Vinte
minutos com Manoel de Oliveira: o que perguntar, de
que forma se comportar? Presente em São Paulo
para apresentar seu mais recente filme, O Quinto
Império – Ontem como Hoje, que só
seria exibido pela primeira vez no dia seguinte à
entrevista. Oportunidade, então, para conversar
sobre cinema, História e idéias – território
verbal em que Oliveira sente-se muito confortável,
diga-se de passagem. (RG)
* * *
Estava lendo esse volume comemorativo da revista
Trafic, que tem um artigo seu. Os editores falam que
sentem-se culpados por serem franceses e não
conseguirem achar a citação de Molière
que o senhor faz no artigo "Repensar o cinema"...
Há trezentos anos, Molière disse que
a palavra servia para explicar o pensamento, mas a palavra
era o retrato das coisas. Das coisas e das pessoas.
E também o retrato do pensamento. Isso foi dito
por Molière há trezentos anos, e é
qualquer coisa de extraordinário. Antes disso,
um filósofo grego, Aristóteles, dizia
que a alma não pode pensar sem uma imagem. É
curioso que isto é muito antes de Molière,
que dizia a mesma coisa por outros modos. Mas Descartes,
que também é especialíssimo, diz
também outra coisa que é muito interessante:
"Não é menos verdadeiro o que se
vê do que aquilo que se ouve". O interessante
é que nossos sentidos não são inúteis.
Nós podemos olhar para um objeto e nos parecer
que é liso, mas é o tato que nos indica
verdadeiramente se ele é liso ou se é
áspero. É claro, a experiência dá
a impressão, depois da visão, de que algo
que se viu como liso continua sendo liso, e diz: "É
liso". Mas pode estar enganado, ao pôr a
mão, pode perceber outro objeto como áspero.
Um era liso, o outro não... (risos)
São os paradoxos dos sentidos dos quais falava
Diderot...
Não são paradoxos. São penetrações
do conhecimento da razão humana. E dos sentidos.
Porque a ilusão que nós temos de que o
cinema é movimento é a origem da sua criação,
mas não é a sua função,
sua verdadeira função como arte. Ou aquilo
que ela se tornou, depois ganhando a palavra e o som.
Tornou-se uma síntese de todas as artes. Elas
não estão lá ao mesmo tempo quando
o que se vê não é o que se ouve,
e o que se vê daquilo que se ouve não é
o que se está a ver. Portanto, se sobrepuser
uma imagem daquilo que se ouve sobre uma imagem daquilo
que se vê, fica confuso, assim complica. Mas se
não for assim, completam-se, enriquece a imagem.
A gente está a ver duas imagens, ou, por assim
dizer, duas idéias simultaneamente, sem se perturbarem
uma à outra.
É curioso como o sr. parece utilizar-se de
todas as artes. Eu me lembro particularmente de uma
imagem da Leonor Silveira carregando uma cigarrilha
em frente a um clin l’œil em Inquietude, em que
ao mesmo tempo ela posa como uma figura, uma espécie
de modelo, enfim, carrega tudo, cenografia, pintura,
teatro... Parece que as artes não precisam brigar
para constituir uma arte. Ao passo que o cinema, para
se afirmar como uma arte específica, ele teve
que lutar contra a literatura, a pintura... O sr., ao
contrário, agrega todas elas.
Agrego, e é assim que tem que ser. No princípio,
como era mudo, o cinema pretendeu realizar seus primeiros
passos, no sentido da arte, como uma arte específica,
querer expressar-se através de sua própria
imagem. Algo mais próximo do sonho. O cinema
era um sonho, porque o sonho não tem nem voz
nem som, só tem imagem. O cinema mudo, para dar
o apito da locomotiva que ia partir, tinha que filmar
o vapor a sair e a gente sabia que era o apito. Hoje
em dia a gente não precisa mais disso. O cinema,
quando ganhou a palavra e o som, enriqueceu-se e sai
do campo onírico para o campo real. Aproxima-se
muito mais da vida. Não há nenhuma arte,
nem o teatro, que iluda a vida como o cinema. Nem a
pintura, nem a literatura, nem a arte abstrata. Quando
você lê um livro, você é um
realizador, porque está a pôr as imagens,
a imaginar a cara dos atores, o vestir, o andar, tudo
isso. Está a ver o seu filme. E geralmente quando
o espectador lê o livro antes de ver o filme,
como ele já realizou o seu filme, e ao ver o
filme a tela não corresponde ao que ele realizou,
ele já não gosta. Mas se não leu
o livro e viu o filme, ele aceita. Depois vai ler o
livro e ver no livro o filme que ele viu.
Gostaria de saber como o senhor trabalha com os atores,
pois eles têm todos uma marca distintiva nos seus
filmes.
Há um momento muito crítico para mim
que é a escolha dos atores. Para a história
que eu tenho, para o filme que eu vou fazer, tem um
certo número de personagens. Personagens são
uma ficção, não existem. Se eu
faço, por exemplo, Napoleão, há
várias figuras de Napoleão, vai-se procurar
uma figura que pareça com Napoleão. Agora,
quando são personagens de ficção
e não existe nenhuma figura, a gente vai procurar
aquilo que psicologicamente e fisicamente se aproxime
mais do personagem que vamos ter. É um momento
estruturante para o realizador, porque se não
acerta, está tudo escangalhado. Quer dizer que,
a partir daí, o ator passa a ser o personagem.
Ele vai dar o seu corpo, a sua cara, a sua voz, seus
gestos, suas atitudes, etc. Portanto, o personagem morreu,
e agora é o próprio ator o personagem.
É isso que faz com que, bem escolhido, ele faz
o papel porque ele é o personagem. Naturalmente
ele leu algumas páginas, algum livro, e, portanto,
ele interpreta à maneira daquilo que ele leu
e daquilo que sente como personagem. E a escolha favorece,
se for bem feita. Se não for, desfavorece. Eu
não gosto muito de dirigir os atores no sentido
de mise-en-scène, dizer: "Diga assim,
desta maneira, ou diga assim, de outra". Não.
Eu gosto muito da espontaneidade do ator. Ele diz conforme
ele sente o personagem que está a representar.
Só o corrijo se sentir que é exagerado
ou, pelo contrário, se sentir que é insuficiente,
aí peço: "Seja mais forte",
ou então "Seja mais brando". Mas é
raro. Agora, o que eu faço é uma marcação.
Sentar-se ali, sentar-se aqui, vai para acolá,
porte-se assim, etc. Esses movimentos dão uma
grande segurança ao ator. Se eu não disser
nada, só "Faça", ele fica perdido.
Se eu lhe der umas medidas, fica mais confortável
para o ator, e a espontaneidade sai e é o melhor
que o ator sai-se.
O seu trabalho de ator passa por uma relação
de distanciamento, de não-identificação
entre o espectador e o personagem.
Eu não quero confundir o espectador com o
personagem. Consiga ou não consiga, o meu desejo
é que o espectador não fique passivo,
mas seja ativo. Muitas vezes eu peço ao ator
para falar para a câmera, ou seja, para o espectador.
Este, por sua vez, [em relação ao que
o ator fala] acha bem, acha mal, aceita, não
aceita, que, não quer, gostou, não gostou:
o espectador precisa completar a ação
que ele vê no filme. Gosto de fazer isso, e não
de manipular o espectador, induzindo que ele fique sentimental
e apaixonado por aquele personagem. Muita vezes há
filmes que fazem simpatizar com o personagem mau, que
faz coisas más mas torna-se simpático,
e o filme toma a defesa deles. Muitas vezes é
o contrário, eles querem levantar-se da cadeira
e bater nele com um pau. E o cinema moderno tem essa
tendência, sobretudo o cinema americano, de manipular
o espectador, fazendo dele um joguete, e ele sai do
filme como se tivesse tomado uma droga.
Os seus filmes dão muita importância
ao gesto estático dos atores. Da mesma forma
que o senhor toma uma arte dinâmica e declamatória
do teatro, acredito que o senhor toma esse poder estático
da pintura, de um gesto que seja a síntese de
movimentos...
Eu não tomo nada nem do teatro, nem da pintura.
Eu gosto imenso da pintura, mas, vá lá,
eu faço os meus quadros com os meus enquadramentos,
eu não sigo nenhum pintor. É claro que
sou naturalmente influenciado pela literatura, pela
pintura, pela música, todas essas coisas me influenciaram
e me educaram, mas eu faço à minha maneira.
Quando faço o quadro, não quero fazer
à maneira de Velázquez ou à maneira
desse ou daquele. Faço como sinto que devo fazer,
como me parece melhor.
Um filme que me impressiona muito é Um
Filme Falado, seu trabalho anterior a O Quinto
Império. Nele, temos a força da palavra,
e das línguas européias. Fiquei pensando
que, além da temática da incompreensão
entre ocidente e oriente, o filme desenvolve em paralelo
a questão da língua portuguesa e do papel
de Portugal dentro da comunidade européia.
Não creio que se trata disso, e não são
as línguas européias que estão
lá todas. O filme baseia-se sobretudo na civilização
ocidental. E a civilização judaico-cristã
greco-romana, e de natureza mediterrânea. Essa
é a nossa civilização. Depois da
derrota da invencível armada, os ingleses tomaram
o poder do mar, que antes pertencia à península,
apoderaram-se da civilização ocidental,
e dominaram durante muito tempo. Depois da [Segunda]
Guerra, mudou para Washington, hoje está na América.
Mas a civilização que lá está
é judaico-cristã greco-romana, e mediterrânea.
Ora, as mais fortes contribuições, aquilo
que eu quis mostrar, são aquilo que lá
está: a Grécia, Itália, os árabes,
que distribuíram para a Europa inteira a cultura
grega, e a Península [Ibérica], pelos
descobrimentos. Há uma parte mais ao Norte, com
a Holanda e a Inglaterra, que é a parte humanista.
Mas o que os humanistas fizeram em teoria, os descobrimentos
fizeram na prática: descobriram vários
países, deram-se com os nativos, casavam mesmo
com esses nativos, e portanto houve uma expansão
humanística na prática. O que caracteriza
o Renascimento é o norte com o humanismo, a Itália
com as artes e a Península com os descobrimentos.
Um Filme Falado faz a relação das
civilizações com os países árabes.
A civilização ocidental e os países
ocidentais se formaram em luta contra os muçulmanos,
expulsando-os da Europa. Agora, são os muçulmanos
que querem retornar à Europa, ou para o ocidente.
Há a questão do terrorismo. Os árabes
já estiveram de um lado e de outro, e este meu
filme, sobre Dom Sebastião [O Quinto Império],
tem um mito que é também árabe,
que é o do Encoberto, que virá no fim
dos tempos para dar a harmonia e combater o mal.
É um final muito apreensivo o de Um Filme
Falado. Existe um medo de que se perca tanto a História
quanto a convivência entre os povos. É
um final apocalíptico.
Apocalíptico, tens razão. Mas ao lado
disso, e de um lado mais simples e mais profundo, há
a posição do capitão. O capitão,
como se sabe, é o último a sair do barco.
No filme, ele, já no bote, vê que há
passageiros, e que era ele que devia estar lá.
De maneira que ele está numa posição
moral muito difícil. Então ele deveria
voltar lá e salvar a mulher, mas é impossível,
porque é tarde. E, além disso, ele vê
a destruição de seu barco, que é
a sua história, a sua casa, sua vida. Ele vê
a destruição de tudo.
É a Europa mediterrânea toda que está
no navio...
Sim, no fundo, é o mundo que se perde.
O Serge Daney dizia que, como postura de homem que
vê as imagens, sempre quando ele vê uma
imagem, um plano, ele buscava aquilo que seria o contra-plano,
o elemento que estaria de fora fazendo tensão
para dentro. Ele dizia que o cineasta que ensinou ele
a ver isto era o Godard, que tem uma postura dialética,
ou socrática, se se quiser, colocando dois lados
para se combater. Fazendo uma comparação
pouco usual com o cinema do sr., acredito que o senhor
também tem um trabalho do choque, mas onde o
Godard tenta ver política o sr. tenta ver a História.
No seu cinema, a dinâmica dos contrários
funcionaria menos na oposição do que na
acumulação.
Na apresentação de seu novo filme,
Kiarostami falou que a tragédia precisava de
uma máscara.
A frase de Nietzsche, "Tudo que é profundo
precisa de uma máscara".
Isso. Aqui, há uma confusão entre
o Godard e esta frase. A máscara mostra o que
não se dá a ver. Ou seja, ela mostra o
que está por trás da máscara. No
sentido do Daney, que eu respeito muito, e no do Godard,
a dialética tem uma função marxista.
Como ambos são de tendência marxista, jogam
nesse sentido. Aprecio muito tanto o Godard quanto o
Serge Daney, mas neste particular prefiro Nietzsche,
que é mais rico: "A tragédia está
por trás de uma máscara". Não
é o que a gente vê: é o que a máscara
mostra, algo não visível. Se o Aristóteles
diz que não se pode pensar sem ter uma imagem,
também a gente, quando vê uma imagem, vê
através dessa imagem um pensamento. A imagem
é máscara que nos dá o pensamento.
Invertemos a posição. Quando o capitão
em Um Filme Falado vê explodir a sua casa,
ele vê um pensamento: "Eu deveria estar lá.
Eu, moralmente, estou em falta. Por outro lado, também
se vê, ou ouve-se a destruição de
todo o seu barco, que era a sua vida, que ele governava,
que ele orientava, que ele guiava contra as tempestades,
fazia bem para os passageiros, etc. É uma máscara
que transporta não ao navio, mas à casa;
não à casa, mas à cidade; não
à cidade, mas ao país; não ao país,
mas ao continente; não ao continente, mas ao
universo.
O senhor já tratou do sebastianismo em um
filme como Non ou a Vã Glória de Mandar.
Existe alguma relação em O Quinto
Império ou é algo completamente diferente?
É outra coisa. O Quinto Império é
um filme muito difícil de fazer porque é
tirado de uma peça de teatro muito rica. E lá
está a máscara de tudo. Por trás
dos diálogos, está todo este universo
mítico, e toda a idéia do Quinto Império.
A idéia do poder para encontrar a harmonia. A
região encontrou com a outra região, o
país se encontrou com outro país para
encontrar o mundo universal, que é o tal mito
do quinto império.
Entrevista realizada por Ruy Gardnier no dia 29 de outubro
de 2004, em São Paulo, Hotel Crowne Plaza
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