No começo era a palavra.
Em off: um educado senhor saído dos documentários
da BBC ou do Animal Planet nos fala da quantidade de
refugiados no mundo, da condição de refugiado,
quantos refugiados o Paquistão ou a Ásia
inteira abrigam, coisas assim. Mas, como o filme não
poderá tratar de todos os refugiados, ele escolhe
metonimicamente apenas um dentre eles, e decide filmar
sua tentativa de saída do campo de refugiados
em que vive para a esperança de uma vida melhor
na Europa. A escolha não é arbitrária:
dentre todos os refugiados no mundo, Neste Mundo
decide pegar um adolescente como seu objeto. Novo
demais para ser responsabilizado por atos irrefletidos
e velho o suficiente para desempenhar valores de vigor
e independência, nosso protagonista ganhará
com facilidade os corações e mentes do
espectador.
O que incomoda mais neste filme de Michael Winterbottom,
para além de todo panfletarismo humanitário,
é o completo caráter icônico que
tudo assume diante da tela. Não vemos diante
de nós seres humanos, vemos refugiados, com carimbo
estampado na testa. Não vemos países com
particularidades, vemos o carimbo (literalmente) estampado
na tela nos localizando geograficamente – mesmo que
seja para nos dizer que no Paquistão, no Irã,
na Turquia ou em Triste todo mundo é igual.
O pior tipo de filme de contestação é
aquele em que o fator humano (o fato de que as pessoas
existem, importam, têm sentimentos, seguem suas
vidas, etc.) é ignorado ou colocado em segundo
plano diante da cartilhazinha programática que
se está tentando pregar. E assim, diante de um
universo humano rico e diverso, passamos a observar
tão-somente o homem enquanto estigma, enquanto
material simbólico para se exprimir aquilo que
se quer dizer. Tipologia das mais nefastas – e que infesta
grande parte do cinema de esquerda no mundo, dos anos
50 até hoje –, insiste em crer que o discurso
sobre o mundo é mais importante que o mundo porque
lhe dá a chave de decifração, quando
trata-se de apenas uma lacunar e esburacada tentativa
(honrada, claro) de compreender e lidar melhor com a
vida.
Mas Michael Winterbottom, para além de toda operação
de signos que reduz a vida humana a mero estigma político,
ainda consegue ser muito daninho em seus próprios
termos, isso é, como cineasta, manipulador da
forma fílmica. Neste Mundo parte de um
princípio formal muito simples, aquilo que precipitadamente
poderíamos chamar de um dispositivo, uma maneira
de apreender a diversidade a partir de alguns dados
de partida que já ordenem esse mundo de uma forma
específica desejada. Winterbottom decide, para
filmar os refugiados, utilizar o vídeo digital,
a câmera no ombro se deslocando o tempo todo à
maneira das reportagens, e a forma narrativa do diário
– com datas específicas e o ano, 2002, inclusive
– para estruturar o roteiro. Naturalmente, tal como
em Domingo Sangrento, trata-se de aproveitar-se
de um determinado repertório de imagens tidas
como verossímeis para "agregar valor"
(ugh!) de "realidade" à trama. Aqueles
que se querem deixar seduzir, claro, embarcam: descobriram
os refugiados, eles existem! E como sofrem!
Poderíamos aqui estabelecer uma distinção
que nos parece bem clara entre os cineastas que se utilizam
de alguns princípios formais reguladores da obra
cinematográfica para ordenar o mundo conforme
seus objetivos. O primeiro seria o dos sinceros utilizadores
do dispositivo: através de um procedimento simples
e às claras – acompanhar os estudantes em suas
perambulações pelo colégio, câmera
na mesma altura em Elefante de Gus Van Sant,
plano seqüência dentro do carro em Dez
de Abbas Kiarostami –, utilizar o sucinto número
de escolhas expressivas de apreensão do real
para abrir para a diversidade do mundo e para sua inexplicabilidade.
Do outro lado, a falsa generosidade e a arrojada trama
formal só servem para nos enclausurar numa cela
junto com os pesadelos (obsessões, diriam para
minimizar) dos diretores (o refugiado como eterno outro
das almas caridosas em Neste Mundo, mas também
a humanidade como mundo-cão cenográfico
em Dogville, a vida como ampulheta deformada
em Irreversível), transformando a diversidade
do mundo em um teatrinho onto-ideo-lógico espúrio
e eticamente vergonhoso.
Neste Mundo só faz sentido para quem jamais
considerou os refugiados como problema (e, há
de convir, na Europa isso é como jamais nunca
ter se preocupado com "fome" no Brasil). Por
que, para além dos efeitos de sensação
e do bafafá do lançamento o filme, alguém
iria começar a se preocupar agora? Francamente,
Neste Mundo não passa de fetiche para
aqueles que gostam de se enternecer com a penúria
material dos outros.
Ruy Gardnier
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