama o humano e recusa o divino,
ama a criação e repudia a natureza, ama
a incapacidade do homem de ser à imagem e semelhança
do Criador. No caso do padre, há mais dúvidas.
Pois quer evitar a sacralização do homem,
sua transformação em milagreiro, em ser
divino, para ver apenas sua condição limitada.
Não quer vê-lo em suas aptidões
naturais. Quer vê-lo como invenção
de si nmesmo. Um truque. Tirésia, o travesti,
a criação de si próprio, o artifício,
é o contrário. Ele se define como vítima
de uma natureza cruel e não como uma construção
opcional. Isso porque nunca poderá optar entre
ser homem ou mulher. Não pode escolher qual futuro
melhor para ser profetizado (nunca o dele). Vive em
desespero, conforme suas palavras. Tirésia é
uma piada de Deus. Tenta fugir do destino de homem e
ficará cega por conta de sua transformação.
Não tem controle sobre seus passos. E aqueles
a quem guia do escuro estão ainda mais no escuro
quando precisam optar por um caminho em momentos de
decisão. Precisam de alguém que decida
por eles. Recusam o livre arbítrio. Querem uma
força que designe tudo, que digam para onde irão,
que os livre de ter opções. Querem cumprir
papéis sem precisar criá-los. Querem um
Deus.
Um Deus? Na visão do signo padre/sequestrador,
não há Deus algum, apenas o homem. O seqüestrador
acha vulgar o original e julga a cópia superior.
O original seria um defeito, a cópia um aperfeiçoamento.
Não havendo Deus, e é impossível
não pensarmos em Nietzsche e Dostoievski, tudo
é permitido. Para o padre, não. Porque,
na ausência da onisciência de Deus, o homem
vê. E julga. E sendo o homem a única testemunha
do fascínio subversivo do sequestrador pela imagem
recriada do travesti ou, no caso do padre, pela imagem
supostamente farsesca do profeta, ele terá de
tirar a visão dessa testemunha para não
ser visto em sua própria humanidade. O amor do
seqüestrador pelo humano não diz respeito
ao que há de humano em sua própria pessoa.
O amor do padre pelo humano proíbe-o de ver nesse
humano algo de divino. Porque de nada vale refugiar-se
em dogmas religiosos ou intelectuais se a natureza fala
mais alto. Padre e seqüestrador revestem seus sentimentos
com conceitos e retóricas, mas, sobretudo, parecem
ser escravos de uma emoção acima de racionalidades.
Não se trata de um elogio do filme à natureza,
mas de uma constatação sobre a incoerência
e desequilíbrio das coisas naturais. Se o humano
é múltiplo, mostra Bonello, é porque
é múltiplo, não porque assim deseja
ser. As imagens de magma vulcânico e de um porco
espinhos, ambos signos de transformação
e transitoriedade, de aparência em modificação,
não deixam dúvidas sobre essa relação
homem-forças naturais. A opção
pelo mito da tragédia grega é pertinente.
Na visão de Bonello, as representações
da modernidade, com seu excesso de imagens, conduzem
à escuridão. O cineasta expressa essa
penumbra, porém, com imagens nada cegas. Nem
tão luminosas. Seu registro é das sombras
e das dúvidas.
Cléber Eduardo
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