Construtor de um cinema sempre
calcado na elaboração de cenas e diálogos, modelado
ao máximo pelo roteiro e na montagem, com uma herança
do teatro na disposição dos atores no espaço e na exposição
da cenografia, e com um senso de cortes responsável
pela musicalidade das conversas, Almodóvar tem dado
sinais de disposição em expressar-se mais com a câmera,
em dar à mise-en-scène um valor maior,
sem com isso diminuir a importância do esqueleto verbal-cênico
dos filmes. Esse desejo maior pela imagem é em Má
Educação somado à obsessão pela representação. Nos
filmes de Almodóvar, sempre há figuras narradoras-encenadoras
(escritores, atores, cantores, performers). Sempre se
mostra como a aparência esconde algo nela mesmo (não
por trás dela). Má Educação, tomando como ponto de partida
A Lei do Desejo,
eleva a aparência a tema. E tanto a encenação como o
roteiro propõe o jogo da representação dentro da representação.
Isso explica a insistência em filmar formas-enquadramentos,
como as imagens de portas, grades, beliches, arcos de
uma ponte e toda sorte de moldura para se explicitar
a lógica das janelas dentro das janelas (da narrativa
dentro de narrativa). O cineasta permanece, porém, um
autor da palavra. É por meio das narrações escritas
ou faladas que se desenvolve o jogo de simulações-revelações.
A primeira se dá com a leitura do roteiro de Inácio-Angel
pelo diretor Enrique. A segunda pela leitura de um romance
de Inácio por parte de Padre Manolo, trecho este contido
no roteiro escrito por Angel e lido por Enrique. A terceira
pela narração falada do padre Manolo a Enrique. Além
desses três personagens, há a narração ocasional de
Enrique, que entra duas vezes como uma voz narradora,
e há a narração sem voz de Almodóvar, olhar objetivo
da narrativa, que organiza os desejos e atitudes desgovernados.
Esse acúmulo de vozes e olhares inibe qualquer cobrança
de rigor e coerência em relação aos narradores. Eles
se sobrepõem, se sobrepujam.
Há um corte do letreiro inicial para um cartaz com o
nome de Enrique Godet. Este corte aumenta ironicamente
a proximidade entre diretor e personagem: Godet torna-se
Almodóvar. Mas, na tela, o tom confessional-autobiográfico
é exorcizado. Poucas vezes o cineasta manteve uma relação
tão distante e racional, tão pouco emocional no tratamento
estético de um roteiro. Conta-se uma história “qualquer”,
não a história pessoal de Almodóvar, como tanto se escreveu,
apesar das esquinas de percurso biográfico entre ele
e os personagens (alunos de colégio de padre). Todas
as paixões são racionalizadas no esquematismo dramático
e narrativo com o qual Almodóvar vê de fora seu ponto
de partida autobiográfico, É um filme da razão sobre
a paixão, sem paixão pelo seu tema, mas pelo tratamento
do tema. Almodóvar está apaixonado pela própria narrativa
em Má Educação,
pela capacidade de criar um jogo fabular com uma lógica
matemática de roteiro, pela disposição de criar efeitos
artísticos na construção dos planos e fusões. Resultaria
disso um projeto afetado e inócuo se não houvesse paixão
nessa experiência. Há. A beleza dessa paixão apenas
desloca-se dos personagens para a forma. “Pasión” é,
afinal, a palavra estampada na tela ao fim do filme,
antes de ser seqüenciada por “Una Película de Pedro
Almodóvar”.
Em geral despido de julgamentos sobre as atitudes dos
personagens, mesmo as condenadas pelo senso comum, Almodóvar
revela aqui menos afeto por suas criações humanas, mostrando-as
agora com maior posicionamento dele como autor. Seu
universo dramático valoriza o lado torto de cada um,
ora por causa da paixão (o padre Manolo), ora por conta
de uma funcionalidade (Juan-Angel), misturada à uma
paixão por representar. O mundo não é de confiança em
Má Educação.
Mas a dignidade do cineasta está em julgar menos o padre
bissexual, afinal movido por uma grande pulsão (chora
ao ouvir o menino de seus sonhos cantando), e ser mais
duro com o inventor de identidades de ocasião (Juan-Angel),
que mantém-se cerebral mesmo em sua paixão pela simulação.
Um está fora de controle; o outro tem controle sobre
tudo. E o controlador Almodóvar, que tem amor sim por
seus personagens, mas sempre os trata como marionetes
humanizadas, certamente se vê em Angel-Juan (um manipulador
de imagens e versões) mais até que em Enrique Godet,
o manipulador que se faz de manipulado, mas no fundo
realmente o é. E voltamos a essa questão da manipulação,
quando, diante de máscaras gigantes e sorridentes, Juan
pergunta a Manolo: “do que eles riem?” Resposta: “de
nós”. Na resposta, fala a marionete, impotente diante
de Deus (Almodóvar, em última instância).
Pelos cenários multi-coloridos, os personagens, com
seus figurinos de cores fortes, desfilam suas aparências-despistes,
uns manipulando os outros, outros manipulando por se
fingirem manipulados, todos sabendo mais que demonstram
saber. No lugar da femme-fatale, aquela figura
sedutora e indigna da confiança do herói, temos um gay-fatale
(Gael Garcia Bernal), cuja arma(dilha) está em, conforme
a necessidade e por paixão pela simulação, mudar de
identidade. Não é a primeira vez que o noir encontra
o melodrama em Almodóvar: são dois gêneros dos quais
o cineasta se serve bem, em sua abolição de qualquer
fronteira entre alta e baixa cultura – seu universo,
afinal e sobretudo, é o do imaginário B. Mas não se
trata de emular convenções do noir, e, sim, limitar-se
à utilização de sua dramaturgia, adaptando as sombras
a um espaço solar não despido de sombras outras.
Cada novo filme de Pedro Almodóvar, desde a segunda
metade dos anos 80, não é só um “novo filme de Almodóvar”,
mas a confirmação ou a ameaça de um projeto artístico,
um sintoma de seu progresso ou de seu declínio, a manutenção
renovada da grife ou o indício de seu desgaste – e o
fim de Almodóvar, ao menos como vitalidade artística,
foi decretado ocasionalmente. Nos últimos anos, desde
pelo menos A Flor do Meu Segredo, Almodóvar ganhou
status de mestre (outra espécie de morte artística),
graças sobretudo a Tudo sobre Minha Mãe e Fale com Ela, seus chamados filmes de maturidade,
nos quais coloca todas as tensões internas em equilíbrio.
Houve quem dissesse ou tenha escrito que ele não tinha
mais como errar: era só ligar o piloto automático.
No entanto, em vez de optar pelo vôo fácil, sem turbulências
no percurso, Almodóvar optou pela manobra arrojada,
que, embora se sustente por um esquema rígido de organização
criativa (mais ainda), não se poupa dos riscos da empreitada.
Má Educação é um retorno do cineasta ao
período de La Movida, nos anos 80, quando a cultura
do travestimento tinha status libertário – uma reação
ao represamento comportamental após quatro décadas de
franquismo. Almodóvar, como artista, foi formado nesse
momento histórico e nessa cena cultural de criações
e atitudes sem limites delineados, e traz como herança
até hoje, mesmo nos momentos mais sofisticados, algo
da vulgaridade do baixo pop madrilenho – o qual transformou
em arte, não sem perda de uma rebeldia sem muito freio,
mas com a conquista de uma maturidade de estilo. A arte
de confecção racionalista pode, como vemos em Má Educação, também ser uma aventura artística:
talvez seja obra de teste, com seu risco procurado no
esquematismo (com ameça de
esterilidade, de racionalismo excessivo). Talvez
seja ainda o exercício de uma habilidade querendo provar
algo a si mesma, querendo mostrar como pode se ter paixão
no distanciamento, por mais paradoxal que isso possa
parecer.
Cléber Eduardo
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