CAMPO/CONTRACAMPO

Campo/contracampo é a principal ferramenta do cinema clássico-narrativo, visto que introduz continuidade visual, sobretudo através da regra dos 30o, a imagens completamente descontínuas. Trata-se da montagem invisível, a qual naturaliza, aos olhos do espectador, a ilusão de que os personagens ocupam o mesmo espaço cênico quando, na realidade, encontram-se separados. Assim, campo/contracampo refere-se à prática construída e estabelecida pelo cinema clássico-narrativo a fim de se parecer verdadeiro: a linguagem dominante como única realidade fílmica possível, sobrepondo-se às demais.

Em Nossa Música, Jean-Luc Godard ministra aula sobre campo/contracampo a alunos em Sarajevo. Para duas fotos, uma de homem e outra de mulher, de planos extraídos da filmografia de Howard Hawks, Godard afirma serem ambos o mesmo, já que o mestre americano nunca compreendeu a diferença entre os sexos. Da mesma forma, no plano-seqüência em que, novamente por meio de fotos still, compara e opõe israelenses e palestinos – unindo, no mesmo plano, estratégias distintas e excludentes de cinema: o realismo baziniano encarnado pelo plano-seqüência e o ilusionismo narrativo representado pelo campo/contracampo –, o cineasta franco-suíço, como no enunciado de Walter Benjamin, politiza a arte, na medida em que revela a montagem invisível enquanto afeita ao jogo do poder que alicerça o código cinematográfico homogeneizante, cuja função consiste em impedir que as minorias, os excluídos, os marginalizados – o Outro, enfim – de se expressarem.

Se é contestado por Godard, o campo/contracampo se renova, por exemplo, dentro da obra de Michael Mann. Fogo Contra Fogo e Colateral, releituras do thriller, utilizam-nos para consolidar as relações, centrais nos filmes, entre mocinho e bandido, entre herói e vilão, entre gato e rato. Michael Mann, no entanto, parte das dicotomias clássicas a fim de borra-las, criando zona cinzenta e nebulosa, onde os personagens a princípio antagônicos acabam por se identificar, como se as oposições decorressem dos papéis a que estão condenados, pela narrativa, a assumir, e não pelo caráter de cada um. Ao conjugar o campo/contracampo ao plano ponto-de-vista, Mann também coloca o espectador na roda, uma vez que o leva a enxergar ora através do herói, ora através do vilão. A antológica seqüência em que Al Pacino e Robert De Niro se encontram em Fogo Contra Fogo clarifica a proposta do diretor: contestado por ser toda em campo/contracampo, de modo que os atores jamais aparecem no mesmo plano, é justamente esta ferramenta que lhe garante a força, pois alterna a platéia entre as posições antagônicas, ao mesmo tempo em que os discursos proferidos pelos dois são praticamente iguais.


Paulo Ricardo de Almeida