ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE
Sidney Lumet, Murder on the Orient Express, EUA/Inglaterra, 1974

Foi dentro do rico e peculiar panorama do cinema americano de meados da década de 1970 que a carreira de Sidney Lumet parece ter atingido seu épice. Mas em meio a três contundentes dramas contemporâneos e urbanos – mais especificamente, novaiorquinos –, que foram Serpico (73), Um Dia de Cão (75) e Rede de Intrigas (76), Lumet apresentou este trabalho de tom completamente diverso e que, à primeira vista, chama atenção como um filme menor, aproveitando o modelo de utilização de um elenco multiestelar, seguindo o padrão de cinema-catástrofe tão em voga na época, para contar uma história de Agatha Christie.

A maioria das adaptações de novelas criminais da escritora inglesa pouco faz além de seguir a lógica limitada de seus textos, enfileirando de forma repetitiva um ou mais assassinatos, geralmente ambientados num fútil ambiente da burguesia britânica, seguindo-se uma investigação. Tudo visando o clímax onde se descobre o responsável pelos crimes, o chamado whudunit, tão execrado por Hitchcock. Apesar de inúmeras adaptações anteriores, apenas René Clair (O Último dos Dez) e Billy Wilder (Testemunha de Acusação) haviam conseguido realizar filmes relevantes partindo da obra de Christie.

A apresentação dos créditos de Assassinato no Expresso do Oriente, com sua música grandiloqüente, letreiros em art-deco e uma ficha técnica com alguns dos mais renomados técnicos que Hollywood podia oferecer sugere que estaremos diante de duas horas de rasa perfumaria. Uma vã impressão que felizmente se desvanece logo nos primeiros minutos. Um prólogo apresenta um caso de seqüestro, inspirado em fato real vivido pelo aviador Charles Lindberg, antecipando situações ligadas ao assassinato que depois virá a ocorrer. Isso já fornece chaves para a resolução do crime que a princípio deveriam ser apresentadas somente em um momento posterior da trama, sugerindo não ser essa resolução o gancho que irá dominar a narrativa. Logo com dez minutos, a chegada dos passageiros para o embarque no trem é encenada como um desfile de figuras grotescas, estabelecendo o tom de ironia ou mesmo brincadeira que irá marcar todo o filme. Lumet concretiza seu convite ao espectador para que ele também embarque numa viagem a um mundo peculiar justamente ao encenar a partida da composição como um número musical, um balé onde o trem é o dançarino.

Mesmo com um roteiro fiel ao romance, por sinal um dos mais curiosos da autora, há aqui um trabalho de direção bastante peculiar, que parece inserir filme e personagens num universo além daquele criado por Christie, um universo do cinema em si, a começar pela concepção das interações atores-personagens. Os intérpretes representam estereótipos bastante marcados, que o cinema popularizou, desde modelos nacionais com sotaques caricatos (Lauren Bacall como uma americana pragmática e prepotente ou Ingrid Bergman como uma sueca a conclamar a ira de Deus) até estereótipos de sua própria persona cinematográfica (Richard Widmark é um canalha, Sean Connery um oficial britânico com serviços prestados no exterior, Anthony Perkins um neurótico com fixação na figura materna e por aí vai). Isso para não falar que Michael York e Jaqueline Bisset, figuras na época mais reconhecidas pela beleza que pelo talento, são retratados como pouco mais que bonecos de cera. E à medida que se desenvolve o crime e a investigação, vai se aprofundando de forma cada vez mais curiosa esse consciente jogo de aparências, pois com o avançar da trama descobrimos que também as próprias personagens estão representando. Não faltam inclusive referências à própria carreira de Lumet, uma vez que vários elementos do filme – um crime, doze personagens – remetem claramente à sua estréia em cinema com Doze Homens e uma Sentença.

Numa via totalmente oposta, segue o trabalho de Albert Finney como o detetive Hercule Poirot. Enquanto os demais atores representam não mais que a si próprios, Finney se apresenta sob uma composição bastante pesada, que torna seu rosto quase irreconhecível. Seu Poirot é uma figura clownesca, que ressalta os aspectos idiossincráticos da personagem, vista aqui em toda sua vaidade, arrogância e misantropia. Bem distante da figura quase simpática e um tanto ágil que Peter Ustinov faria em filmes posteriores ou do detetive galante visto no seriado da TV inglesa dos anos 90. Poirot é tratado e age como um superstar, o que fica claro logo em sua primeira aparição, quando é visto dando um autógrafo.

Toda a mise-en-scène concebida por Sidney Lumet só faz ressaltar o clima de farsa ridícula por trás das pomposas tramas de Agatha Christie e deixar claros os clichês de filmes de investigação. Um belo exemplo disso está na maneira como sempre que Poirot apresenta uma conclusão bombástica, esta é sublinhada por uma música estrondosa. Ou na forma quase hilária como é encenado, na conclusão, o real momento do assassinato, quando Poirot apresenta o resultado de sua investigação. Vale destacar também a seqüência em que um Poirot atônito em sua cabine acompanha os incidentes que culminariam no assassinato, com um primor de decupagem e edição de som. E ao final, quando as personagens brindam com champanhe entre si, parecem estar brindando também com o espectador pelos momentos de prazer que lhes foram proporcionados por um cineasta no auge de sua forma.

O merecido sucesso, à época de seu lançamento, entusiasmou os produtores John Brabourne e Richard Goodwyn a lançar outros filmes baseados em Agatha Christie, com Peter Ustinov como Poirot. Mas que, infelizmente, não mantiveram o espírito do filme de Lumet. Já a produção seguinte, Morte no Nilo, dirigida por John Guillermin, cai na inexpressiva rotina de uma pomposa sucessão de mortes, figurinos de época e bons atores mal-aproveitados. O que só faz ressaltar ainda mais os méritos de Sidney Lumet e o caráter ímpar deste ótimo, surpreendente e acima de tudo divertidíssimo Assassinato no Expresso do Oriente.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Universal; VHS Lumière Home Vídeo)