Sobre À Beira da Loucura:
primeiro que, ao se rememorar os marcos do cinema fantástico
da década de noventa, é um filme a ser
considerado apesar da acolhida algo fria na época
do seu lançamento; e é imensamente mais
rico (porque é mais criativo e maduro) que toda
a série Pânico e semelhantes filmes
de terror referenciais. Da mesma maneira, é um
filme incrivelmente surpreendente e gozador ao se olhar
no espelho, certamente é um dos mais interessantes
exemplos de cinema fantástico auto-referencial
que eu conheço. Além disso, ainda parece
ser a grande jóia esquecida de John Carpenter
principalmente por estas bandas, onde o filme só
foi lançado em vídeo, devido à
má recepção no exterior. Talvez
seja até o seu melhor filme.
Certo, juízos de valor
à parte, admito ainda que pensei muito em Simão
Bacamarte quando estava vendo o filme fiquei imaginando
o quanto o narrador se divertiria conhecendo a história
do nosso admirável alienista, que estava convencido
de que todos no mundo haviam enlouquecido, à
exceção dele próprio. Não
só o narrador como também o personagem
principal do filme, John Trent, investigador contratado
por uma firma de seguros também Trent, em vários
momentos, tem a certeza de que todos, exceto ele, estão
loucos. Ele entenderia Bacamarte, que só queria
ajudar os seus. No entanto, surpresa!, a paranóia
não é tema da história. É
um golpe apostar que o tema é a paranóia
de Trent, até porque a trama se revela sempre
pior do que ele imaginava. Mas vamos deixar a tentativa
de chegar a um possível tema central para mais
adiante.
Antes, lembro também
de outras referências e recriações
presentes, mesmo que só para nós que assistimos
como logo no início da história, quando
entendemos que toda a trama será contada num
flash-back que tem como prólogo e epílogo
a apresentação do próprio protagonista,
agora enlouquecido. Aí então já
pinta uma referência típica no enredo,
já que filmes com histórias contadas por
loucos existem desde, pelo menos, O Gabinete do Doutor
Caligari. Mas, bem, se há alguma referência
(ou homenagem, se preferirem) central e assumida do
filme, esta será a obra (e as figuras) dos escritores
Stephen King e, principalmente, H. P. Lovecraft. Pois
o enredo trata, inicialmente, da busca de Trent (interpretado
por Sam Neill) por um desaparecido autor de livros de
terror, Sutter Cane. Os livros de Cane são sucessos
de massa ("É o autor mais lido do século.
Esqueça Stephen King, Cane vende mais",
diz uma hora a garota do filme, Linda Styles) mas são
também objetos de admiração patológica
por seus fãs e de polêmica na sociedade,
sendo considerados pela imprensa televisiva como "causadores
de distúrbios psíquicos". Chegando,
um pouco magicamente, na cidade em que se passavam todas
as histórias de Cane, que não existia
no mapa, Trent aos poucos vai entendendo que entrou
no mundo de um autor e que, mais do que isso, tornou-se
um personagem dele a ponto de Cane lhe dizer "Eu
penso, logo você existe"! Logo descobriremos
com Trent que o escritor decidiu que seu novo livro,
que enlouquece seus leitores, será levado por
ele ao mundo, carregando então a praga da loucura
causada pela narrativa. O nome desse livro maldito?
"À Beira da Loucura", claro! Mas nem
todos lerão o livro, certo? "Ainda há
o filme!", nos lembra Cane...
Na verdade, no final das contas,
o filme se transforma em uma verdadeira narrativa-ensaio,
ou filme-tese, para usar a expressão corrente.
Um filme-tese bastante divertido, já que lida
o tempo todo com a confusão entre os elementos
fantásticos os demônios estão
tomando o mundo a partir dos livros de Cane, as pessoas
estão se tornando assassinos em série
e os elementos de narrativa do escritor, que no final
das contas é o próprio criador de toda
a trama (com identificação curiosa com
o realizador do filme, mas deixemos isso para mais adiante).
Confunde-se intencionalmente realidade e criação,
com bom-humor escancarado no final.
No final? É, no final,
onde enfim se explicita definitivamente que o filme
é uma meditação (mais do que uma
simples obra referencial) sobre seu próprio gênero.
Depois de tanto sofrer na mão do seu criador
(e como sofrem os personagens de filmes de terror...),
Trent escapa da sua prisão e tem a oportunidade
de ver o filme baseado em sua saga. É então
que ele se dá conta de como todos seus temores
eram, no fundo, risíveis, e pode, enfim, gargalhar
diante de seus sofrimentos. Como é tão
comum aos espectadores de filmes de horror.
A identificação
de Cane com Lovecraft ou King é bastante evidente,
já que se trata de um escritor que lida com temas
fantásticos e tem um séquito de fãs
com fama de malucos. Mas também se pode fazer
a ponte com o próprio diretor do filme, e já
no filme temos indicações para essa ligação
por exemplo, Cane diz a Trent, em determinado momento,
que naquele mundo ele é Deus, e pergunta: "Já
lhe contei que minha cor predileta é azul?".
Em seguida, Trent, dentro de um ônibus, acorda,
olha em seu redor e todas as coisas estão azuis.
O efeito é simplíssimo, mas está
dado o recado: se o diretor quiser, o filme inteiro
será azul. Podemos agradecer pelo fato de que
num filme de John Carpenter isso é só
um pesadelo...
Dessa forma, o realizador medita
sobre seu ofício. Carpenter chama a atenção
para o que constrói, até porque na sua
narrativa não há espaço para esteticismo
discute-se a feitura da história na própria
história, mais do que em imagens inebriantes
a serem mostradas. (mais do que um esteta, então,
o realizador se reconhece como um narrador, o que condiz
plenamente com o estilo de Carpenter, é preciso
notar). Dá-se conta do grau alienante, de suspensão
do mundo, de criação de uma outra realidade,
que é próprio do seu ofício. Percebe-se
como um pouco louco como seu protagonista (que é
quem nos conta a história), percebe-se manipulador
como seu escritor (que é quem decide os rumos
da história), percebe-se risível e, sobretudo,
crítico de si mesmo e do mundo ingênuo
que o rodeia, essa cultura pop mais inteligente do que
pode nos parecer a princípio. Como seu personagem
irá descobrir, o mundo é mais surpreendente
do que imagina o investigador, e seu retrato pelo
menos o que ele se propõe a fazer será,
sobretudo, sedutor e deflagrador.
Daniel Caetano
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