OS INCRÍVEIS
Brad Bird, The incredibles, EUA, 2004

Há muitas razões para se dizer que Os Incríveis é um filme especial, sobretudo se considerado o cenário da animação em longa-metragem estabelecido hoje no cinema americano. Ora, este campo não tem criado autores reconhecidos. Diferentemente de em um certo “cinema de animação de arte”, que traz Hayao Myiazakis ou Sylvain Chomets, é raro se apontar para um olhar personalista nesses trabalhos.

Até porque dois discursos se tornaram padrão no olhar sobre esses filmes. O primeiro é o da realização técnica. Muito se fala, na era dos filmes digitais, das possibilidades de invenção em um plano criado por computador, que permite toda sorte de efeito especial em planos cada vez mais cercados por uma reprodução especular do real (a iluminação desses desenhos, por exemplo, é cada vez mais impressionante, sobretudo em Procurando Nemo e Os Incríveis).

O segundo discurso é, curiosamente, de certa forma, antitético ao primeiro – mas, ao mesmo tempo, é também igualmente (e na mesma intensidade) recorrente: é o comentário de que, no caso da Pixar (criadora não apenas do peixinho Nemo e da família Incrível, mas dos personagens de Toy Story 1 e 2 e de Monstros S.A, entre outros), justamente a produtora mais elogiada pela excelência visual (seja pela criatividade, seja pelo rigor especular), o que conta não é o fato de que se faz desenhos olimpicamente realizados no computador, mas sim o de que os roteiros são bem cuidados.

Esse segundo comentário aponta para um traço de estabelecimento desta atual onda de longas-metragens de animação: o elogio ao roteiro é, em grande medida, elogio às falas, aos personagens bem criados, mas que são, sobretudo, bons falantes. Em grande medida, os desenhos mais elogiados desta “retomada” - iniciada justamente por Toy Story, em 1995 - são admirados porque são comédias. Não apenas no sentido em que fazem rir, mas porque são filmes que desestruturam o sistema protagonista-antagonista-objetivo que marca a dramaturgia dramática. E são assim, essencialmente na fala e na referencialidade, quase como se fossem sitcoms.

O que faz chegar a um traço obrigatório a ser observado em Os Incríveis: ele dá um passo adiante em relação ao universo da animação americana atual porque, embora seja engraçado, não é uma comédia. Claro, não ser uma comédia não é um bem a priori: não há demérito nenhum em se fugir da estrutura tradicional, pelo contrário. Mas o que torna o filme singular, e o que faz de Brad Bird (que também havia dirigido o belo The Iron Giant, estranhamente inédito no circuito comercial de cinema no Brasil) o primeiro nome a ser destacado como autor, depois de John Lasseter (de Toy Story 1 e 2), é o fato de que ele se faz como um filme de estrutura, um filme que se monta em um roteiro mais sistêmico do que pontualmente atrelado às falas.

A começar porque Bird adotou uma estrutura rara para seu trabalho: diferentemente do que se pode imaginar em uma primeira olhada, Os Incríveis não é uma sátira. Não é como The Tick, o desenho animado iconoclasta sobre cruzados poderosos, mas bizarros. Em vez disso, ele é um filme de gênero, um clássico filme de super-herói. E como tal, trabalha com regras de gênero: superpoderes simbólicos relacionados à personalidade, alter-egos, um sistema de relações que se aproxima do das divindades gregas, arquiinimigos.

O traço mais facilmente interessante do sistema montado por ele, inclusive (e que é apontado como o traço mais forte do filme), é o cruzamento entre dois gêneros: o filme de super-herói com o de família/adolescentes. Mas há uma regra de gênero sutilmente manipulada por Bird e que, na verdade, dita toda a estrutura do filme e que, talvez, seja a chave para sua verdadeira singularidade: é a velha regra de que a origem do vilão está ligada à origem do herói e que eles se espelham de alguma forma.

Ora, de imediato é fácil se dizer que os temas de fundo do filme são as discussões sobre a responsabilidade do poder e da necessidade de aceitação do diferente. Mas olhe para o sistema de referências de Bird e para os filmes de super-herói. Essas discussões se tornaram regras de gênero: qualquer espectador de X-Men as reconhece facilmente. Nesse sentido, o sistema de família é mais um elemento no sistema de construção do autor. Mas no caso da relação herói-vilão, esse sistema começa a dar voltas sobre si mesmo e o filme começa a se tornar algo mais complexo do que um filme de aventuras qualquer (até porque um filme de aventura pode ser bem complexo). Veja o que acontece: o fã fanático acompanha e admira Sr. Incrível. Tenta estar nas mesmas cenas que ele e quer se tornar seu ajudante ou coisa parecida. Quer ser o Gurincrível, uma referência clara a seu objeto de culto.

Neste momento, abre-se o primeiro traço inequívoco da complexidade desta narrativa: o personagem que será o vilão da história é mais humano que o herói. Ora, ele quer provar (como Batman prova) que não é preciso se ter superpoderes para se ser um herói. Ele quer lutar contra a natureza de divindade (ou de seleção genética) dos super-heróis – no limite, ele quer lutar contra a predestinação (nesse sentido, sim, os Incríveis são um protótipo de família americana educada pelo capitalismo protestante). Quando cresce e se torna Síndrome (ótimo nome, aliás, já que ele é de fato um conjunto de sintomas), ele se revolta pela impossibilidade do heroísmo e se constitui como supervilão, para poder se tornar super-herói. E, mais que isso, constitui-se como super-herói fake, constituído modelarmente por observação. Síndrome planeja seus poderes, e constrói uma máquina que aprende com seus erros; ou, para deixar claro, aprende a agir observando as ações dos heróis contra elas.

Síndrome nasceu da ação desastrada do herói, uma regra típica de gênero. Mas não se deve esquecer de um ponto crucial: Os Incríveis é um filme de origem. Ele conta a gênese de um grupo de heróis. O Sr. Incrível que nasce dos anos de reclusão é outro e, veja, este, por sua vez, é criado pela ação desastrada de Síndrome. Igualmente a Mulher Elástica (Sra. Incrível), e mais claramente os três infantes. Esse embate, como se vê, é sobretudo moralmente intrincado, já que ao mesmo tempo que se constitui como um personagem patológico, um fã sem limites (como tem qualquer celebridade), Gurincrível se mostra também como a face mais demasiadamente humana possível. Ele é muito mais parecido com o homem do que o super (über) homem que é Incrível.

Por isso mesmo, o sistema da vingança de Síndrome é sempre tão ligado à referencialidade e, nesse sentido, embora haja certa semelhança física entre o protagonista e Bird, o alter-ego do autor está muito mais no vilão. Bird e Síndrome são iguais: observam o mundo dos super-heróis (um pela literatura o outro pelo noticiário) e dele recortam traços funcionais (Bird, sua mecânica psicológica; Gurincrível com mecânica e eletrônica imitativas) para produzir encenações (o diretor, de um conto de aventura, o vilão de uma aventura de fato).

Qual é o objetivo de Síndrome? Ser querido por ser responsável pela salvação. No limite, ele não quer o mal, não quer a destruição da cidade, pelo contrário, ele quer que ela seja salva... por ele. É a única condição. E nesse sentido, ele é tão inocente quanto os dois filhos mais velhos de Helen, que lhes diz: “Sabe aqueles bandidos de seriado que vocês vêem de manhã? Os de verdade são diferentes, eles não vão hesitar em matar criancinhas como vocês”. Igualmente, Síndrome acha que o super-herói segue um roteiro, que o perigo pode ser controlado, assim como as ameaças (o que não deixa de ser uma crítica ao cinema de aventura americano, em que isso geralmente acontece), como se a vida fosse um teatro de bonecos com um final pré-estabelecido.

Pois eis aí o uso supremo da regra de gênero: o herói sempre vence, é aquilo em que crê Síndrome. Não importa o que está acontecendo, ele deveria vencer o robô. Mas eis que ele criou sua ameaça justamente como um monstrometalingüístico (tchan-rannnnnnnnn!!!): é pela negação de que o herói vence que o robô é possível, pelo fato de que ele se constitui pela reunião enciclopédica de todas as possibilidades de vitória dos heróis. O monstro é, nesse sentido, o Deep Blue. Embora possa ser apontado como uma sátira a um limite muito sombrio do universo nerd, este vilão é mais a porta para um jogo de espelhamento impressionante. Síndrome e Incrível são não apenas as duas faces da mesma moeda, mas são, sobretudo dois traços do mesmo sistema, e de um sistema em círculos, que apaga as motivações originais: quem veio primeiro, a galinha ou o ovo?

A resposta está, para Bird, não na genética dos frangos e nem na estética dos ovais. Está no meio, no encontro entre os dois. A origem está na galinha contida no ovo e no ovo contido na galinha.

Alexandre Werneck