Nos
filmes de F.W. Murnau disponíveis em vídeo
e em DVD no Brasil Nosferatu, A Última
Gargalhada, Tartufo, Fausto, Aurora
e Tabu apresenta-se o conflito entre natureza
e civilização ou, mais precisamente, entre
a busca pelo olhar inocente e o artificialismo que regula
e que sustenta as relações dos homens
em sociedade.
Tabu, último longa-metragem de Murnau
(morto em acidente de carro, na semana anterior ao lançamento,
aos 43 anos), co-dirigido por Robert J. Flaherty e
cuja produção, esmiuçada pelo documentário
que acompanha a cópia em DVD da Magnus Opus,
rompe com o sistema de estúdios vigente em Hollywood,
o qual perdura inabalável até a década
de 50 , exemplifica com clareza as intenções
do cineasta, posto que retrata a luta do jovem casal,
em ilha paradisíaca no Taiti, contra a Lei que,
de forma implacável, coloca-se entre eles. Assim,
de um lado, há o amor puro, virginal , força
transcendente pois verdadeira, já que se fundamenta
nas emoções e nos sentimentos, de outro,
existe o código que o reprime, uma vez que se
baseia na ilusão, nos artifícios criados
pela racionalidade humana para, através da interdição
da mulher escolhida pelos deuses, manter a unidade cultural
dos vários povoados dispersos pelas ilhas. É
preciso reparar, de fato, que se trata de rito construído
socialmente, embora naturalizado a fm de não
o parecer, no qual a ira divina serve de justificativa
para as regras elaboradas pela comunidade para controlar
a si própria.
O amor também se encontra no centro de Aurora
e de Fausto. Em Aurora primeiro filme
de Murnau nos EUA, com carta branca da Fox para inovar
(Oscar de melhor produção artística,
fotografia e atriz, para Janet Gaynor) a união
do casal, que vive no campo, é ameaçada
pela amante proveniente da cidade, despertando no marido
o sonho pela agitação urbana. Murnau opõe
a eternidade do amor entre os protagonistas simbolizada
no re-casamento na igreja, seguida da inserção
de travelling do casal caminhando em imagem de rua movimentada
(de maneira que carros e bondes literalmente passam
através dele, como se estivesse para além
daquele lugar), até o beijo que paralisa o mundo,
em seqüência das mais extraordinárias
do cinema à efemeridade do meio urbano, mundano
e frívolo por excelência. Notável,
e ousado, que ainda em 1927 Murnau discuta e expresse
visualmente o que Simmel, Benjamin e Kracauer identificam
como "hiper-estímulo" proporcionado
pela cidade, a saber, a superexcitação
dos sentidos por meio, sobretudo, do aumento da velocidade
e dos choques sensoriais advindos com a era moderna
a viagem de bonde que leva George OBrien e Janet
Gaynor do campo para a cidade, a qual transcorre a partir
de suaves mudanças na paisagem exterior, sintetiza
séculos de movimentos migratórios, desde
os cercamentos na Inglaterra seiscentista. Já
em Fausto, Murnau aponta o amor do herói
por seu par romântico sentimento que assume
a pura abstração, ao final, visto que
se representa através da palavra "liebe"
escrita na tela enquanto única força
capaz de libertar o personagem título da dominação
nefasta de Mefistófeles (Emil Jannings que, como
em A Última Gargalhada e em Tartufo,
tem atuação impressionante) e, por conseguinte,
redimir a humanidade de suas faltas e de seus sofrimentos.
Da mesma forma que ao marido de Aurora, são as
tentações mundanas que afligem Fausto,
o qual acaba seduzido pela aparência de juventude,
e pela chance de dela usufruir, oferecida pelo demônio.
A realidade enquanto artifício, a civilização
como aparência. Em A Última Gargalhada,
a falsa posição social pois seja na
portaria do hotel Atlantic ou no banheiro, Jannings
jamais deixa de ser proletário adquirida pelo
personagem principal por intermédio do uniforme,
a qual desmorona frente à descoberta da farsa
pelos vizinhos hipócritas. Em Tartufo,
o moralista aproveitador do filme exibido para a empregada
interesseira, que pouco a pouco envenena o patrão,
e o põe contra o sobrinho, a fim de adquirir
a herança. Em ambos os filmes, como também
nos demais, está em jogo o questionamento da
moral humana. Os amantes devem fugir, mesmo que sob
risco da morte, ou se submeter à Lei em Tabu?
O marido afoga a esposa e marcha para a cidade ou a
reconquista, pedindo-lhe perdão, em Aurora?
A heroína necessita realmente se entregar em
sacrifício a Orlok, símbolo máximo
das paixões mundanas e sexuais na obra do cineasta
alemão, em Nosferatu?
É de Fausto, porém, a representação
mais clara, no cinema de Murnau, dos dilemas morais
que afetam o homem. Paraíso e Inferno, Anjo e
Demônio: a oscilação humana entre
ambos, dada nossa procura pelo mínimo de felicidade,
e a batalha perpétua da verdade contra a mentira,
da inocência contra o artifício, da natureza
contra a civilização.
Kammerspiel e ousadias visuais / narrativas.
F.W. Murnau é marcado pelo kammerspiel, cinema
realista, em oposição ao expressionismo
então em voga na Alemanha. Realismo, porém,
que se caracteriza pelas ousadias narrativas (a importância
do roteirista Carl Mayer, com quem o diretor trabalha
em A Última Gargalhada, Tartufo e
Aurora) e visuais, em virtude do privilégio
atribuído ao movimento, seja dos elementos plásticos
dentro do quadro, seja da câmera em si (a participação
do fotógrafo Karl Freund em A Última
Gargalhada e em Tartufo).
Os filmes iniciais de Murnau, Der Knabe in Blaue
(1919) e Satanas (1920) ambos escritos
por Robert Wiene , aliam-se à vanguarda expressionista
alemã. Já em Nosferatu, contudo,
o diretor se afasta da tendência, aproximando-se
do kammerspiel, do cinema realista / naturalista. Desse
modo, antes dos cenários distorcidos que tentam
romper com a perspectiva renascentista em, por exemplo,
O Gabinete do Doutor Caligari (1919), de Wiene,
e O Golem (1920), de Paul Wegener, tem-se a procura
por ambientes reais, sobretudo por meio de locações.
Às interpretações e caracterizações
exageradas daquela, tanto no gestual quanto na maquiagem,
predominam, neste, a contenção emocional
griffithiana e os personagens de rostos limpos, com
nada além de base corretiva (as atuações
dos casais protagonistas, em Aurora e em Tabu,
são naturais e despojadas ao extremo). O kammerspiel,
enfim, calca-se na verossimilhança da imagem.
Ao contrário de O Gabinete do Doutor Caligari,
que utiliza espaços disformes como projeções
dos sentimentos dos personagens sobre o mundo (e tudo
se revela devaneio da mente enlouquecida de Caligari),
em Nosferatu Murnau registra a presença
fantasmática de Orlok em ambientes absolutamente
críveis, onde prevalecem as filmagens em locações
nos Cárpatos, no navio-fantasma ou na cidade
de Bremen. Mesmo quando em interiores, porém,
a realidade: ao invés de caminhos lúgubres
e tortuosos, cômodos amplos e iluminados, antíteses
do expressionismo.
O cinema representa o mundo que se descortina à
frente da câmera, de sorte que não interessa
a Murnau o real objetivo, e sim a realidade pró-fílmica,
a verdade do filme, o espaço cênico que
se constrói com a linguagem cinematográfica
e no qual os personagens estão mergulhados. Para
Murnau, o espaço verossímil em todos
os detalhes serve a fim de trabalhar com a dicotomia
entre o meio social artificialmente regulado e controlado
e a inocência com que os personagens o enxergam:
o interior simétrico do hotel Atlantic, em consonância
com as formas regulares da cidade e em contraponto ao
cortiço assimétrico onde habita o porteiro
em A Última Gargalhada; a visão
onírica do meio urbano pelo marido, e o conflito
com a cidade real, em Aurora; o burgo com os
pés no fantástico em Fausto; as
ilhas idealizadas do Taiti em Tabu.
Não espanta, assim, que Murnau considere os filmes
enquanto locais de experimentação, narrativa
ou visual. Quanto à narrativa, em A Última
Gargalhada, o epílogo, completamente dissonante
do resto da obra, em que o porteiro recebe herança
e torna-se milionário, ou o filme dentro do filme
em Tartufo, no qual se antecipa o distanciamento
brechtiano, pois o diretor não esconde tratar-se
o objeto visto na tela de nada além de pura encenação
(e a regra básica do cinema clássico-narrativo
não olhar para a câmera e, em conseqüência,
para a platéia é quebrada por Murnau).
Já em relação à visualidade,
o cineasta abusa do movimento, tanto dos elementos plásticos
que constituem o plano a cidade pulsante em Aurora,
a seqüência em que os habitantes da ilha,
na praia, lançam-se ao mar, enquanto o vento
balança as folhas das árvores e precipita
as ondas na areia, em Tabu quanto da câmera
o travelling que desce com o elevador e avança
pelo salão do hotel em A Última Gargalhada,
a panorâmica que acompanha a empregada pela escada
em Tartufo, o travelling, ponto de vista da canoa
do herói, que vislumbra o barco do homem branco
em Tabu.
Por fim, o que dizer dos prodigiosos planos ponto de
vista em Tartufo e em Tabu, pulverização
dos olhares dentro da narrativa que influencia o cinema
desde então? Ou da técnica de pixialization
(filmar atores quadro a quadro), hoje corrente na animação,
em Nosferatu? Ou, ainda neste filme, do impacto
dramático da viragem vermelha, índice
sanguinolento de Conde Orlok? Ou do trabalho com o fora-de-campo,
das entradas e saídas de quadro (o navio que
avança pelo plano em Nosferatu ou a mão
que, na cena capital de Tabu, surge para romper,
com a faca, a corda na qual se agarra o protagonista)?
Ou das estonteantes fusões de imagens em Aurora
e em Fausto?
Na sua Viagem Pessoal pelo Cinema Norte-Americano
(1995), Martin Scorsese classifica Aurora,
como também 2001: Uma Odisséia no Espaço
(1968), de Stanley Kubrick, como "poemas visionários".
Termo que se adequa à filmografia de Murnau,
diretor único, capaz de unir cinema narrativo
às experimentações de vanguarda.
Cartelas: texto e imagem.
Indagado sobre sua presença em congresso
de literatura, Jean-Luc Godard responde, em Nossa
Música (2004), que cinema é texto
e imagem. Afirmação que implica diferentes
leituras. A representação, na tela, dos
atos e dos personagens descritos no roteiro. A teoria
semiológica do cinema, cujo maior expoente é
Christian Metz, segundo a qual cada filme está
aberto às interpretações do espectador.
Por fim, a combinação de ambos os elementos
no quadro seja de forma plástica ou narrativa
com a qual a sétima arte trabalha desde antes
do advento do som.
No cinema mudo (como se chama, por convenção,
o período anterior a O Cantor de Jazz,
primeiro filme em escala industrial a sincronizar imagens
e diálogos através do processo Vitafone),
de vertente griffithiana, a palavra está em questão,
uma vez que D.W. Griffith sistematiza as leis que regem
o cinema clássico-narrativo a partir de estruturas
herdadas do romance melodramático do século
XIX: tramas centradas na ação externa,
com vários pontos de virada, personagens dotados
de profundidade psicológica, narração
invisível e busca da identificação
com o espectador através do estilhaçamento
dos pontos de vista dentro do filme, de modo que a linguagem
dominante se fundamenta sobre laços estreitos
entre cinema e literatura.
Não há sentido, dessa maneira, na acusação
comumente feita ao uso de cartelas pelo cinema mudo,
de que a incapacidade de narrar apenas por meio das
imagens levaria à utilização das
muletas encarnadas pelo texto escrito, o qual não
somente indica os diálogos (prática "corrigida"
com o surgimento do som), como também comenta
e mesmo induz os atos que se desenrolam na tela. Neste
sentido, Murnau seria o artífice da pura visualidade
na narração cinematográfica, dado
que em A Última Gargalhada e em Tabu,
por exemplo, prescinde das cartelas, ao escondê-las,
seja na cobertura do bolo ou na carta lida por Emil
Jannings no primeiro, seja nos livros, cadernos e pergaminhos
ao quais pontuam o segundo.
Murnau, porém, não nega a importância
da cartela: pelo contrário, ele significa o ápice
da relação entre texto e imagem travada
durante o cinema mudo, já que dá a ambos
o mesmo relevo. O cineasta, de fato, assume a dívida
de seu ofício para com as letras, tanto que concentra
as cartelas vistas no quadro (sempre a partir do olhar
dos personagens) sobretudo em suportes textuais livros,
cartas, cadernos, placas, quadros-negros, cartazes,
papéis que integram a diegese dos filmes. Em
outras palavras, antes de ocultar a necessidade do texto,
Murnau trata de ressaltá-lo, na medida em que
explicita sua natureza eminentemente literária.
Assim, já em Nosferatu, o livro sobre
vampiros que acompanha Hutter pelos Cárpatos
e que situa o público a respeito da verdadeira
condição do conde Orlok, ou o diário
de bordo do navio-fantasma, que descreve os acontecimentos
da viagem a Bremen. Em A Última Gargalhada,
a carta que rebaixa o orgulhoso porteiro a trabalhar
no banheiro do hotel, enxugando as mãos dos clientes.
Em Tabu, a onipresente regra que persegue os
amantes em que lhes proíbe o casamento.
As cartelas nas obras do diretor alemão, contudo,
também adentram pela literatura concretista,
visto que valorizam o grafismo do texto. Em Aurora,
a frase que escorre pelo plano (quando da proposta para
que o marido afogue a esposa). Em A Última
Gargalhada, a câmera nervosa que percorre
a superfície do papel, letra a letra, rumo à
quase abstração da imagem. Em Fausto,
a própria conclusão do filme, a qual gira
em torno da palavra "liebe" (amor) emoldurada
por raios de luz. O texto, em suma, além da função
narrativa que exerce, igualmente enquanto elemento dramático,
posto que Murnau trabalha com o impacto emocional, no
espectador, das formas com que as cartelas se mostram
aos olhos destes.
Em 1974, Rainer Werner Fassbinder usa cartelas em Effi
Briest, as quais não apenas comentam ou induzem
as imagens, como também as substituem. Segundo
o cineasta, a intenção não é
narrar a história contada por Fontaine, mas sim
entendê-la através dos olhos do próprio
autor. A fusão entre cineasta e escritor, entre
imagem e texto, que F.W. Murnau, cinqüenta anos
antes, realiza com brilho inigualável.
Paulo Ricardo de Almeida
Nosferatu
Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens, 1922, Alemanha
(DVD/VHS Continental)
A Última Gargalhada
Der Letzte Mann, 1924, Alemanha
(DVD/VHS Continental)
Tartufo
Herr Tartüff, 1926, Alemanha
(VHS Continental, DVD Magnus Opus)
Fausto
Faust - Eine Deutsche Volkssage, 1926, Alemanha
(DVD/VHS Continental)
Aurora
Sunrise: A Song of Two Humans, 1927, EUA
(VHS Continental)
Tabu
Tabu: A Story of the South Seas, 1931, EUA
(VHS Continental, DVD Magnus Opus)
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