Porque diabos colocar
um autêntico filme de gênero no mesmo texto que trata
de um filme de “palavras”, um filme de relações humanas
na tradição tão francesa? Por um motivo bem simples:
o fracasso de ambas as propostas passam por uma mesma
incapacidade – a de tornar cinema aquilo que propõem.
No primeiro caso, o de A
Sétima Vítima, a confusão que Jaume Balagueró faz
é entre o que seja “medo” com o que na verdade é susto.
Não é difícil, com o domínio da percepção do espectador
que o cinema permite, causar um susto: um barulho mais
alto, uma nota forte das cordas na trilha sonora, uma
sombra que passa na frente da câmera... e voilá!
Susto garantido. Daí a provocar o medo... vai uma enorme
diferença. Pois não há um só fotograma neste filme de
Balagueró (que, produção de 2002, só agora estréia nos
EUA, em fins de 2004, o que dificilmente é um bom sinal)
que cause real medo. Neste seu autêntico mélange
de lugares comuns do cinema de horror recente (sejam
os lugares comuns narrativos, sejam os de mise-en-scène), não sobra um fotograma
de diferenciação, de novidade – ou, pior que isso tudo,
de eficácia.
É verdade que o começo animará em especial as platéias
masculinas quando, com uma perversidade quase nabokoviana,
Balagueró nos revela em três seqüências seguidas que
Anna Paquin (a menininha de O Piano) cresceu – e como. Parece até um
compêndio de fantasias sexuais lolísticas: ela em roupinhas
de dormir, ela em maiô, ela em topzinho casual. É o
máximo de sensações que o filme nos causará, infelizmente.
Paquin, inclusive, logo se revela um dos grandes problemas
do filme, numa interpretação monótona onde parece usar
sempre a mesma expressão de “meu Deus, tem alguma coisa
errada aqui”. Infelizmente, nós só podemos acreditar
na “palavra” dela porque Balagueró nunca consegue dividir
essa sensação conosco – o filme é especialmente mal-sucedido,
em sendo essencialmente um filme de “casa mal assombrada”,
em nos fazer acreditar no clima daquele ambiente que
(por mais que ele insista em tremer a imagem obsessivamente)
nunca ganha vida própria (como convém a uma assombração).
Há, na seqüência da tradicional “revelação da trama”,
a cargo de Giancarlo Gianinni, quase uma sensação de
“este cara está brincando comigo”, mas a comicidade
eventual infelizmente parece mais involuntária do que
desejada.
A produção do filme é um interessante clone de Os Outros, onde a Dimension Films americana
tentou repetir o feito de Alejandro Amenábar, dando
liberdade para Balagueró para filmar na sua Espanha
natal, com uma equipe toda ela local. Só que Balagueró
definitivamente não é Amenábar – e tudo que era clima,
perturbação, vida na morte no caso do espanhol anterior,
aqui é derivação, repetição e tédio.
***
Não é exagero afirmar que Nathalie X é um filme sobre sexo – sobre relações humanas antes de
tudo, mas estas vistas pelo prisma preponderante do
sexo dentro destas relações. Pois bem, como tal Nathalie
X é um filme que pedia muito tesão da parte de sua
realização – e isso é tudo que ele não tem. Assim como
no caso do filme de Balagueró, há uma confusão entre
duas sensações – só que ao invés de medo e susto, aqui
se confunde tesão com atração visual simples. Claro,
atração visual com Emmanuelle Béart narrando desventuras
sexuais, ou dançando como uma prostituta de luxo, não
é difícil criar. Mas, tesão são outros quinhentos...
quinhentos que Anne Fontaine nunca consegue colocar
na tela. Com isso, toda a teoria por trás do filme (a
da revitalição/sublimação de uma desgastada relação
marido/mulher, por parte dela, através das aventuras
sexuais dele com uma prostituta que ela contrata – para
depois lhe fazer estes relatos), cai por terra quando
tornada prática, quando tornada filme.
Mais uma vez há um espelhamento do filme de Balagueró
na completa incapacidade do filme criar empatia entre
espectadores e sua protagonista (aqui, como lá, o centro
nervoso da narrativa). Só que aqui a coisa é um pouco
mais sério já que, ao contrário de uma ainda púbere
Paquin, temos Fanny Ardant – a quem certamente não falta
cancha na sua caracterização. Resta somente a hipótese
(facilmente comprovada pelo filme) do completo equívoco
de tom que permeia cada enquadramento, cada corte (há
alguns dos fade outs mais feios do cinema em tempos),
cada movimento dos atores. Fontaine desperdiça constantemente
possibilidades de interesse, principalmente com o personagem
do marido (por Gerard Depardieu), com o qual ficamos
com a clara impressão que ela precisava radicalizar
e torná-lo um fantasma não-presente (como em Bens Confiscados, de Carlos Reichenbach, por exemplo), ou então desenvolvê-lo
com outras tintas. Como está, Depardieu não é um fantasma
e sim um morto-vivo a perambular pelo filme (com todo
o charme que ele consegue extrair disso, mas ainda assim
sem um norte cinematográfico a guiá-lo).
Mas o mais grave é realmente a incapacidade de Fontaine
criar qualquer clima com seu gimmick
narrativo essencial (a construção da narrativa em torno
das mentiras/fantasias que compõem o discurso de Béart).
Não é nem o caso de reclamar apenas do fato de que o
filme trata como uma revelação surpreendente aquilo
que é mais do que óbvio no filme inteiro (porque esta
incapacidade de “surpreender” é menos importante do
que a obsessão moderna com a “ixperteza” faz supor).
É, acima de tudo, caso de se reclamar de o filme girar
em torno de um jogo de registros (verdade/mentira, fantasia/criação,
sexualidade/pudor) que ele nunca faz questão de incorporar
como linguagem – e por isso soa falso, frio, desimportante
o tempo todo. Um exemplo simples: porque o filme não
dá imagem a qualquer dos fatos narrados por Béart? Claro,
pode-se pegar a resposta mais fácil: porque devemos
imaginá-los, como a personagem de Ardant. Mas, por conta
de uma resposta fácil, joga-se fora um jogo muito mais
complexo e relevante na narrativa audiovisual, que seria
aquele do estatuto de cada imagem. Como está o filme
cai no banal: imagem que está no filme é real, imagem
que não está nele é nossa imaginação. Ao não articular
estes pólos (entre tantos outros possíveis), o filme
não consegue qualquer “sentimento” da parte do espectador
– o que seria menos grave se ele propusesse um filme
“racional”, mas não é este o caso, como fica claro nas
tentativas (dolorosamente frustradas) de cenas de “clima”
(onde com o uso de músicas “cool” se tenta um efeito-Claire
Denis de imersão, que resulta incrivelmente errado,
sem conexão com o filme).
***
O que A Sétima
Vítima e Nathalie
X configuram, para além de qualquer outra coisa,
são exemplos indubitáveis da ausência de algo que muitas
vezes parece difícil de conceituar quando se trata de
análise de cinema: talento de encenação, capacidade
de criar clima. Fontaine e Balagueró, ao menos julgando-se
por estes dois filmes, podem ter as idéias certas nas
mãos em determinados momentos – mas isso nunca implica
em filmes minimamente funcionais.
Eduardo Valente
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