Imagine
um filme ousado, com ritmo vertiginoso e diversas invações
formais, retratando a vida dos compositores de música
brega Sullivan e Masadas (ou, para não dizer
que só achincalhamos o produto nacional, citemos
Bryan Adams). Pois bem: ficaria tão ridículo
e deslocado quanto fica um filme como De-Lovely
ao encenar de forma melosa e sem sal a vida de um dos
maiores compositores da música popular americana.
Focando em como Cole Porter conhece, se apaixona e depois
vive sua vida inteira com Linda Lee, o filme opta por
um retrato do homem público, e joga para debaixo
do tapete todas as características "anti-sociais"
do artista, homoessexual e usuário de drogas
pesadas (se Cazuza pega leve com seu personagem,
o filme de Winkler nem chega a pegar nada). Cole Porter
falava pelas entrelinhas nas letras de suas músicas,
ao passo que De-Lovely fica o tempo todo nos
fazendo prestar atenção somente nas "linhas
gerais". Tornado inócuo o biografado,
tanto pelo foco na vida conjugal (sem sexo) quanto pela
estrutura narrativa, que coloca um Cole Porter assistindo
aos ensaios de uma montagem teatral sobre sua própria
vida, De-Lovely pode então seguir o circuito
usual dos clichês dos biopics: juventude,
amores, inserção da adversidade ainda
cedo, idade adulta, a felicidade, tudo dá errado,
a velhice, e a fatal decadência. Há um
certo desejo necrófago e sádico em assistir
ao filme: uma vontade que no mais está
disseminado na produção de cinebiografias
de perceber os pontos fracos do artista, de comprovar
como ninguém é deus, de como todos somos
em alguma medida falidos, e talvez as celebridades mais
que todos. A esse sentimento, De-Lovely satisfaz
prontamente.
No entanto, quanto a qualquer expectativa quanto a valor
estético, o filme de Irwin Winkler se revela
como absolutamente nulo. Todas as escolhas, do ritmo
ao tom do filme, da escolha de atores à iluminação,
deriva do mais profundo convencionalismo estilo senhoras-desacompanhadas-de-meia-idade:
músicas, luxo ostentatório, um muito brando
senso de libertinagem e a mão pesada característica
de produções acadêmicas. Nem a inserção
de números musicais com artistas contemporâneos
cantando clássicos de Porter ajuda o filme: de
uma Alanis Morrissete evidentemente deslocada a um Elvis
Costello sem brilho somente atualizando sua persona
mais bufona, passando sem dúvida por uma Sheryl
Crow desagradável, os próprios artistas
parecem apenas caber (e mal) no papel que lhes é
prescrito, e nada mais que isso (apesar de uma boa interpretação
de Diana Krall). Assim sendo, a melhor crítica
a De-Lovely é uma própria letra
de Cole Porter, em que o sujeito seria o filme e o biografado
o objeto. Com vocês, senhores e senhoras, uma
das mais magníficas canções de
Cole Porter: " You're the Top"...
You're the top! you're the Collosseum,
You're the top! you're the Louvre Museum,
You're the melody from a symphony by Strauss,
You're a Bendel bonnet, A Shakespeare Sonnet, You're
Mickey Mouse!
You're the Nile! You're the Tow'r of Pisa,
You're the smile, on the Mona Lisa!
I'm a worthless check, a total wreck, a flop!
But if baby I'm the bottom, You're the top!
You're the top, you're Mahatma Gandhi,
You're the top! you're Napoleon brandy,
You're the purple light, of a summer night in Spain,
You're the National Gallery, you're Garbo's salary,
You're cellophane!
You're sublime, you're a turkey dinner,
You're the time of the Derby Winner,
I'm a toy balloon that's fated soon to pop;
But if baby I'm by the bottom you're the top!
You're the top, you're a Waldorf salad
You're the top, you're a Berlin ballad
You're the nimble tread of the feet of Fred Astaire
You're an O'Neal drama, you're Whistler's mama, you're
camembert
You're a rose, you're inferno's Dante
You're the nose, on the great Durante
I'm a masy leroux who's just about to stop
But if baby I'm the bottom, You're the top!
Ruy Gardnier
|