O PERSONAGEM-AUTOR E SUAS VOZES

Nem todo o narrador é a expressão da voz do autor do filme, mas alguns têm a tarefa de expressar a visão dele sim, embora isso seja escamoteado pelo expediente narrativo de se entregar a voz do filme a um personagem, como se houvesse duas instâncias narradoras distintas (a do autor sobre o personagem e a do personagem sobre o mundo). Nestes filmes, o narrador é menos a afirmação de uma subjetividade autônoma (a dele), e mais um meio para o autor expressar a sua subjetividade, mas sem assumi-la totalmente. Dois casos recentes, um desenvolvido em primeira pessoa (Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci), outro em terceira (Tormento, de Jonathan Caouette), são bastante problemáticos.

Bertolucci emprega a primeira pessoa, mas seu protagonista, mais que olhar subjetivo, é um observador objetivo. Ele extrai sentidos claros da confusão de sensações experimentadas em sua iniciação na transgressão sexual e em sua proximidade com as manifestações mitificadas como o "slogan histórico" Maio de 68, uma e outra experiência vividas ao lado de um casal de irmãos cujo aquecimento da sexualidade é proporcional ao da cinefilia. Toda a relação entre os irmãos, cheia de ambigüidade e mistério, é vista de fora pelo narrador, embora ele tenha um pé dentro. De qualquer forma, quando esses irmãos ultrapassam as fronteiras do equilíbrio burguês (no sexo e na política), o narrador emite seu julgamento. E não havendo outra voz, não havendo uma câmera que nos mostre a intimidade dos irmãos, fora do alcance do olhar do protagonista, o narrador fala por Bertolucci.

Em Tormento, a narração do autor-protagonista é desenvolvida em terceira pessoa, saindo do esfera de um filme de um "eu" sobre um "eu", que assumiria um olhar de alguém sem distanciamento para narrar os bastidores de sua família e a intimidade de suas fragilidades. A terceira pessoa convoca uma voz de fora das experiências, com legitimidade mais assegurada pelo distanciamento, a conferir mais veracidade para as situações narradas por palavras ou pelo texto (escrito na tela). Esse expediente, que pode até ser coerente com a fragmentação de identidade tematizada pelo narrador, espana a dúvida, ou ao menos tem esse efeito a uma primeira vista. Mas, dentro das camadas narrativas, essa voz em terceira pessoa tanto se aproxima da do autor como se distancia da do protagonista. Obtém sua legitimação do estilhaçamento do autor em autor, ator-personagem e narrador.


Cléber Eduardo