Foi dentro do rico e peculiar panorama do cinema americano
de meados da década de 1970 que a carreira de
Sidney Lumet parece ter atingido seu épice. Mas
em meio a três contundentes dramas contemporâneos
e urbanos – mais especificamente, novaiorquinos –, que
foram Serpico (73), Um Dia de Cão (75)
e Rede de Intrigas (76), Lumet apresentou este
trabalho de tom completamente diverso e que, à
primeira vista, chama atenção como um
filme menor, aproveitando o modelo de utilização
de um elenco multiestelar, seguindo o padrão
de cinema-catástrofe tão em voga na época,
para contar uma história de Agatha Christie.
A maioria das adaptações de novelas criminais
da escritora inglesa pouco faz além de seguir
a lógica limitada de seus textos, enfileirando
de forma repetitiva um ou mais assassinatos, geralmente
ambientados num fútil ambiente da burguesia britânica,
seguindo-se uma investigação. Tudo visando
o clímax onde se descobre o responsável
pelos crimes, o chamado whudunit, tão
execrado por Hitchcock. Apesar de inúmeras adaptações
anteriores, apenas René Clair (O Último
dos Dez) e Billy Wilder (Testemunha de Acusação)
haviam conseguido realizar filmes relevantes partindo
da obra de Christie.
A apresentação dos créditos de
Assassinato no Expresso do Oriente, com sua música
grandiloqüente, letreiros em art-deco e
uma ficha técnica com alguns dos mais renomados
técnicos que Hollywood podia oferecer sugere
que estaremos diante de duas horas de rasa perfumaria.
Uma vã impressão que felizmente se desvanece
logo nos primeiros minutos. Um prólogo apresenta
um caso de seqüestro, inspirado em fato real vivido
pelo aviador Charles Lindberg, antecipando situações
ligadas ao assassinato que depois virá a ocorrer.
Isso já fornece chaves para a resolução
do crime que a princípio deveriam ser apresentadas
somente em um momento posterior da trama, sugerindo
não ser essa resolução o gancho
que irá dominar a narrativa. Logo com dez minutos,
a chegada dos passageiros para o embarque no trem é
encenada como um desfile de figuras grotescas, estabelecendo
o tom de ironia ou mesmo brincadeira que irá
marcar todo o filme. Lumet concretiza seu convite ao
espectador para que ele também embarque numa
viagem a um mundo peculiar justamente ao encenar a partida
da composição como um número musical,
um balé onde o trem é o dançarino.
Mesmo com um roteiro fiel ao romance, por sinal um dos
mais curiosos da autora, há aqui um trabalho
de direção bastante peculiar, que parece
inserir filme e personagens num universo além
daquele criado por Christie, um universo do cinema em
si, a começar pela concepção das
interações atores-personagens. Os intérpretes
representam estereótipos bastante marcados, que
o cinema popularizou, desde modelos nacionais com sotaques
caricatos (Lauren Bacall como uma americana pragmática
e prepotente ou Ingrid Bergman como uma sueca a conclamar
a ira de Deus) até estereótipos de sua
própria persona cinematográfica (Richard
Widmark é um canalha, Sean Connery um oficial
britânico com serviços prestados no exterior,
Anthony Perkins um neurótico com fixação
na figura materna e por aí vai). Isso para não
falar que Michael York e Jaqueline Bisset, figuras na
época mais reconhecidas pela beleza que pelo
talento, são retratados como pouco mais que bonecos
de cera. E à medida que se desenvolve o crime
e a investigação, vai se aprofundando
de forma cada vez mais curiosa esse consciente jogo
de aparências, pois com o avançar da trama
descobrimos que também as próprias personagens
estão representando. Não faltam inclusive
referências à própria carreira de
Lumet, uma vez que vários elementos do filme
– um crime, doze personagens – remetem claramente à
sua estréia em cinema com Doze Homens e uma
Sentença.
Numa via totalmente oposta, segue o trabalho de Albert
Finney como o detetive Hercule Poirot. Enquanto os demais
atores representam não mais que a si próprios,
Finney se apresenta sob uma composição
bastante pesada, que torna seu rosto quase irreconhecível.
Seu Poirot é uma figura clownesca, que ressalta
os aspectos idiossincráticos da personagem, vista
aqui em toda sua vaidade, arrogância e misantropia.
Bem distante da figura quase simpática e um tanto
ágil que Peter Ustinov faria em filmes posteriores
ou do detetive galante visto no seriado da TV inglesa
dos anos 90. Poirot é tratado e age como um superstar,
o que fica claro logo em sua primeira aparição,
quando é visto dando um autógrafo.
Toda a mise-en-scène concebida por Sidney
Lumet só faz ressaltar o clima de farsa ridícula
por trás das pomposas tramas de Agatha Christie
e deixar claros os clichês de filmes de investigação.
Um belo exemplo disso está na maneira como sempre
que Poirot apresenta uma conclusão bombástica,
esta é sublinhada por uma música estrondosa.
Ou na forma quase hilária como é encenado,
na conclusão, o real momento do assassinato,
quando Poirot apresenta o resultado de sua investigação.
Vale destacar também a seqüência em
que um Poirot atônito em sua cabine acompanha
os incidentes que culminariam no assassinato, com um
primor de decupagem e edição de som. E
ao final, quando as personagens brindam com champanhe
entre si, parecem estar brindando também com
o espectador pelos momentos de prazer que lhes foram
proporcionados por um cineasta no auge de sua forma.
O merecido sucesso, à época de seu lançamento,
entusiasmou os produtores John Brabourne e Richard Goodwyn
a lançar outros filmes baseados em Agatha Christie,
com Peter Ustinov como Poirot. Mas que, infelizmente,
não mantiveram o espírito do filme de
Lumet. Já a produção seguinte,
Morte no Nilo, dirigida por John Guillermin,
cai na inexpressiva rotina de uma pomposa sucessão
de mortes, figurinos de época e bons atores mal-aproveitados.
O que só faz ressaltar ainda mais os méritos
de Sidney Lumet e o caráter ímpar deste
ótimo, surpreendente e acima de tudo divertidíssimo
Assassinato no Expresso do Oriente.
Gilberto Silva Jr.
(DVD
Universal; VHS Lumière Home Vídeo)
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