Poderíamos
tomar como exemplos de caso tanto as oposições
entre Contra a Parede (de Fatin Akin) e Or
(de Karen Yedaya) como entre as de Cama de Gato
(de Alexandre Stockler) e Dez (de Abbas Kiarostami)
ou ainda as de Terra Prometida (de Amos Gitai)e
Los Muertos (de Alisandro Alonso). Entre tantas
diferenças entre cada um dos filmes, uma característica
diferenciadora os distingue em dois grupos: os que
olham demais e os que enxergam com pouco.
De um lado, a estética da atenção.
Do outro, a do zap, a do espaço-olho. Em cada
plano, há um olho (o da câmera, o do autor,
o nosso). Alguém dirige nosso olhar para um corpo
ou um ambiente, com planos fixos ou móveis, e
tanto nos permite ver algumas coisas como nos nega outras.
Há filmes nos quais esse olho está em
todo canto do ambiente, perscrutando partes dos corpos,
esquadrinhando o espaço físico e tudo
presente nele, como se lutasse contra qualquer ponto
cego. Podemos detectar isso em Contra a Parede,
Cama de Gato e Terra Prometida.
Cama de Gato chega a empregar câmera subjetiva
para ilustrar o olhar de três personagens sem
nenhum critério à vista. Em Terra Prometida,
a câmera corre tanto atrás da ação,
de qualquer detalhe, que acaba assumindo o olhar do
opressor, ao menos quando, no momento de se fechar o
negócio da compra de mulheres para prosituição,
os comerciantes desnudam a mercadoria. E o que Gitai
nos dá a ver? A carne. Já em Contra
a Parede a disposição de chocar, de
chicotear a sensibilidade do espectador diante do drama
do casal-problema de protagonistas, resulta em uma câmera
às vezes histérica, em uma montagem fatiadora
de planos repetitivos, que tenta nos sacudir o tempo
inteiro, como se não acreditasse no poder das
próprias situações.
Não vemos interesse pelos acontecimentos em si,
mas uma maçaroca visual condenada à invisibilidade,
ou, ainda pior, que revela uma ausência de um
indivíduo e de seu olhar, metamorfoseados nestes
casos em olhares unividentes e onipresentes, acometidos
de promiscuidade estética Como afirma Regis Debray,
se antes um enquadramento de cinema era uma janela para
o mundo, hoje vemos muros de imagem Há um vontade
de ver demais para tentar enxergar algo em cada um desses
filmes filmados por câmeras-gatilho, que buscam
a verossimilhança na convenção
do neonaturalismo telejornalístico. Há
o receio de nada ser detectado em um plano, levando
o diretor a retalhar o plano e a multiplicar os pontos
de vistas, produzindo mais cegueira que realmente formas
e informações, em uma dinâmica sempre
empreendida com a língua de fora e com taquicardia
visual.
Isso nada tem a ver com a dinâmica de planos de
O Pântano, de Lucrecia Martel, ou dos filmes
dos irmãos Dardenne (Rosetta, O Filho),
ou ainda de Supremacia Bourne, de Paul Greengrass, no
qual os planos "em excesso" produzem coreografia
de olhares (dos personagens ou dos autores), sempre
situando os corpos e as experiências nos ambientes
filmados.
No lado oposto, composto de Or, Dez e Los
Muertos, a câmera assume seu lugar no espaço
e, com raras exceções, não adota
outro ângulo sobre aquele ambiente, assumindo
uma limitação do olhar da câmera
(e do autor e do espectador), mantendo o fora de campo
como parte do quadro, construindo uma geografia com
os olhos e com outros sentidos do espectador. Em Or,
o olhar seletivo entra em acordo com uma proposta de
dramaturgia da incompletude, como se a intimidade das
personagens, mãe-filha, não estivesse
aberta para ser devassada. Ficamos sem saber de muita
coisa e o que ficamos sabendo já é suficiente.
Em Los Muertos, a câmera acompanha todo
os movimentos, e até a falta deles, de um ex-presidiário,
enquanto este de desloca no espaço durante suas
primeiras horas de liberdade. A reposição
progressiva do personagem a seu ambiente de origem,
seu retorno à natureza bruta, é acompanhada
sem pressa, com um olho atento a cada detalhe (do homem
e dos ambientes).
E temos ainda o último episódio de Cinco.
Vemos uma superfície aquosa no breu. Apenas um
feixe luminoso, da lua, incide sobre a água.
Esse fiapo de luz é suficiente, sempre captado
pelo reflexo da lua na água, para se criar um
ambiente, sempre com a utilização do som.
Quando retorna ao princípio do cinema, a luz
sobre a escuridão, sem a qual não temos
imagens ou olhar, Kiarostami formula um postulado: deixa
de acionar apenas a vista e propõe a visualização
a partir do não mostrado. Há senso moral
nessa opção. Porque a imagem multiplicada
deixa de ter o estatuto de verdade-evidência e
passa a manifestar suas fragilidades e seus artifícios.
Quem vê demais suspende a crença no que
está vendo e dando a ver. Quem vê e dá
a ver de menos pode enxergar mais.
Cléber Eduardo
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