Da
apropriação surrealista da "impressão
de realidade" ao elogio baziniano do realismo cinematográfico,
já muito se versou sobre a relação
do cinema com a realidade. Mas à parte de qualquer
discussão ontológica ou funcional sobre
a relação da imagem cinematográfica
com a realidade material que nos cerca, é fato
que o cinema é produtor de imagens confeccionadas
a partir da materialidade da realidade. Que ele é,
portanto, produtor de mundos que funcionam à
semelhança do mundo real para quem está
situado no interior da sala escura.
E se o cinema moderno rompeu o pacto de confiança
entre o espectador e a imagem, dando origem a uma geração
à qual era necessário refletir sobre a
linguagem para refletir sobre o mundo, alguns caminhos
do vasto e poliforme "cinema contemporâneo"
nos indicam uma volta à crença na imagem.
Como uma afirmação de crença no
mundo. A imagem cinematográfica como mediadora
privilegiada entre o espectador, entregue ao prazer
de se ir ao seu encontro, e o mundo, físico e
vivo. Entregues às imagens que pulsam, podemos
então pulsar junto com elas e senti-las em toda
sua intensidade.
É o caso de Elefante e Gerry, de
Gus Van Sant. De Shara, de Naomi Kawase. Eureka,
de Shinji Aoyama. Japão, de Carlos Reygadas.
Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola, Mal
dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul.
O Pântano e Santa Menina, de Lucrecia
Martel. O Intruso, de Claire Denis. Os filmes
de Wong Kar-wai, Tsai Ming-liang e Abbas Kiarostami,
com destaque especial para Dez e Cinco.
E outros...
O que temos nestes filmes é uma relação
com o tempo e o espaço, dos homens com os homens
e destes com o mundo que integram um paradigma outro,
diverso do cinema moderno que ainda se nos anuncia com
todo o seu peso histórico como parâmetro
para a cinematografia não-industrial. Diverso
também daquele que estabelece o esgarçamento
das fronteiras da tecnologia como seu campo de atuação,
incorporando o suposto "espírito de época"
da nossa contemporaneidade e brincando com o ritmo frenético,
a fragmentação extrema e o impacto visual
sem muito lastro de sentido. É um paradigma não
tão facilmente delineável, onde talvez
não haja características suficientemente
indeléveis, que se apresentem tão firmes
e constantes para poderem defini-lo de forma inequívoca.
É um cinema que anuncia o desaparecimento do
"autor" como o organizador supremo de significados
e leituras e chama o espectador pra mais perto, cada
um ao seu modo, para compartilhar com ele alguma coisa.
Que dialoga com diversas tendências e estilos
simultaneamente e que coloca a relação
com o mundo não mais como cognitiva e, sim, sensorial,
se apresentando como "mais verdadeiro" em
relação à vida. A "verdade"
trabalhada como imanência em um determinado conjunto
homem-meio, onde nem a ilusão de realidade do
naturalismo nem a tentativa de reconstituição
da realidade do realismo são as referências.
Aqui tudo se passa num mundo que é fruto de uma
construção que envolve a sensibilidade
do autor e é erguida sobre traços estilísticos
recorrentes e claramente reconhecíveis, num processo
de criação fortemente embebido das locações,
de vivências pessoais, da carga trazida pelos
atores e do ambiente sensível instaurado pelo
set de filmagem. Em suma, um processo de criação
que sai da vida para desembocar em vida. Numa vida particular,
onde praticam a existência personagens evasivos
e desprovidos de personalidades facilmente delineáveis
e determináveis, embora sejam altamente intensos
e ricos, além de possuidores de uma forte e afetiva
presença. Pessoas que experimentam a tirania
do mundano. Tirania à qual devem responder com
uma ética de vida, a ser conjugada com a administração
dos seus anseios pessoais, sempre confrontados com o
que se dá a elas na sua vivência. Vivência
muitas vezes seriamente afetada pelas condições
sócio-econômicas em que estão inseridas,
mas na qual nunca se anuncia um projeto de vida fechado,
que se apresente como revelador de uma vida melhor ou
despertador de uma tomada de consciência que impulsione
uma transformação do que há em
um outro superior.
Esse "cinema-mundo", na sua tão forte
ligação com a vida, instala, então,
esta outra relação com o espectador, na
qual o que prevalece não é mais o processo
de identificação ou empatia com um sujeito
de ação, nem um exercício de raciocínio
intelectual, nem tampouco uma vindoura transformação,
pela veiculação de uma mensagem ou discurso.
O que temos é uma situação quase
"especular", na qual o espectador pode pensar
e sentir o filme em reflexo em sua própria vida.
Os acontecimentos que se dão no universo fílmico
se articulam com a experimentação do espectador
do seu próprio universo. A situação
espectatorial se converte numa experiência múltipla
– racional, emocional, plástica, sonora, temporal
–, numa vivência que se dá pelo atravessamento
dos personagens e do mundo em que estes estão
imersos.
O cinema se afirma instaurador de uma nova ordem, na
qual cada um é o responsável pela sua
própria ordem. Ou desordem. Na
qual a criação é o que vai legitimar
a vida e estabelecê-la como bem maior, direito
natural ao qual todos aspiram. Aspiram porque
nem sempre ela é suficiente. Porque às
vezes há entraves. Há a dor, a morte e
todas as dificuldades cotidianas, comuns. Comuns a todos
nós. Nós que experimentamos a vida em
diálogo, em trocas mútuas, em afetos negociados
com o outro. Afetos às vezes muito desejados,
às vezes inatingíveis, às vezes
indefinidos ou inesperados. Afetos que pedem um compartilhamento.
De si, dos mundos particulares. É firmada assim
uma economia relacional (entre as pessoas e destas com
o mundo) como organizadora da vida e o exercício
da criação como condição
de possibilidade do viver. E, por conseguinte, do fazer
cinema.
Tatiana Monassa
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