Abbas
Kiarostami tem nos ensinado a ver. Não apenas
olhar, mas escolher o que olhar e saber ver. Seu preciso
enquadramento do mundo compõe uma imagem que
seduz nosso olhar e nossa atenção magneticamente,
impulsionando nosso desejo de ver. Não de uma
forma voyeurista, mas como forma de conhecer
o que se dá com as pessoas e a natureza que ele
escolhe captar. Portanto, nosso olhar não se
encontra mais atraído pelas tentações
do fora-de-quadro. Não há mais campo invisível
assombrando o campo visível, porque "um
personagem que sai do quadro deixa de viver", como
bem observa Laurent Roth. 1
Disto decorre um uso do fora de campo que difere em
muito da sua caracterização clássica,
que se baseia num uso estrutural, marcado especialmente
pelas entradas e saídas de quadro e pela tensão
entre o visto e o não-visto ou entre o visto
e o imaginado. Para Kiarostami, tudo o que há
para o olhar é o recorte que ele fez do mundo,
são os elementos que ele escolheu mostrar, da
forma como estão compostos dentro da imagem.
E, atraídos por tal quadro, nossos olhos se embebem
com a profusão de coisas para se ver. Mesmo que
a imagem seja aparentemente simples, como uma árvore
numa colina. Tudo o que faz o trajeto para dentro e
para fora do quadro ganha portanto importância
plástica na imagem e nunca estrutural, porque
a existência se dá dentro da imagem e não
no extra-campo virtual que se prolonga e se estrutura
às suas bordas. Isto nos remete a uma composição
de imagem pensada como tela, como quadro branco a ser
preenchido, o que é facilmente compreensível
se lembrarmos que Kiarostami, antes de ser cineasta,
é pintor e fotógrafo. Logo, o sentido
intuído por ele é quase sempre advindo
da plasticidade da imagem e do que esta pode quando
dotada de tempo e movimento; tendência potencializada
ao extremo em seu último filme, Cinco,
composto de cinco planos que se assemelham a quadros
ou fotografias da natureza. Em cada um deles, as bordas
da tela é o que delimita nosso campo de olhar
e a amplitude das possibilidades de composição
plástica que os acontecimentos que se dão
à presença da câmera oferecem.
Outro cineasta que aponta um forte uso plástico-estético
do fora de campo é Nicolas Klotz, com A Ferida.
Os limites do seu quadro estão freqüentemente
ocupados por elementos que margeiam ou emolduram o objeto
de atenção principal, como num plano em
que um policial se encontra na margem esquerda do quadro,
em primeiro plano e desfocado, com apenas parte do rosto
dentro da imagem, enquanto ao fundo, próximo
a uma porta, um policial tenta conduzir um refugiado
rebelde. Este policial em primeiro plano permanece praticamente
imóvel durante toda a duração deste
plano fixo, só ganhando maior importância
quando o policial ao fundo vem ao primeiro plano lhe
dirigir a fala, apenas para em seguida voltar à
sua atividade em plano geral. Composições
semelhantes a essa são freqüentes durante
todo o filme, que pela opção majoritária
pela câmera fixa e planos longos, chamam a atenção
para a plasticidade da imagem, sempre estupidamente
linda. E é impressionante como Klotz cria sucessivos
enquadramentos sem mover a câmera, já que
suas unidades narrativas estão basicamente fundadas
em planos-seqüência de câmera fixa.
Através de uma mise-en-scéne extremamente
bem articulada, a imagem vai se remodelando e mudando
de composição, passando de um quadro a
outro dentro de um mesmo plano, todos deslumbrantes.
O que temos em ambos os casos é uma composição
de quadro que aponta fortemente para o recorte feito
sobre a cena, mas que não se vale do que permanece
de fora do enquadramento para estabelecer sentidos e
estruturar a narrativa. O que prima nestas imagens é
este seu caráter de composição
a partir do mundo, de elaboração plástica,
que aponta justamente para sua condição
de imagem, antes de serem planos inseridos em
seqüências dentro de um filme. Tal postura
mostra-se primordial quando a questão é
fazer ver, seja no caso da pedagogia kiarostamiana do
olhar, seja no caso de A Ferida, em que se trata
de mostrar algo que não se dá à
vista. E isto se reflete também na própria
duração dos planos, afinal, para fazer
ver, é necessário dar tempo para o olhar,
para que ele saiba então o que enxergar e como
ver, já que não se encontra capturado
por uma construção estruturada que o conduza
e o condicione o tempo todo às suas prescrições.
Tatiana Monassa
Nota:
1. Cahiers du Cinéma nº493, p.71-72
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