CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Dennis Carvalho em estado de graça

Muito se tem falado sobre a recente estréia do horário das seis horas, na Rede Globo, Como Uma Onda. Mas tudo que ouvimos envolve uma dita quebra da tradição recente de novelas desse horário. Uma tradição que impedia abordagem da sexualidade e o uso de homens e mulheres com pouca roupa de forma sensual. Já daí nasce algo interessante: uma ruptura com o que vinha sendo feito. Porém, o que mais chama atenção está longe de ser essa "polêmica", o grande destaque de Como Uma Onda tem um nome: Dennis Carvalho.

O diretor vem fazendo um trabalho extraordinário, conseguindo fazer da sua direção uma forma de olhar para aqueles acontecimentos. A câmera, ao contrário do que costuma acontecer em novelas, não está ali como coadjuvante da trama: Dennis Carvalho faz ela observar e dar a sua versão dos fatos. Os movimentos de câmera são precisos, fazendo-na percorrer os ambientes, indo ao encontro dos personagens, e nos dando noção dos espaços percorridos, nos dando uma ótima ambientação de cada espaço e de que como os personagens se relacionam com eles. Os personagens são filmados de forma belíssima, com muito carinho e admiração; vemos que Dennis tem profundo interesse pelas histórias que estão acontecendo, se emocionando junto com cada pessoa (e nessa semana, emoção não faltou) e, sobretudo, tendo crença total no que acontece.

Exemplo melhor são as três crianças que vivem em busca de um fantasma que habita uma ilha das redondezas. A câmera segue aquelas crianças adorando as "molecagens" e as brincadeiras que elas fazem, sempre se inserindo no ambiente – se inserindo tanto que chega a fazer a função do olhar do próprio fantasma rindo das "molecagens" que fez, brincando com as crianças. Junto vêm uma utilização excelente de closes – com a câmera nunca forçando a barra e indo até a cara do ator tentando arrancar alguma emoção, sempre em função do ator, de acordo com cada reação, sem aproximando e se afastando nos momentos exatos – e uma decupagem, também, ótima. Exemplo de decupagem (e emoção) tivemos numa cena de reconciliação entre pai (Kadu Moliterno) e Filha (Maytê Piragibe): ao ver o pai chorando na praia, a filha vai até ele com um pedaço de bolo e senta ao seu lado; aí vai close num, close no outro; depois olhos de um, olhos do outro; corta pra mão dela entregando o bolo, ele pega, corta e dá um pedaço pra ela; ela aceita, chora, ele também chora; corta, câmera atrás dos dois, eles se abraçam. Cena muda, mas que disse tudo que tinha que dizer; e logo antes a mãe (Maria Fernanda Cândido) tinha dito pra filha dizer que amava o pai de um jeito que ele fosse entender; e foi, de um jeito que ele e nós entendemos, sem nenhum tipo de discurso.

Destaque dessa semana foi a possível morte do personagem Amarante (Kadu Moliterno), que rendeu belos momentos. Os filhos, esposa e mãe chorando foram de uma densidade impressionante; a vontade era chorar junto. Não precisou ninguém nos dizer como ele era importante para aquelas pessoas, isso ficou bem claro. Foi tirado de cada ator uma força no choro, no desespero, de arrepiar. Os flashbacks foram utilizados de tal forma que construíam uma idéia narrativa; não era só aquele pensamento e pronto, vinha o pensamento intercalado com imagens do presente, dando uma idéia dos acontecimentos e de como eles refletiram e refletirão nos atos da personagem.

Claro que não podemos ignorar os méritos do escritor da novela, Walter Negrão. Ele faz um texto bom, que oscila belos e fracos momentos. Mas, o que mais vale a pena é assistir a novela que Dennis Carvalho está fazendo.

Francisco Guarnieri


Textos das semanas anteriores:
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