ZATOICHI
Takeshi Kitano, Zatoichi, Japão, 2003

Diferentemente do que costuma acontecer com os que adentram à galeria dos "super-autores" do cinema mundial, Takeshi Kitano não se acomoda num modelo que tenha dado certo nem se contenta com a mera reciclagem de formas. Como prova maior disso, em Dolls ele embarcou numa jornada estetizante que mantinha ausente da tela exatamente os aspectos mais marcantes de seus melhores filmes. Além das gags e da sanguinolência, tinha ficado de fora de Dolls, e agora retorna em Zatoichi, a presença do ator Kitano, ou melhor, Beat Takeshi, figura ao mesmo tempo transparente e opaca, simpática e fechada – e de uma violência que lhe é absolutamente imanente, brotando da circunstância sem que haja qualquer mudança na sua fisionomia. Uma vez que seus personagens são também formas (e dispõem de uma intensidade incrível), Kitano sabe que não pode estagná-los, precisa reinventar sua máscara a cada nova imagem. Assim sendo, em Zatoichi ele aparece loiro e encarnando um lendário espadachim cego. Essa reconfiguração implica não só um novo repertório de expressões faciais e uma maior diferenciação de Kitano em relação aos outros: implica também uma nova interação com o espaço e com os sentidos.

Zatoichi é o filme de Kitano mais centrado na sua figura, mas é igualmente o filme em que ele mais se distrai com o mundo à volta de seu personagem. Integrante do imaginário popular, Zatoichi carrega uma aura mítica por conta de, mesmo sendo cego, protagonizar as maiores proezas no manejo da espada. Na mais conhecida lógica das histórias sobre heróis, ele tira da deficiência a sua força, o que está simbolizado no fato de sua espada e seu bastão de cego serem o mesmo objeto. Ora examinando o espaço, ora dilacerando corpos, esse objeto estabelece a relação ambígua entre Zatoichi e tudo que lhe é exterior. Enquanto ele anda, é o bastão quem disfarça a espada; mas enquanto ele luta, é a espada quem esconde a existência de uma deficiência para a qual ela serve de apoio nas horas vagas.

Andarilho que vive do jogo e de prestar serviços como massagista, Zatoichi é alguém que conta com a intuição e com o tato. O filme começa com sua chegada à cidade em que a gangue de Ginzo atormenta a população, cobrando impostos arbitrários e matando gratuitamente. Tão-logo começa, o filme estabelece um diálogo com o western leoniano (a persona kamikaze do andarilho, o cenário lúdico em que explode a violência) e com o filme de gangster à Scorsese (as ações da quadrilha de Ginzo, o flashback em que se mostra como a família das duas gueixas foi massacrada). É curioso que os filmes mais violentos do festival, de Kill Bill Vol. 2 e Zatoichi à retrospectiva de Sergio Leone, estejam encharcados de lirismo. Kitano também insere o processo violento de seu filme numa abstração de movimentos que só pode existir no cinema, e que repousa no exagero e no elogio do artifício. Não à toa, Kitano usa um mesmo filme para sublinhar cenas de luta e cenas de dança (aquela que intercala o presente e o passado da gueixa transformista, com a montagem preservando a continuidade da coreografia, é das mais brilhantes do filme, revelando uma relação com o tempo simultaneamente idílica e seca). Isso não significa dizer, de forma alguma, que as lutas de Zatoichi estejam desprovidas de contato físico, ou de peso. A parcela física lá está, mas há uma profunda valorização dos interstícios, do que se perde entre um e outro plano, daquilo que o corte nos subtrai à visão. Entre um e outro golpe desferido, localiza-se um mundo de ações não visíveis, não filmáveis. E esse mundo é aquele a que Zatoichi se refere no plano final do filme, quando tropeça e cai, dizendo em seguida que, mesmo com os olhos arregalados, não pode ver o que não é para ser visto.

O cinema vem questionando, através de grandes filmes, o retorno à sua tarefa primordial de simplesmente recortar um pedaço do mundo e entregá-lo ao olhar em condições privilegiadas de atenção e visibilidade. Zatoichi é mais um filme em que o (re)ver o mundo está sendo posto em causa a todo segundo, mas com um detalhe: Kitano não abre mão de ser um fabulista. Se em Dolls ele construiu um universo que parecia de brinquedo e compôs uma melodia visual das mais melancólicas, em Zatoichi sua busca pela canção natural que exala das coisas resulta em vivacidade e alegria, culminando na dança triunfante do final. A cegueira de seu personagem, ao aguçar os sentidos que lhe restam, justamente ressalta esse murmúrio do entorno. Zatoichi recolhe os sons emitidos pelo mundo e os devolve a ele em forma de música (a seqüência do mutirão é bastante significativa, com marretadas e barulhos metálicos se harmonizando até compor a trilha sonora da cena), atitude que ilustra bem o cinema de Kitano, voltado para a complexa melodia da vida de quem está sempre no limite – o que não impede a recorrência daqueles teclados sentimentais, timbre musical mor de sua obra.

Existem dois foras-de-campo no cinema de Kitano. Um é o que diz respeito à continuação do espaço para além dos limites do enquadramento. E o outro é o que opõe ao material filmado, como numa relação de campo-contracampo, todo um imaginário ilimitado, vazado por todos os lados, fendido pelo real mas favorável à fantasia. Imaginário que remete a um volume de códigos que, se precisou esperar algumas décadas de cinema para surgir, hoje parece avassalador. Esse segundo espaço-fora-da-tela é perfeitamente suscetível a devaneios. É aquele ocupado, por exemplo, pelo personagem que corre semi-nu e grita loucamente em Zatoichi – o burlesco encontra facilmente seu lugar nesse espaço. Kitano está sempre disposto a contribuir com a cativante infantilidade que surge espontaneamente em seus filmes.

Assim como ninguém enxerga tudo, há coisas que até o cego consegue ver. No confronto com o antigo chefe mafioso, que se disfarça como um decrépito ajudante na icônica taverna em que ocorrem importantes cenas do filme, Zatoichi sobe, pela primeira vez, suas pálpebras e expõe olhos que parecem de vidro. Ele corta os olhos do mafioso como punição que considera pior do que a morte. O inimigo viverá, mas sem a dádiva da visão. Não basta ter olhos, é preciso um algo mais: donde a evidência de que, mesmo quando se concentra na transparência e ignora a ausência intrínseca à imagem, o cinema esbarra no mistério que o mantém vivo. É preciso resgatar o vazio – e preenchê-lo sem a pretensão de encerrá-lo.

Zatoichi é um filme de acúmulo, de soma. Na seqüência final, a música e a coreografia evoluem num crescendo, até a interrupção brusca imposta pelo personagem de Kitano, que naquele momento está unindo as duas figuras (ator e diretor) numa só, intercalando as imagens da dança com a imagem dele em algum lugar distante dali (o presente do filme e o seu alhures). Sem exceder as bordas, esse acúmulo dá excelente continuidade a uma carreira que já rendeu (Sonatine, Brother) e ainda pode render obras-primas.

Luiz Carlos Oliveira Jr.