UMA AMIZADE SEM FRONTEIRAS
François Dupeyron, Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran, França, 2003

O Sr. Ibrahim, um muçulmano sufi, mantém um armazém de conveniências na Rua Bleue, na Paris dos anos 60. Bastante apegado ao seu Corão, ele destila simpatia e sorrisos bem-humorados. Parece ter prazer na vida simples que leva e um grande coração para abrigar todos os seus clientes costumeiros, mesmo os mais arredios. O garoto Moisés, judeu e habitante de algum apartamento próximo, freqüenta com certa regularidade o pequeno comércio, permitindo a aproximação mais do que insuspeita que crescerá entre os dois personagens. Amizade sem fronteiras de idade, de religião, de nação.

A premissa é, por si só, convidativa. Sugere aquela idéia de que as pessoas mais distantes e mais diferentes podem ver crescer uma cumplicidade mútua, um afeto inesperado, um companheirismo que alivie o peso do mundo. No entanto, Dupeyron não consegue fazer disto o tema do seu filme. Tenta se focar no bem que Ibrahim faz para o garoto derrotista e levemente desencantado, com seus belos ensinamentos de vida tirados de uma boa e sensível leitura do Corão. Se perde na preocupação de dar seguimento à narrativa e na ânsia de acionar seus personagens em alguma atividade visível, ao invés de deixá-los viverem o momento de cada plano e se descobrirem aos poucos em movimentos imperceptíveis. Tudo parece acontecer rápido demais e sem justificativas emocionais suficientes. Estranho, para quem havia demonstrado tanta maestria na lida com os tempos vazios, na tecitura de pequenos afetos e na construção de uma subjetividade para os personagens que contaminasse todo o filme, em O Quarto dos Oficiais (2001).

Em Amizade sem Fronteiras, parece faltar tempo, faltar planos subjetivos, faltar atenção. Há algo que não permite que a câmera se detenha, em tentar conhecer os personagens e as relações entre eles. Será o iê-iê-iê que insiste em dar ritmo ao filme? A trilha sonora que procura situar a ação histórica e culturalmente, dita um clima estranho para o desenrolar dos eventos para Moisés. Toda a animação dos flertes com as prostitutas, e das implicâncias com a vizinha que virá a posar de primeira namoradinha, não rima com o mau-humor e a negligência paterna, nem com as conversas propostas pelo Sr. Ibrahim. Há um descompasso de atmosferas. Dupeyron parece oscilar entre a vontade de fazer um filme claro, alegre, dançante e bem-disposto, e o interesse pelos meandros da vida interior mais sujeitos à penumbra. E se em O Quarto dos Oficiais seu exagero formalista casava perfeitamente com o ânimo pesado e soturno de sua narrativa e de seus personagens, neste último filme, qualquer esforço de atenção à forma parece forçado e inadequado, autoconsciente de maneira indesejada.

O que temos em Amizade sem Fronteiras – embora Dupeyron afirme que está “pronto para falar do desespero humano, desde que os personagens destruídos se reconstruam” – não é o acompanhamento do estado de espírito de um personagem que cai e se levanta, ou melhor, que é derrubado por muitos e levantado por alguém, como no filme anterior. Porque não obstante o ótimo desempenho de Pierre Boulanger, Moisés, apelidado de Momo pelo Sr. Ibrahim, não chega a transmitir sofrimento algum, nem mesmo em sua incapacidade de sorrir. E muito menos transmite a tal revitalização impingida pelas “flores” que recebe do pai emprestado – já que o seu, além de ausente, morre lá pra meados do filme. O grande problema é que, apesar de tudo, precisamente nada é transmitido propriamente.

Ineficiente na ausência de uma delicadeza tão necessária à sua proposta, o filme termina como um grande ensaio precoce e apressado. Nem fábula leve, nem poema das agruras sutis do dia-a-dia que permeiam os pequenos gestos. Tudo o que poderia haver de mais rico nas conversas e trocas de olhares entre o menino judeu e o velho muçulmano, que, fora de seu tradicional espaço de convivência forçada e conflito habitual, desenvolvem uma afetuosa relação, esvai-se em uma má condução dos tempos e das ações. Isto acarreta uma inconsistência dos próprios personagens, que não passam muito da caracterização factual em traços rápidos e simples, sofrendo de falta de densidade, sobretudo emocional, apesar da atuação competente de ambos os protagonistas.

Assim sendo, qualquer parábola política que pudesse ser arriscada, em tempos de guerras e de fundamentalismos, também esvai-se nestas lacunas. O patente e simpático esforço em atrair a atenção para belos e sábios dizeres do Corão, como forma de ensaiar uma aproximação com este outro tão irredutível, este eterno inimigo das terras de lá, esta aparente ameaça constante, feita invisível, acaba não passando muito de um fato de roteiro, possibilitador do caráter iniciático que, bem ou mal, a relação dos dois termina por assumir. A viagem para a Turquia ao final do filme arremata este “aprendizado” de Momo, pouco contribuindo para o prolongamento do aspecto metafórico que um tal acontecimento poderia significantemente vestir: o muçulmano que guia o ocidental para uma visita à sua terra.

Este se deixa levar pela mão, desarmado; entregue à curiosidade e à beleza, penetra indefeso este solo desconhecido. Adota como pai este homem mais velho, de cultura tão antiga, e deixa-se fascinar pelas cativantes palavras de um livro misterioso, que, dizem, incita muitos à violência, sendo a grande razão de tanto mal – um mal que os ditos de um livro já muito conhecido e já um tanto ineficiente poderiam quem sabe ser capazes de eliminar. Permite-se mudar em virtude de belos dizeres que afetariam a vida de qualquer alma mais sensível. No entanto, a sensibilidade da película de Dupeyron é quase que apenas para a luz. O sol marca presença efetiva, bem ao contrário de O Quarto dos Oficiais; as cores querem deixar tudo menos duro e menos frio, o mundo menos cruel e menos estático. Mas, no final das contas, o que impregna o ar é uma certa indiferença, meios-tons pálidos e insossos, compassos quase letárgicos e a certeza de um bom filme perdido em algum lugar...

Tatiana Monassa