O
que há em comum entre Cinco e A Vila?
Acima de tudo, e talvez unicamente, a transformação
da sala de cinema em sala de aula. A lição
é primária: um novo abecedário
do olhar. Tomemos esse diferente aporte ao mundo visível,
provisoriamente, como pedagógico, mesmo que correndo
o risco de estar atropelando o caráter experimental
que esses filmes podem ter (como é o caso de
Cinco, mais precisamente). Basta ver 10 Sobre
Dez para saber que Kiarostami assumiu mesmo um papel
de educador do olhar: no último plano do filme,
que é estruturado como uma aula dividida em dez
lições, ele faz um zoom no formigueiro
que encontrou enquanto dava a volta no carro para desligar
a câmera, como a resumir o filme na afirmação
espalhada por todo seu cinema de que é preciso
dar atenção às mínimas coisas
do mundo. Após instaurar a "vídeo-vigilância
afetiva" com Dez, Kiarostami radicalizou
em Cinco a proposta de lidar com o "nada
mais" das coisas (incluindo o "nada mais"
da câmera). Há um roteiro, em cada um dos
cinco "episódios", que parece nascer
de dentro da própria imagem. O filme começa
com um plano em que o enredo surge por geração
espontânea, a partir da incidência das ondas
do mar sobre um toco de madeira que se divide em dois
pedaços, um sendo levado pela água enquanto
o outro permanece na areia. Mas é perceptível
como a intervenção de Kiarostami vai aumentando
progressivamente do primeiro em direção
ao último episódio, até culminar
numa completa e declarada manipulação
dos elementos plásticos que estão em jogo,
dando origem ao que possivelmente é a primeira
poesia concreta do cinema. A relação que
Kiarostami vem estabelecendo com a imagem desde que
"descobriu" a câmera digital é
não menos que extraordinária (e crucial
quanto à formação de um novo postulado
ético-estético). Em ABC África,
o que todos esperam é que ele vá fazer
um filme através do qual finalmente se olhe de
verdade para os africanos ("those-we-dont-look-at",
parafraseando o filme de Shyamalan). Ledo engano: durante
cerca de hora e meia são os espectadores que
se vêem despidos pelos olhos arregalados (e, para
surpresa da maioria, plenos de vida) das crianças
africanas. No reduto da aids e da fome, o filme se revela
uma constatação de vida e encontra espaço
para a ousadia estética de um cinema ainda em
(auto)descoberta de meios (de sobrevivência?).
De que forma devolver o olhar às crianças
de ABC África? Eis a grande questão
do filme. Assim como é o grande momento de A
Vila o encontro entre Ivy e o guarda florestal:
o que ele diz com os olhos e que ela, cega, não
lê é uma das primeiras mensagens de amor
verdadeiramente importantes do século XXI.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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