Primeiro plano: a câmera desce
pela estrutura de uma torre (a Eiffel), e chega ao rosto
do protagonista-narrador. Parece simples e aleatório.
Mas produz sentido: essa descida do olhar da instância
narradora primeira (Bernardo Bertolucci), ao fazer este
movimento, sai de seu olimpo onisciente para encostar
no personagem. A visão em terceira pessoa se transfere
para a primeira pessoa de quem narra. Não veremos um
filme sobre o protagonista, Matthew (Michael Pitt),
mas sobre como este protagonista vê o mundo. Nessa operação,
autor e personagem se fundem, um olha e fala pelo outro
– embora, graças ao artifício, pareça haver dois narradores:
um seria mais objetivo, outro mais subjetivo. Na imagem,
essa distância, se analisada com rigor, não se mostra.
O personagem fala pelo diretor, e não o diretor pelo
personagem. Faz toda a diferença essa questão de como
se articulam os olhares.
A descida inicial da câmera tem ainda uma significação
de recuo. O olhar do autor retroage (descer = retornar),
sai do seu presente (2003), vai até o ano da ação (1968),
mas, como cola seu olhar no do personagem (na verdade,
o do personagem ao seu), a lógica de leitura do passado
vem do presente. A torre é ainda a imagem de uma estrutura
organizada e, quando se sai dela e chega-se ao rosto
do narrador, a câmera sai do geral e vai para o específico.
Estaremos em espaço e tempo fundamentais como contexto
(Paris, 68), mas esse espaço e tempo serão percorridos
por experiências singulares. No entanto, se a singularidade
é só uma forma de expressar o contexto (o fragmento
da História), então deixa de ser singular: torna-se
símbolo, metáfora. E, assim, os personagens perdem autonomia
para se tornar ferramentas empenhadas em traduzir o
ponto de vista do cineasta sobre o ambiente filmado.
Morrem, enfim. Viram setas indicativas, sínteses, cartazes
e porta-vozes dos conflitos.
Temos um protagonista americano que, depois de se aproximar
de um casal de irmãos, Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis
Garrel), tão cinéfilos quanto ele, é hospedado na casa
dos dois jovens. Vive com eles experiências eróticas
e responde a questões sobre cinema. Cada filme mencionado,
no quiz-show doméstico ou em outro contexto, é a senha
para se exibir, para o deleite de saudosistas (afinal,
filmes são vivos e, na era do DVD e da tevê a cabo,
podem ser revistos), trechos de obras variadas (de Rainha
Cristina, com Greta Garbo, a A
Band a Part, de Jean-Luc Godard). Cinefilia de almanaque.
Ao compartilhar a paixão pelas imagens a trinca encontra
sua harmonia; no entanto, a vida, quando fora do mundo
enquadrado, oferta tensões. Não demorará para o narrador
empunhar a espada verbal da moral e bater o martelo
da maturidade na mesa (ou contra a subversão sexual
e a rebeldia política dos irmãos).
Subversão, porém, em parte. Porque o incesto dos irmãos,
acima de tudo, atende uma necessidade de fusão: são
siameses. Se o discurso de cada um alveja a família,
principalmente o pai poeta e conservador, a prática
de ambos é um fortalecimento familiar, pois assume um
pacto de união eterna, com todo o romantismo dessa ligação.
Para o narrador, com sua função de nos induzir a pensar
como ele (e como o autor), não há poesia trágica nos
irmãos, mas uma patologia juvenil (uma rebeldia contra
a maturidade). Para desligitimá-los ainda mais, mostra-os
como burguesinhos contraditórios, que falam de revolução
e Mao, mas vivem do cheque de papai.
O narrador é, então, a coerência a denunciar paradoxos.
Ao final, quando os três vão para a rua, depois da “rua
entrar no quarto” (palavras de Isabelle, a muda de Bertolucci),
os irmãos fazem a coisa errada (ainda segundo julgamento
do narrador) que segue na contra-mão da manifestação.
Expressa-se nessa discussão política – “ação” ou “observação”?
– a pendenga entre Sartre e Merleau Ponty (com ecos
por todo o mundo intelectual europeu, francês sobretudo,
inclusive na redação dos Cahiers du Cinema), mas o tratamento
é simplista e redutor. E a condenação ao confronto é
colocada em perpectiva histórica retroativa (de hoje
para 68): ao abrirem a porta do prédio, a primeira imagem
vista é a da bandeira da URSS, símbolo de uma ruína
política (vista em 2004). Assim como o cartaz de Mao
e o Livro Vermelho, filmadas hoje, são realmente referências
de sonhadores, sem se chegar mais perto das razões dessa
crença.
A condenação dos “irmãos-casal”, pelo narrador, permeia
o filme todo. Está evidente quando vê pai e filha se
acariciando, quando vê os irmãos dormindo juntos, quando
se depara com tudo o que não aceita porque não entende.
Chega a chamá-los de aberrações. Ele põe um pé na transgressão,
mas, maduro, sabe a hora de voltar atrás. Repudia qualquer
preço a ser pago pelas mudanças. O apartamento onde
está hospedado tem corredores labirínticos, nos quais
ele se perde, de forma literal e metafórica. Seu processo
de transição (parcial) se dá com a passagem da condição
de cinéfilo voyeur para a de “protagonista manipulado”
de jogos eróticos (embora o erotismo, como Bataille
o entendia, como morte do “eu social”, não seja praticado,
mas sim banalizado). Os irmãos, filmados como devassos,
sem ambiguidades maiores, são seus manipuladores. Ou
seja, ele deixa de ser espectador para virar filme,
mas sem controle do próprio filme. O risco, mesmo assim,
é assegurado (como é o de um espectador de cinema).
Não à toa, quando vai transar com Isabelle, ouve-se
uma sirene: os sinais da repressão policiam o extravasamento
do desejo. Enquanto o sistema é ameçado nas ruas, o
sistema do protagonista é ameaçado pelos irmãos no apartamento.
A aproximação de Bertolucci com Maio de 68 (demissão
de Henry Langlois da Cinemateca Francesa, protestos
de rua, cinefilia ardente, Cahiers du Cinema), longe
de ser realista ou memorialística, dá-se pela idealização
lírica e um tanto cadavérica. Busca-se um entendimento
organizado do fluxo de acontecimentos, a ponto de as
imagens da cidade parecerem captadas em estúdio (figurantes
robóticos, luz controladinha), tamanha é a disposição
de se deixar tudo no lugar. Esse distanciamento transforma
a reconstituição em peça museológica e apara as contradições
ali expostas. A leitura sobre as coisas não é construída
no filme, mas imposta a ele e aos personagens. Os
Sonhadores sofre do mal dos filmes que já estavam
feitos antes de ficarem prontos. Filma fantasmas.
Nessa compulsão organizadora, o caos anunciado não está
na imagem. A educação da forma e a liberdade sob cabresto
resultam em homenagem a um tempo efervescente e a uma cinefilia incendiária, mas sempre dentro
de um estatuto de disposição clássica e sem filiação
qualquer com a disjunção narrativa da modernidade cinematográfica.
Tudo é tão organizado que há até moral final. Evita-se
a incompreensão, a incompletude e a selvageria da situação
ali colocada. Persegue-se a prosa e não a poesia, ou
a poesia com rimas e não com versos quebrados. Um único
momento de energia: a mocinha com o rosto lambuzado
com o sangue de seu defloramento. No restante, há certezas
demais. Os Sonhadores
vai até 68, mas não respira 68. Vai até a Nouvelle Vague,
mas não se filia a ela. Enxerga tudo de longe. Estamos
em um filme que, em vez de ir a campo, é filmado sem
se sair do escritório – sobretudo nas externas. Um filme
sem espírito de aventura, sem o culto do processo. Bertolucci
sabe demais onde quer nos levar. E nos leva para o depósito
da História, não para um mundo de imagens vivas.
Cléber Eduardo
|