LOVESONG

Talvez os sentimentos sejam melhor capturados e transmitidos em música. E talvez por isso Wong Kar-wai, para fazer um cinema de amor, tenha se aliado tão intimamente à música. Em seus últimos quatro filmes: Amores Expressos, Anjos Caídos, Felizes Juntos e Amor à Flor da Pele, a música desempenha um papel fundamental na "narrativa", para muito além de criar ambiência ou marcar momentos-chave. Música e imagem encontram-se tão intimamente ligados que é impossível pensar em um sem o outro, é impossível ouvir os sentimentos dos personagens sem o contato com as notas musicais que os pontuam. Cada um dos filmes caminha num ritmo musical próprio, dosando o tempo da montagem e o timbre das imagens de acordo com as canções que ocupam a banda sonora. Os seus personagens se movimentam conforme os acordes das músicas que habitam seu dia-a-dia e seus corações. São as canções às quais eles se apegam que os possibilitam reconhecer em si mesmos o que sentem em relação a si, ao mundo e ao outro e que os possibilitam expressar estes sentimentos.

Em Amores Expressos, é "California Dreaming", do The Mamas and the Papas tocando alto e incessantemente no CD player de Faye Wong. Tão alto que dificulta sua comunicação com o policial 663, obrigando-os a chegarem mais perto um do outro. É o CD que ela esquece na casa dele e que denuncia seu carinho à distância. É o próprio conto do seu desejo de ir para Los Angeles, porque lá faz sempre sol. Há também a versão em cantonês da própria Faye para "Dreams", do Cranberries, que vai e vem na trilha sonora. E a jukebox da lanchonete que marca a eterna espera pelo amor que não vem. A música se confunde com os personagens a tal ponto, que não mais sabermos se a trilha é diegética ou não diegética.

Em Anjos Caídos é a presença constante de canções diversas que organizam o ritmo e a dança das imagens, num casamento totalmente videoclíptico, marcando o movimento frenético dos personagens solitários no submundo de Hong Kong, em busca de alguma companhia. Aqui a figura da jukebox é recorrente e é o código de uma determinada música a mensagem que Hitman deixa para Michelle no balcão do bar, como forma de expressar a impossibilidade do seu amor.

Em Felizes Juntos são os tangos e a música de Piazzola que traduzem a vivência de Lai e Ho do espaço estrangeiro da Argentina. Os tangos que tocam no bar onde Lai vai trabalhar. A dança na cozinha. E a versão de Frank Zappa para a música que dá título ao filme, "Happy Together", de The Turtles, além de ilustrar o filme todo, embala a viagem de Lai dentro do ônibus no plano final, sozinho, rumo ao futuro.

Em Amor à Flor da Pele é "Yumeji’s theme" de Shigeru Umebayashi (trilha do Yumeji de Seijun Suzuki) pontuando o andar em câmera lenta de Maggie Cheung e Tony Leung. É a belíssima trilha de Michael Galasso povoando a solidão e a melancolia da seqüência no templo de Angkor Wat. É toda a recriação sonora do ambiente da Hong Kong dos anos 60, com a forte presença do rádio, onde canções tradicionais e populares anunciam o "tempo das flores" (nome original do filme), o tempo de se apaixonar. Nat King Cole também compunha este cenário e está presente na trilha, com "Quizas, quizas, quizas" e "Aquellos ojos verdes". E, para completar, o título internacional do filme, in the mood for love, vem também de uma canção homônima, um antigo jazz redescoberto por Wong em regravação recente de Brian Ferry, que embala, com total majestade, o trailer de cinema.

Estes filmes e seus intérpretes respiram tanto ao sabor das músicas, que Faye Wong e Tony Leung são de fato cantores pop de grande sucesso em Hong Kong e Rebecca Pan, senhoria de Maggie Cheung em Amor à Flor da Pele, foi uma grande estrela da música chinesa na década 60, exatamente o período retratado no filme.

O imbricamento íntimo entre música e filme desenvolvido por Wong Kar-wai é tal, que a gama de sentimentos provocadas por estes multiplica-se e ecoa em nós mesmos após a saída do cinema. Pois provavelmente as canções ficarão na cabeça por algum tempo e evocarão as imagens e os personagens e suas vivências. Porque para fazer um filme de amor, nada melhor do que transformá-lo em uma canção.


Tatiana Monassa