NESTE MUNDO
Michael Winterbottom, In this world, Inglaterra, 2003

No começo era a palavra. Em off: um educado senhor saído dos documentários da BBC ou do Animal Planet nos fala da quantidade de refugiados no mundo, da condição de refugiado, quantos refugiados o Paquistão ou a Ásia inteira abrigam, coisas assim. Mas, como o filme não poderá tratar de todos os refugiados, ele escolhe metonimicamente apenas um dentre eles, e decide filmar sua tentativa de saída do campo de refugiados em que vive para a esperança de uma vida melhor na Europa. A escolha não é arbitrária: dentre todos os refugiados no mundo, Neste Mundo decide pegar um adolescente como seu objeto. Novo demais para ser responsabilizado por atos irrefletidos e velho o suficiente para desempenhar valores de vigor e independência, nosso protagonista ganhará com facilidade os corações e mentes do espectador.

O que incomoda mais neste filme de Michael Winterbottom, para além de todo panfletarismo humanitário, é o completo caráter icônico que tudo assume diante da tela. Não vemos diante de nós seres humanos, vemos refugiados, com carimbo estampado na testa. Não vemos países com particularidades, vemos o carimbo (literalmente) estampado na tela nos localizando geograficamente – mesmo que seja para nos dizer que no Paquistão, no Irã, na Turquia ou em Triste todo mundo é igual.

O pior tipo de filme de contestação é aquele em que o fator humano (o fato de que as pessoas existem, importam, têm sentimentos, seguem suas vidas, etc.) é ignorado ou colocado em segundo plano diante da cartilhazinha programática que se está tentando pregar. E assim, diante de um universo humano rico e diverso, passamos a observar tão-somente o homem enquanto estigma, enquanto material simbólico para se exprimir aquilo que se quer dizer. Tipologia das mais nefastas – e que infesta grande parte do cinema de esquerda no mundo, dos anos 50 até hoje –, insiste em crer que o discurso sobre o mundo é mais importante que o mundo porque lhe dá a chave de decifração, quando trata-se de apenas uma lacunar e esburacada tentativa (honrada, claro) de compreender e lidar melhor com a vida.

Mas Michael Winterbottom, para além de toda operação de signos que reduz a vida humana a mero estigma político, ainda consegue ser muito daninho em seus próprios termos, isso é, como cineasta, manipulador da forma fílmica. Neste Mundo parte de um princípio formal muito simples, aquilo que precipitadamente poderíamos chamar de um dispositivo, uma maneira de apreender a diversidade a partir de alguns dados de partida que já ordenem esse mundo de uma forma específica desejada. Winterbottom decide, para filmar os refugiados, utilizar o vídeo digital, a câmera no ombro se deslocando o tempo todo à maneira das reportagens, e a forma narrativa do diário – com datas específicas e o ano, 2002, inclusive – para estruturar o roteiro. Naturalmente, tal como em Domingo Sangrento, trata-se de aproveitar-se de um determinado repertório de imagens tidas como verossímeis para "agregar valor" (ugh!) de "realidade" à trama. Aqueles que se querem deixar seduzir, claro, embarcam: descobriram os refugiados, eles existem! E como sofrem!

Poderíamos aqui estabelecer uma distinção que nos parece bem clara entre os cineastas que se utilizam de alguns princípios formais reguladores da obra cinematográfica para ordenar o mundo conforme seus objetivos. O primeiro seria o dos sinceros utilizadores do dispositivo: através de um procedimento simples e às claras – acompanhar os estudantes em suas perambulações pelo colégio, câmera na mesma altura em Elefante de Gus Van Sant, plano seqüência dentro do carro em Dez de Abbas Kiarostami –, utilizar o sucinto número de escolhas expressivas de apreensão do real para abrir para a diversidade do mundo e para sua inexplicabilidade. Do outro lado, a falsa generosidade e a arrojada trama formal só servem para nos enclausurar numa cela junto com os pesadelos (obsessões, diriam para minimizar) dos diretores (o refugiado como eterno outro das almas caridosas em Neste Mundo, mas também a humanidade como mundo-cão cenográfico em Dogville, a vida como ampulheta deformada em Irreversível), transformando a diversidade do mundo em um teatrinho onto-ideo-lógico espúrio e eticamente vergonhoso.

Neste Mundo só faz sentido para quem jamais considerou os refugiados como problema (e, há de convir, na Europa isso é como jamais nunca ter se preocupado com "fome" no Brasil). Por que, para além dos efeitos de sensação e do bafafá do lançamento o filme, alguém iria começar a se preocupar agora? Francamente, Neste Mundo não passa de fetiche para aqueles que gostam de se enternecer com a penúria material dos outros.

Ruy Gardnier