A
moto, a pé, sozinho, a dois: não importa
como, mas é preciso reocupar as ruas. Sair do
abraço, caloroso porém estático,
e passear ao ar livre, encher a vida de curvas. O beijo
em Scarlett Johansson e a partida (Encontros e Desencontros),
o passeio de moto – tão insólito quanto
real – após o namorado desaparecer no breu (Mal
dos Trópicos), a perda do abraço materno
e a necessidade de um novo jeito de caminhar (Sangre).
Mas partir não é uma obrigação,
tampouco andar desacompanhado: é possível
dialogar com o tempo e com o coração simultaneamente
(Antes do Pôr-do-sol). O resultado, de
um modo ou de outro, é um cinema diastólico,
sempre à deriva daquilo cuja entrada o coração
permite.
Ou daquilo cuja entrada somente o cinema permite. Se
apanhar um ar fresco, após o marido cair no sono
em plena noite de núpcias, pode fornecer tudo
de que o destino necessita para plantar sua armadilha
(5x2), François Ozon corrige sua "maldade"
e faz o filme voltar no tempo e reencontrar uma espécie
de proto-cena do imaginário romântico de
toda uma geração. Aquela praia, aquele
fim de tarde, aquele casal que entra no mar ao som da
canção italiana: essa imagem já
foi vista dezenas de vezes. O falso-raccord do
final – que transforma o aparente "corte dentro
do eixo" (o qual, por seu turno, traria uma das
maiores descontinuidades de luz da história do
cinema) numa exuberante elipse narrativa – é
a maneira perfeita de introduzir o falso-happy end
de 5x2. As coisas podem, como foi mostrado logo
de início, terminar "mal" na diegese
– mas o filme em si (i.e., sua simples sucessão
de imagens) quer terminar "bem" a qualquer
custo. É com o feelgood daquela cena final
que voltamos para casa, e não com o desconforto
instaurado no início do filme. Não deixa
de haver uma esperteza um tanto ácida nesse joguete
narrativo de Ozon, mas a racionalidade do narrador onisciente
(assim como a do crítico excessivamente irônico
da moral burguesa) não obstrui a sensação
de leveza que o filme prolonga sob o doce formato de
uma "inocente inconseqüência".
Inocentes e inconseqüentes são também
os jovens que chutam latas de lixo e andam como se fossem
os donos da rua no final de Água-viva.
Seus futuros brilham sobre suas cabeças. Kyoshi
Kurosawa expõe uma outra (e radical) forma de
ocupação das ruas. O corte também
transfere o filme do abraço (dessa vez entre
um pai e um filho que se adotaram mutuamente) para a
deambulação, mas aqui vemos um movimento
em bando. É como um trajeto migratório
de pássaros urbanos, que saem dos seus quartos
para povoar a cidade.
E há o outro movimento de conjunto, este imigratório,
que transporta da África para a França
um dos sorrisos mais belos da humanidade (A Ferida).
Após esconder seu rosto numa cena no metrô,
na primeira parte do filme (em que seu corpo ainda estava
marcado pela "ferida"), a personagem faz o
mesmo trajeto mais para o final, mas desta vez ela não
só mostra o rosto como abre um apaixonante sorriso.
Depois, o passeio pela calçada, de mãos
dadas com o irmão, enquanto a música "Atmosphere",
do Joy Division, surge em fade in. O passeio termina
com ela comprando um par de óculos escuros –
escolhendo uma forma própria de ver o mundo.
É algo não muito distante do "cinéma
de l’attachement" proposto por Robert Guédiguian
(História de Marius e Jeanette, Marie-Jo
e Seus Dois Amores): uma questão de laços
– humanos, certamente, mas dotados de todas as esferas
possíveis. Curioso que A Ferida e Marie-jo,
filmes tão diferentes que são, terminem
com o mesmo princípio de enquadramento: a câmera
apontada para baixo, na traseira de um veículo
em movimento, registrando de um lado a poeira que fica
para trás do caminhão, do outro as águas
revolvidas pelo barco que segue. Tem sempre alguma coisa
ficando para trás – donde a necessidade, que
o diga Manoel de Oliveira, de se viajar ao princípio
da memória (em A Ferida, a intensa circulação
de narrativas pessoais de percalços vividos),
que é também o princípio do mundo.
Em Vai-e-vem, a questão se condensa de
uma maneira distinta (e, obviamente, extraordinária):
sentindo a proximidade da morte, João Vuvu se
recusa a permanecer no hospital, pois prefere estar
lá fora, prefere sair e ver não importa
o quê, mas simplesmente ver. Se em praticamente
todo o filme suas perambulações são
individuais, é porque a única forma de
realmente absorver a poesia da vida é estando
a sós com o mundo. E estar a sós com o
mundo não representa apenas um paradoxo da solidão:
significa querer conhecê-lo, mas sem pedir o mesmo
em troca (somente assim se ouvem os versos).
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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