O
Natal como uma questão de fé. A fé
transcendida do seu tradicional significado religioso
para toda a mitologia natalina que envolve o Pólo
Norte e seu Papai Noel. O Expresso Polar é o
trem místico que permite reforçar nas
crianças uma crença cuja tendência
é ser mais e mais negada conforme passam os anos.
O menino protagonista encontra-se na idade em que começa-se
a questionar os pais e também as lendas infantis
que ocuparam a imaginação durante anos.
Tudo indica que ele está sendo passado pra trás
por seus pais, que se esforçam para manter uma
certa "magia" da infância funcionando.
Sua irmãzinha mais nova encontra-se longe ainda
de tal questionamento. Segue cegamente em sua fé
"pura". Esta idade do protagonista é
também a idade do heroísmo infantil, uma
idade limítrofe, na qual nos encontramos divididos
entre a vontade de seguir criança e os questionamentos
de todo o universo vivido até então. A
idade perfeita para o cenário de um dilema e
de uma decisão. De afirmar a continuidade de
uma crença ou a partida para outros universos
mentais. Aqui, a escolha é pela permanência.
O menino é escolhido como herói por um
Papai Noel à imagem e semelhança de Deus,
por sua capacidade de continuar acreditando. A fé
ganha contornos vagos. Não é só
prosseguir tendo fé no bom velhinho, é
"acreditar" de uma forma mais ampla, é
também não questionar. O espírito
natalino é uma entidade abstrata, representante
de uma felicidade mágica, relacionada em grande
parte com o "ganhar um presente". O menino
pobre e solitário resgatado pelo trem no caminho
não sabe o que é o Natal, não acredita
e não dá a devida importância à
época e seu tempo mágico, porque nunca
ganhou um presente. Magro, ligeiramente vesgo, de pernas
tortas e voz sofrida, ele sobe no trem por intervenção
do menino herói, mas permanece num vagão
separado das outras crianças e em nenhum momento
tal fato é questionado por ninguém dentro
do trem. Tudo o que ele conquista é por intermédio
do herói e da menina heroína, tornada
comparsa do protagonista. Cabisbaixo, com ar soturno,
ele segue sempre um passo atrás do herói
e sua recompensa no final da jornada, como observado
por Papai Noel, é "ter feito amigos".
Voltando pra casa, ele encontra um presente e agradece
aos heróis a dádiva recebida, retornando
ao seu lugar de excluído. O filme promove esta
estranha naturalização de imagens sociais
e estereótipos – no menino herói de classe
média alta, corajoso e justo, na menina heroína
negra de classe média, simpática e bondosa,
no nerd sabe-tudo, chato e indelicado, e no menino
pobre, frágil e inocente –, que afirma um determinado
retrato de sociedade, mas sem colori-lo de leituras
moralizantes. Curioso como todos estes personagens,
embora com papéis distintos, são nivelados
dentro do trem, talvez pela figura do cobrador, enfurecido
e enlouquecido na sua tarefa de controle de passageiros
e de manutenção da ordem. Seu trato indelicado
com as crianças e sua rigidez e insensibilidade
também não sofrem julgamentos morais.
O fantasma habitante do trem, que ajuda o herói
em momentos providenciais é ele mesmo uma espécie
de marginal, grosseiro e de caráter duvidoso.
Zemeckis traz toda uma atmosfera sombria para o filme,
em que a magia do percurso é, na verdade, um
clima de constante perigo e de confronto com o desconhecido.
O mundo aparece duro e com uma certa crueza, para a
qual o espírito natalino seria então a
grande bênção.
Toda esta caracterização difere muito
da operada em Papai Noel às Avessas, de
Terry Zwigoff, em que os estereótipos estão
lá para serem reinterpretados e toda a dureza
do mundo, apresentada sem "meias palavras",
é de certa forma aliviada em nome de uma relação
horizontalizada entre "Papai Noel", totalmente
humano e carnal, e o menino, um nerd excluído
que vive com a avó. A relação totalmente
inesperada que surge entre os dois, o papai noel ladrão
e alcoólatra e o garoto aparentemente ingênuo,
dispensa o fator "espírito natalino"
e qualquer preservação de valores ou de
aura de uma mitologia infantil. Sim, Papai Noel não
existe, mas existe alguém fantasiado que pode
dar atenção, que pode conversar, escutar
seus anseios e, quem sabe, tornar-se seu amigo. Um "pai"
palpável e não um Pai grandiosamente superior
e inalcançável, cuja magnitude pode apenas
ser reconhecida. Em lugar da veneração
de valores sublimes como a fé e a inocência,
a iconoclastia e o humor negro pautam a leitura de Zwigoff
para o que seria um conto de fadas natalino.
Para Zemeckis, o conto de fadas é, sem dúvida,
bem mais tradicional. O limiar entre a vigília
e o sono é a deixa para a chegada do trem que
conduzirá o menino em dúvida por uma jornada
na qual será testado – especialmente em relação
à fé – e que deixará marcas na
sua realidade material, trazendo a eterna indefinição
sobre o que ocorreu: sonho ou fato? Não importa,
porque é sonhando – crendo – que se consegue
frutos na vida. Na abstração idealizada
da fé – em Deus, em Papai Noel, tanto faz –,
conquistas concretas poderão ser alcançadas.
Após sua jornada mí(s)tica, o herói
aprende que o espírito natalino não tem
preço e que a comunhão familiar é
um grande bem que deve ser preservado a aproveitado
com regozijo. Todo o aprendizado é etéreo,
não-palpável, e permanece no campo espiritual.
A pergunta que fica é: e quando o Natal passar?
Tatiana Monassa
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