FABULAÇÃO IDENTITÁRIA...

... como gesto de afirmação política. Como ferramenta cinematográfica para a constituição de um discurso possível da diferenciação e do desvio. O real, como norma social já-dada é enfrentada através das fissuras possíveis da imaginação de personagens que se transmutam e se auto-fabulam, não se deixando domar por características redutivas de personalidade e/ou espaço social. Um certo cinema que aposta na possibilidade de personagens viventes de várias camadas de personalidade, que celebra o encontro da câmera com os corpos de seus personagens para além da narratividade direta. Seja o Madame Satã de Karim Ainouz, sejam os auto-falantes vivos de Coutinho, sejam os detentos do Carandiru de Paulo Sacramento, vê-se marcada a celebração da possibilidade de uma afirmação da vida para além dos clichês da marginalidade ou da exclusão social. As identidades auto-encenadas dos personagens de Coutinho, os fragmentos de vultos e afetos colhidos pelos auto-espiões de Sacramento e o carnaval poroso construído por Ainoüz/Lázaro Ramos, são sinais de um cinema cuja possibilidade política está além da síntese ideológica ou do denuncismo social, mas enquanto prática de amizade atualizada em forma urgente de cena, em que os personagens se tornam tão mais resistentes e positivos quanto mais se indispõem diante das identidades pró-postas para seus corpos e falas. Quando os entrevistados de Coutinho brincam de se inventar para a câmera, quando os detentos do Carandiru esboçam seus rostos e o de seus companheiros através de suas pequenas câmeras digitais, quando a imagem de Ainoüz/Carvalho transpira junto com o João Francisco frágil-forte revivido por Lázaro Ramos – o que se vê é um cinema onde as propostas de julgamento moral de um suposto real são deixadas de lado em nome de uma invenção nova que é antes de tudo de a uma estética e política da amizade, onde a câmera é antes uma catalisadora de verdades possíveis do que uma mera observadora ou determinadora do real. Filmes em que a narrativa persiste como uma modulação em mosaico de situações e passagens que não se articulam em forma de tese, mas de exercício de uma certa atmosfera, um certo afeto múltiplo e inconcluso em que a narrativa não desvela ou explica seus personagens enquanto psicologias já-postas. Mas os encontram e propõe faíscas, máscaras possíveis de identificação que são antes de tudo encenações superficiais e fabulosas de personagens que nunca se localizam por fim dentro do filme. Uma contra-afirmação da ideologia que dita uma suposta ausência de um cinema de interesses políticos no atual panorama do cinema, ou que vê como única alternativa política os tipos de ensaios panfletários que seguem os trilhos de Michael Moore ou os melodramas denuncistas de um certo cinema britânico. Ao invés de um cinema sobre política, um cinema em ato político, praça pública do encontro fortuito e amalgamado na imagem do cinema. Um jogo de trocas multilateralizado no qual os espectadores são convidados a embarcar, não como quem busca explicações ou gêneses, mas como quem busca a possibilidade de compartilhar as cenas e os afetos de personagens tão iguais quanto diferenciados deles, apostando na profundidade das superfícies. Uma política do superficial, do espaço público, em que a reflexão sobre o cotidiano não prescinde da imaginação. Fazendo deles, os atos críticos que compõe a possibilidade de uma revolução continuada de referências. Uma celebração dos teatros possíveis e das formas possíveis de seus agentes se encontrarem e se reinventarem em formas outras.

Felipe Bragança