OS SONHADORES
Bernardo Bertolucci, The dreamers, Itália/Inglaterra/França/EUA, 2003

Primeiro plano: a câmera desce pela estrutura de uma torre (a Eiffel), e chega ao rosto do protagonista-narrador. Parece simples e aleatório. Mas produz sentido: essa descida do olhar da instância narradora primeira (Bernardo Bertolucci), ao fazer este movimento, sai de seu olimpo onisciente para encostar no personagem. A visão em terceira pessoa se transfere para a primeira pessoa de quem narra. Não veremos um filme sobre o protagonista, Matthew (Michael Pitt), mas sobre como este protagonista vê o mundo. Nessa operação, autor e personagem se fundem, um olha e fala pelo outro – embora, graças ao artifício, pareça haver dois narradores: um seria mais objetivo, outro mais subjetivo. Na imagem, essa distância, se analisada com rigor, não se mostra. O personagem fala pelo diretor, e não o diretor pelo personagem. Faz toda a diferença essa questão de como se articulam os olhares.

A descida inicial da câmera tem ainda uma significação de recuo. O olhar do autor retroage (descer = retornar), sai do seu presente (2003), vai até o ano da ação (1968), mas, como cola seu olhar no do personagem (na verdade, o do personagem ao seu), a lógica de leitura do passado vem do presente. A torre é ainda a imagem de uma estrutura organizada e, quando se sai dela e chega-se ao rosto do narrador, a câmera sai do geral e vai para o específico. Estaremos em espaço e tempo fundamentais como contexto (Paris, 68), mas esse espaço e tempo serão percorridos por experiências singulares. No entanto, se a singularidade é só uma forma de expressar o contexto (o fragmento da História), então deixa de ser singular: torna-se símbolo, metáfora. E, assim, os personagens perdem autonomia para se tornar ferramentas empenhadas em traduzir o ponto de vista do cineasta sobre o ambiente filmado. Morrem, enfim. Viram setas indicativas, sínteses, cartazes e porta-vozes dos conflitos.

Temos um protagonista americano que, depois de se aproximar de um casal de irmãos, Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel), tão cinéfilos quanto ele, é hospedado na casa dos dois jovens. Vive com eles experiências eróticas e responde a questões sobre cinema. Cada filme mencionado, no quiz-show doméstico ou em outro contexto, é a senha para se exibir, para o deleite de saudosistas (afinal, filmes são vivos e, na era do DVD e da tevê a cabo, podem ser revistos), trechos de obras variadas (de Rainha Cristina, com Greta Garbo, a A Band a Part, de Jean-Luc Godard). Cinefilia de almanaque. Ao compartilhar a paixão pelas imagens a trinca encontra sua harmonia; no entanto, a vida, quando fora do mundo enquadrado, oferta tensões. Não demorará para o narrador empunhar a espada verbal da moral e bater o martelo da maturidade na mesa (ou contra a subversão sexual e a rebeldia política dos irmãos).

Subversão, porém, em parte. Porque o incesto dos irmãos, acima de tudo, atende uma necessidade de fusão: são siameses. Se o discurso de cada um alveja a família, principalmente o pai poeta e conservador, a prática de ambos é um fortalecimento familiar, pois assume um pacto de união eterna, com todo o romantismo dessa ligação. Para o narrador, com sua função de nos induzir a pensar como ele (e como o autor), não há poesia trágica nos irmãos, mas uma patologia juvenil (uma rebeldia contra a maturidade). Para desligitimá-los ainda mais, mostra-os como burguesinhos contraditórios, que falam de revolução e Mao, mas vivem do cheque de papai.

O narrador é, então, a coerência a denunciar paradoxos. Ao final, quando os três vão para a rua, depois da “rua entrar no quarto” (palavras de Isabelle, a muda de Bertolucci), os irmãos fazem a coisa errada (ainda segundo julgamento do narrador) que segue na contra-mão da manifestação. Expressa-se nessa discussão política – “ação” ou “observação”? – a pendenga entre Sartre e Merleau Ponty (com ecos por todo o mundo intelectual europeu, francês sobretudo, inclusive na redação dos Cahiers du Cinema), mas o tratamento é simplista e redutor. E a condenação ao confronto é colocada em perpectiva histórica retroativa (de hoje para 68): ao abrirem a porta do prédio, a primeira imagem vista é a da bandeira da URSS, símbolo de uma ruína política (vista em 2004). Assim como o cartaz de Mao e o Livro Vermelho, filmadas hoje, são realmente referências de sonhadores, sem se chegar mais perto das razões dessa crença.

A condenação dos “irmãos-casal”, pelo narrador, permeia o filme todo. Está evidente quando vê pai e filha se acariciando, quando vê os irmãos dormindo juntos, quando se depara com tudo o que não aceita porque não entende. Chega a chamá-los de aberrações. Ele põe um pé na transgressão, mas, maduro, sabe a hora de voltar atrás. Repudia qualquer preço a ser pago pelas mudanças. O apartamento onde está hospedado tem corredores labirínticos, nos quais ele se perde, de forma literal e metafórica. Seu processo de transição (parcial) se dá com a passagem da condição de cinéfilo voyeur para a de “protagonista manipulado” de jogos eróticos (embora o erotismo, como Bataille o entendia, como morte do “eu social”, não seja praticado, mas sim banalizado). Os irmãos, filmados como devassos, sem ambiguidades maiores, são seus manipuladores. Ou seja, ele deixa de ser espectador para virar filme, mas sem controle do próprio filme. O risco, mesmo assim, é assegurado (como é o de um espectador de cinema). Não à toa, quando vai transar com Isabelle, ouve-se uma sirene: os sinais da repressão policiam o extravasamento do desejo. Enquanto o sistema é ameçado nas ruas, o sistema do protagonista é ameaçado pelos irmãos no apartamento.

A aproximação de Bertolucci com Maio de 68 (demissão de Henry Langlois da Cinemateca Francesa, protestos de rua, cinefilia ardente, Cahiers du Cinema), longe de ser realista ou memorialística, dá-se pela idealização lírica e um tanto cadavérica. Busca-se um entendimento organizado do fluxo de acontecimentos, a ponto de as imagens da cidade parecerem captadas em estúdio (figurantes robóticos, luz controladinha), tamanha é a disposição de se deixar tudo no lugar. Esse distanciamento transforma a reconstituição em peça museológica e apara as contradições ali expostas. A leitura sobre as coisas não é construída no filme, mas imposta a ele e aos personagens. Os Sonhadores sofre do mal dos filmes que já estavam feitos antes de ficarem prontos. Filma fantasmas.

Nessa compulsão organizadora, o caos anunciado não está na imagem. A educação da forma e a liberdade sob cabresto resultam em homenagem a um tempo efervescente e a  uma cinefilia incendiária, mas sempre dentro de um estatuto de disposição clássica e sem filiação qualquer com a disjunção narrativa da modernidade cinematográfica. Tudo é tão organizado que há até moral final. Evita-se a incompreensão, a incompletude e a selvageria da situação ali colocada. Persegue-se a prosa e não a poesia, ou a poesia com rimas e não com versos quebrados. Um único momento de energia: a mocinha com o rosto lambuzado com o sangue de seu defloramento. No restante, há certezas demais. Os Sonhadores vai até 68, mas não respira 68. Vai até a Nouvelle Vague, mas não se filia a ela. Enxerga tudo de longe. Estamos em um filme que, em vez de ir a campo, é filmado sem se sair do escritório – sobretudo nas externas. Um filme sem espírito de aventura, sem o culto do processo. Bertolucci sabe demais onde quer nos levar. E nos leva para o depósito da História, não para um mundo de imagens vivas.

Cléber Eduardo