Há muitas razões para se dizer
que Os Incríveis é um filme especial, sobretudo se considerado
o cenário da animação em longa-metragem estabelecido
hoje no cinema americano. Ora, este campo não tem criado
autores reconhecidos. Diferentemente de em um certo
“cinema de animação de arte”, que traz Hayao Myiazakis
ou Sylvain Chomets, é raro se apontar para um olhar
personalista nesses trabalhos.
Até porque dois discursos se tornaram padrão no olhar
sobre esses filmes. O primeiro é o da realização técnica.
Muito se fala, na era dos filmes digitais, das possibilidades
de invenção em um plano criado por computador, que permite
toda sorte de efeito especial em planos cada vez mais
cercados por uma reprodução especular do real (a iluminação
desses desenhos, por exemplo, é cada vez mais impressionante,
sobretudo em Procurando Nemo e Os Incríveis).
O segundo discurso é, curiosamente, de certa forma,
antitético ao primeiro – mas, ao mesmo tempo, é também
igualmente (e na mesma intensidade) recorrente: é o
comentário de que, no caso da Pixar (criadora não apenas
do peixinho Nemo e da família Incrível, mas dos personagens
de Toy Story 1 e 2 e de Monstros S.A,
entre outros), justamente a produtora mais elogiada
pela excelência visual (seja pela criatividade, seja
pelo rigor especular), o que conta não é o fato de que
se faz desenhos olimpicamente realizados no computador,
mas sim o de que os roteiros são bem cuidados.
Esse segundo comentário aponta para um traço de estabelecimento
desta atual onda de longas-metragens de animação: o
elogio ao roteiro é, em grande medida, elogio às falas,
aos personagens bem criados, mas que são, sobretudo,
bons falantes. Em grande medida, os desenhos mais elogiados
desta “retomada” - iniciada justamente por
Toy Story, em 1995 -
são admirados porque são comédias. Não apenas no sentido
em que fazem rir, mas porque são filmes que desestruturam
o sistema protagonista-antagonista-objetivo que marca
a dramaturgia dramática. E são assim, essencialmente
na fala e na referencialidade, quase como se fossem
sitcoms.
O que faz chegar a um traço obrigatório a ser observado
em Os Incríveis: ele dá um passo adiante em relação
ao universo da animação americana atual porque, embora
seja engraçado, não é uma comédia. Claro, não ser uma
comédia não é um bem a priori: não há demérito
nenhum em se fugir da estrutura tradicional, pelo contrário.
Mas o que torna o filme singular, e o que faz de Brad
Bird (que também havia dirigido o belo The Iron Giant,
estranhamente inédito no circuito comercial de cinema
no Brasil) o primeiro nome a ser destacado como autor,
depois de John Lasseter (de Toy Story 1 e 2),
é o fato de que ele se faz como um filme de estrutura,
um filme que se monta em um roteiro mais sistêmico do
que pontualmente atrelado às falas.
A começar porque Bird adotou uma estrutura rara para
seu trabalho: diferentemente do que se pode imaginar
em uma primeira olhada, Os Incríveis não é uma
sátira. Não é como The Tick, o desenho animado
iconoclasta sobre cruzados poderosos, mas bizarros.
Em vez disso, ele é um filme de gênero, um clássico
filme de super-herói. E como tal, trabalha com regras
de gênero: superpoderes simbólicos relacionados à personalidade,
alter-egos, um sistema de relações que se aproxima do
das divindades gregas, arquiinimigos.
O traço mais facilmente interessante do sistema montado
por ele, inclusive (e que é apontado como o traço mais
forte do filme), é o cruzamento entre dois gêneros:
o filme de super-herói com o de família/adolescentes.
Mas há uma regra de gênero sutilmente manipulada por
Bird e que, na verdade, dita toda a estrutura do filme
e que, talvez, seja a chave para sua verdadeira singularidade:
é a velha regra de que a origem do vilão está ligada
à origem do herói e que eles se espelham de alguma forma.
Ora, de imediato é fácil se dizer que os temas de fundo
do filme são as discussões sobre a responsabilidade
do poder e da necessidade de aceitação do diferente.
Mas olhe para o sistema de referências de Bird e para
os filmes de super-herói. Essas discussões se tornaram
regras de gênero: qualquer espectador de X-Men
as reconhece facilmente. Nesse sentido, o sistema de
família é mais um elemento no sistema de construção
do autor. Mas no caso da relação herói-vilão, esse sistema
começa a dar voltas sobre si mesmo e o filme começa
a se tornar algo mais complexo do que um filme de aventuras
qualquer (até porque um filme de aventura pode ser bem
complexo). Veja o que acontece: o fã fanático acompanha
e admira Sr. Incrível. Tenta estar nas mesmas cenas
que ele e quer se tornar seu ajudante ou coisa parecida.
Quer ser o Gurincrível, uma referência clara a seu objeto
de culto.
Neste momento, abre-se o primeiro traço inequívoco da
complexidade desta narrativa: o personagem que será
o vilão da história é mais humano que o herói. Ora,
ele quer provar (como Batman prova) que não é preciso
se ter superpoderes para se ser um herói. Ele quer lutar
contra a natureza de divindade (ou de seleção genética)
dos super-heróis – no limite, ele quer lutar contra
a predestinação (nesse sentido, sim, os Incríveis são
um protótipo de família americana educada pelo capitalismo
protestante). Quando cresce e se torna Síndrome (ótimo
nome, aliás, já que ele é de fato um conjunto de sintomas),
ele se revolta pela impossibilidade do heroísmo e se
constitui como supervilão, para poder se tornar super-herói.
E, mais que isso, constitui-se como super-herói fake,
constituído modelarmente por observação. Síndrome planeja
seus poderes, e constrói uma máquina que aprende com
seus erros; ou, para deixar claro, aprende a agir observando
as ações dos heróis contra elas.
Síndrome nasceu da ação desastrada do herói, uma regra
típica de gênero. Mas não se deve esquecer de um ponto
crucial: Os Incríveis é um filme de origem. Ele
conta a gênese de um grupo de heróis. O Sr. Incrível
que nasce dos anos de reclusão é outro e, veja, este,
por sua vez, é criado pela ação desastrada de Síndrome.
Igualmente a Mulher Elástica (Sra. Incrível), e mais
claramente os três infantes. Esse embate, como se vê,
é sobretudo moralmente intrincado, já que ao mesmo tempo
que se constitui como um personagem patológico, um fã
sem limites (como tem qualquer celebridade), Gurincrível
se mostra também como a face mais demasiadamente humana
possível. Ele é muito mais parecido com o homem do que
o super (über) homem que é Incrível.
Por isso mesmo, o sistema da vingança de Síndrome é
sempre tão ligado à referencialidade e, nesse sentido,
embora haja certa semelhança física entre o protagonista
e Bird, o alter-ego do autor está muito mais no vilão.
Bird e Síndrome são iguais: observam o mundo dos super-heróis
(um pela literatura o outro pelo noticiário) e dele
recortam traços funcionais (Bird, sua mecânica psicológica;
Gurincrível com mecânica e eletrônica imitativas) para
produzir encenações (o diretor, de um conto de aventura,
o vilão de uma aventura de fato).
Qual é o objetivo de Síndrome? Ser querido por ser responsável
pela salvação. No limite, ele não quer o mal, não quer
a destruição da cidade, pelo contrário, ele quer que
ela seja salva... por ele. É a única condição. E nesse
sentido, ele é tão inocente quanto os dois filhos mais
velhos de Helen, que lhes diz: “Sabe aqueles bandidos
de seriado que vocês vêem de manhã? Os de verdade são
diferentes, eles não vão hesitar em matar criancinhas
como vocês”. Igualmente, Síndrome acha que o super-herói
segue um roteiro, que o perigo pode ser controlado,
assim como as ameaças (o que não deixa de ser uma crítica
ao cinema de aventura americano, em que isso geralmente
acontece), como se a vida fosse um teatro de bonecos
com um final pré-estabelecido.
Pois eis aí o uso supremo da regra de gênero: o herói
sempre vence, é aquilo em que crê Síndrome. Não importa
o que está acontecendo, ele deveria vencer o robô. Mas
eis que ele criou sua ameaça justamente como um monstrometalingüístico
(tchan-rannnnnnnnn!!!): é pela negação de que o herói
vence que o robô é possível, pelo fato de que ele se
constitui pela reunião enciclopédica de todas as possibilidades
de vitória dos heróis. O monstro é, nesse sentido, o
Deep Blue. Embora possa ser apontado como uma sátira
a um limite muito sombrio do universo nerd, este vilão
é mais a porta para um jogo de espelhamento impressionante.
Síndrome e Incrível são não apenas as duas faces da
mesma moeda, mas são, sobretudo dois traços do mesmo
sistema, e de um sistema em círculos, que apaga as motivações
originais: quem veio primeiro, a galinha ou o ovo?
A resposta está, para Bird, não na genética dos frangos
e nem na estética dos ovais. Está no meio, no encontro
entre os dois. A origem está na galinha contida no ovo
e no ovo contido na galinha.
Alexandre Werneck
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