Diferentemente do que costuma
acontecer com os que adentram à galeria dos "super-autores"
do cinema mundial, Takeshi Kitano não se acomoda
num modelo que tenha dado certo nem se contenta com
a mera reciclagem de formas. Como prova maior disso,
em Dolls ele embarcou numa jornada estetizante
que mantinha ausente da tela exatamente os aspectos
mais marcantes de seus melhores filmes. Além
das gags e da sanguinolência, tinha ficado
de fora de Dolls, e agora retorna em Zatoichi,
a presença do ator Kitano, ou melhor, Beat Takeshi,
figura ao mesmo tempo transparente e opaca, simpática
e fechada – e de uma violência que lhe é
absolutamente imanente, brotando da circunstância
sem que haja qualquer mudança na sua fisionomia.
Uma vez que seus personagens são também
formas (e dispõem de uma intensidade incrível),
Kitano sabe que não pode estagná-los,
precisa reinventar sua máscara a cada nova imagem.
Assim sendo, em Zatoichi ele aparece loiro e
encarnando um lendário espadachim cego. Essa
reconfiguração implica não só
um novo repertório de expressões faciais
e uma maior diferenciação de Kitano em
relação aos outros: implica também
uma nova interação com o espaço
e com os sentidos.
Zatoichi é o filme de Kitano mais centrado
na sua figura, mas é igualmente o filme em que
ele mais se distrai com o mundo à volta de seu
personagem. Integrante do imaginário popular,
Zatoichi carrega uma aura mítica por conta de,
mesmo sendo cego, protagonizar as maiores proezas no
manejo da espada. Na mais conhecida lógica das
histórias sobre heróis, ele tira da deficiência
a sua força, o que está simbolizado no
fato de sua espada e seu bastão de cego serem
o mesmo objeto. Ora examinando o espaço, ora
dilacerando corpos, esse objeto estabelece a relação
ambígua entre Zatoichi e tudo que lhe é
exterior. Enquanto ele anda, é o bastão
quem disfarça a espada; mas enquanto ele luta,
é a espada quem esconde a existência de
uma deficiência para a qual ela serve de apoio
nas horas vagas.
Andarilho que vive do jogo e de prestar serviços
como massagista, Zatoichi é alguém que
conta com a intuição e com o tato. O filme
começa com sua chegada à cidade em que
a gangue de Ginzo atormenta a população,
cobrando impostos arbitrários e matando gratuitamente.
Tão-logo começa, o filme estabelece um
diálogo com o western leoniano (a persona
kamikaze do andarilho, o cenário lúdico
em que explode a violência) e com o filme de gangster
à Scorsese (as ações da quadrilha
de Ginzo, o flashback em que se mostra como a
família das duas gueixas foi massacrada). É
curioso que os filmes mais violentos do festival, de
Kill Bill Vol. 2 e Zatoichi à retrospectiva
de Sergio Leone, estejam encharcados de lirismo. Kitano
também insere o processo violento de seu filme
numa abstração de movimentos que só
pode existir no cinema, e que repousa no exagero e no
elogio do artifício. Não à toa,
Kitano usa um mesmo filme para sublinhar cenas de luta
e cenas de dança (aquela que intercala o presente
e o passado da gueixa transformista, com a montagem
preservando a continuidade da coreografia, é
das mais brilhantes do filme, revelando uma relação
com o tempo simultaneamente idílica e seca).
Isso não significa dizer, de forma alguma, que
as lutas de Zatoichi estejam desprovidas de contato
físico, ou de peso. A parcela física lá
está, mas há uma profunda valorização
dos interstícios, do que se perde entre um e
outro plano, daquilo que o corte nos subtrai à
visão. Entre um e outro golpe desferido, localiza-se
um mundo de ações não visíveis,
não filmáveis. E esse mundo é aquele
a que Zatoichi se refere no plano final do filme, quando
tropeça e cai, dizendo em seguida que, mesmo
com os olhos arregalados, não pode ver o que
não é para ser visto.
O cinema vem questionando, através de grandes
filmes, o retorno à sua tarefa primordial de
simplesmente recortar um pedaço do mundo e entregá-lo
ao olhar em condições privilegiadas de
atenção e visibilidade. Zatoichi
é mais um filme em que o (re)ver o mundo está
sendo posto em causa a todo segundo, mas com um detalhe:
Kitano não abre mão de ser um fabulista.
Se em Dolls ele construiu um universo que parecia
de brinquedo e compôs uma melodia visual das mais
melancólicas, em Zatoichi sua busca pela
canção natural que exala das coisas resulta
em vivacidade e alegria, culminando na dança
triunfante do final. A cegueira de seu personagem, ao
aguçar os sentidos que lhe restam, justamente
ressalta esse murmúrio do entorno. Zatoichi recolhe
os sons emitidos pelo mundo e os devolve a ele em forma
de música (a seqüência do mutirão
é bastante significativa, com marretadas e barulhos
metálicos se harmonizando até compor a
trilha sonora da cena), atitude que ilustra bem o cinema
de Kitano, voltado para a complexa melodia da vida de
quem está sempre no limite – o que não
impede a recorrência daqueles teclados sentimentais,
timbre musical mor de sua obra.
Existem dois foras-de-campo no cinema de Kitano. Um
é o que diz respeito à continuação
do espaço para além dos limites do enquadramento.
E o outro é o que opõe ao material filmado,
como numa relação de campo-contracampo,
todo um imaginário ilimitado, vazado por todos
os lados, fendido pelo real mas favorável à
fantasia. Imaginário que remete a um volume de
códigos que, se precisou esperar algumas décadas
de cinema para surgir, hoje parece avassalador. Esse
segundo espaço-fora-da-tela é perfeitamente
suscetível a devaneios. É aquele ocupado,
por exemplo, pelo personagem que corre semi-nu e grita
loucamente em Zatoichi – o burlesco encontra
facilmente seu lugar nesse espaço. Kitano está
sempre disposto a contribuir com a cativante infantilidade
que surge espontaneamente em seus filmes.
Assim como ninguém enxerga tudo, há coisas
que até o cego consegue ver. No confronto com
o antigo chefe mafioso, que se disfarça como
um decrépito ajudante na icônica taverna
em que ocorrem importantes cenas do filme, Zatoichi
sobe, pela primeira vez, suas pálpebras e expõe
olhos que parecem de vidro. Ele corta os olhos do mafioso
como punição que considera pior do que
a morte. O inimigo viverá, mas sem a dádiva
da visão. Não basta ter olhos, é
preciso um algo mais: donde a evidência de que,
mesmo quando se concentra na transparência e ignora
a ausência intrínseca à imagem,
o cinema esbarra no mistério que o mantém
vivo. É preciso resgatar o vazio – e preenchê-lo
sem a pretensão de encerrá-lo.
Zatoichi é um filme de acúmulo,
de soma. Na seqüência final, a música
e a coreografia evoluem num crescendo, até a
interrupção brusca imposta pelo personagem
de Kitano, que naquele momento está unindo as
duas figuras (ator e diretor) numa só, intercalando
as imagens da dança com a imagem dele em algum
lugar distante dali (o presente do filme e o seu alhures).
Sem exceder as bordas, esse acúmulo dá
excelente continuidade a uma carreira que já
rendeu (Sonatine, Brother) e ainda pode
render obras-primas.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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