O Sr. Ibrahim, um muçulmano
sufi, mantém um armazém de conveniências na Rua Bleue,
na Paris dos anos 60. Bastante apegado ao seu Corão,
ele destila simpatia e sorrisos bem-humorados. Parece
ter prazer na vida simples que leva e um grande coração
para abrigar todos os seus clientes costumeiros, mesmo
os mais arredios. O garoto Moisés, judeu e habitante
de algum apartamento próximo, freqüenta com certa regularidade
o pequeno comércio, permitindo a aproximação mais do
que insuspeita que crescerá entre os dois personagens.
Amizade sem fronteiras de idade, de religião, de nação.
A premissa é, por si só, convidativa. Sugere aquela
idéia de que as pessoas mais distantes e mais diferentes
podem ver crescer uma cumplicidade mútua, um afeto inesperado,
um companheirismo que alivie o peso do mundo. No entanto,
Dupeyron não consegue fazer disto o tema do seu filme.
Tenta se focar no bem que Ibrahim faz para o garoto
derrotista e levemente desencantado, com seus belos
ensinamentos de vida tirados de uma boa e sensível leitura
do Corão. Se perde na preocupação de dar seguimento
à narrativa e na ânsia de acionar seus personagens em
alguma atividade visível, ao invés de deixá-los viverem
o momento de cada plano e se descobrirem aos poucos
em movimentos imperceptíveis. Tudo parece acontecer
rápido demais e sem justificativas emocionais suficientes.
Estranho, para quem havia demonstrado tanta maestria
na lida com os tempos vazios, na tecitura de pequenos
afetos e na construção de uma subjetividade para os
personagens que contaminasse todo o filme, em O Quarto
dos Oficiais (2001).
Em Amizade sem Fronteiras, parece faltar tempo,
faltar planos subjetivos, faltar atenção. Há algo que
não permite que a câmera se detenha, em tentar conhecer
os personagens e as relações entre eles. Será o iê-iê-iê
que insiste em dar ritmo ao filme? A trilha sonora que
procura situar a ação histórica e culturalmente, dita
um clima estranho para o desenrolar dos eventos para
Moisés. Toda a animação dos flertes com as prostitutas,
e das implicâncias com a vizinha que virá a posar de
primeira namoradinha, não rima com o mau-humor e a negligência
paterna, nem com as conversas propostas pelo Sr. Ibrahim.
Há um descompasso de atmosferas. Dupeyron parece oscilar
entre a vontade de fazer um filme claro, alegre, dançante
e bem-disposto, e o interesse pelos meandros da vida
interior mais sujeitos à penumbra. E se em O Quarto
dos Oficiais seu exagero formalista casava perfeitamente
com o ânimo pesado e soturno de sua narrativa e de seus
personagens, neste último filme, qualquer esforço de
atenção à forma parece forçado e inadequado, autoconsciente
de maneira indesejada.
O que temos em Amizade sem Fronteiras – embora
Dupeyron afirme que está “pronto para falar do desespero
humano, desde que os personagens destruídos se reconstruam”
– não é o acompanhamento do estado de espírito de um
personagem que cai e se levanta, ou melhor, que é derrubado
por muitos e levantado por alguém, como no filme anterior.
Porque não obstante o ótimo desempenho de Pierre Boulanger,
Moisés, apelidado de Momo pelo Sr. Ibrahim, não chega
a transmitir sofrimento algum, nem mesmo em sua incapacidade
de sorrir. E muito menos transmite a tal revitalização
impingida pelas “flores” que recebe do pai emprestado
– já que o seu, além de ausente, morre lá pra meados
do filme. O grande problema é que, apesar de tudo, precisamente
nada é transmitido propriamente.
Ineficiente na ausência de uma delicadeza tão necessária
à sua proposta, o filme termina como um grande ensaio
precoce e apressado. Nem fábula leve, nem poema das
agruras sutis do dia-a-dia que permeiam os pequenos
gestos. Tudo o que poderia haver de mais rico nas conversas
e trocas de olhares entre o menino judeu e o velho muçulmano,
que, fora de seu tradicional espaço de convivência forçada
e conflito habitual, desenvolvem uma afetuosa relação,
esvai-se em uma má condução dos tempos e das ações.
Isto acarreta uma inconsistência dos próprios personagens,
que não passam muito da caracterização factual em traços
rápidos e simples, sofrendo de falta de densidade, sobretudo
emocional, apesar da atuação competente de ambos os
protagonistas.
Assim sendo, qualquer parábola política que pudesse
ser arriscada, em tempos de guerras e de fundamentalismos,
também esvai-se nestas lacunas. O patente e simpático
esforço em atrair a atenção para belos e sábios dizeres
do Corão, como forma de ensaiar uma aproximação com
este outro tão irredutível, este eterno inimigo das
terras de lá, esta aparente ameaça constante, feita
invisível, acaba não passando muito de um fato de roteiro,
possibilitador do caráter iniciático que, bem ou mal,
a relação dos dois termina por assumir. A viagem para
a Turquia ao final do filme arremata este “aprendizado”
de Momo, pouco contribuindo para o prolongamento do
aspecto metafórico que um tal acontecimento poderia
significantemente vestir: o muçulmano que guia o ocidental
para uma visita à sua terra.
Este se deixa levar pela mão, desarmado; entregue à
curiosidade e à beleza, penetra indefeso este solo desconhecido.
Adota como pai este homem mais velho, de cultura tão
antiga, e deixa-se fascinar pelas cativantes palavras
de um livro misterioso, que, dizem, incita muitos à
violência, sendo a grande razão de tanto mal – um mal
que os ditos de um livro já muito conhecido e já um
tanto ineficiente poderiam quem sabe ser capazes de
eliminar. Permite-se mudar em virtude de belos dizeres
que afetariam a vida de qualquer alma mais sensível.
No entanto, a sensibilidade da película de Dupeyron
é quase que apenas para a luz. O sol marca presença
efetiva, bem ao contrário de O Quarto dos Oficiais;
as cores querem deixar tudo menos duro e menos frio,
o mundo menos cruel e menos estático. Mas, no final
das contas, o que impregna o ar é uma certa indiferença,
meios-tons pálidos e insossos, compassos quase letárgicos
e a certeza de um bom filme perdido em algum lugar...
Tatiana Monassa
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