COM AS PRÓPRIAS MÃOS
Kevin Bray, Walking tall, EUA, 2004

É bastante curioso observar este filme dentro do cinema americano comercial hoje. Produzido como o terceiro veículo que busca estabilizar The Rock como um novo astro de ação dentro da indústria, sob a tutela de Kevin Bray (cineasta que vinha de trabalhos de menos abertura – seu filme anterior, Amigos por Acaso, era um veículo para Ice Cube que alcança um público específico mas tem dificuldade de avançar para fora deste gueto, daí ter ido direto para as locadoras no Brasil), parte do princípio de realizar um filme simples – nada de grandes explosões ou efeitos – e de apelo direto, para que se construa um público cativo ao astro.

Todas estas informações são de fato completamente extrafilme, mas de certa forma parecem importantes quando se pensa o resultado de uma obra tão esquizofrênica como esta. Com as Próprias Mãos parece um bocado com uma versão light de um filme de William Lustig, mas que deseja ao mesmo tempo ser Caçado, de William Friedkin. Ainda que sem o talento de ambos os cineastas citados, o filme de Bray oscila entre uma política de reação no melhor estilo “olho por olho, dente por dente”, e momentos onde mergulha por completo num cinema físico, de corpos.

The Rock faz um ex-soldado que retorna para sua cidade natal e a encontra tomada pela corrupção e drogas - “aqui não é mais nosso lar” relembra seu melhor amigo. Ele então vai aos poucos “perdendo a paciência” e decidindo iniciar sozinho uma revolução – à base da paulada. Acaba preso pela polícia – corrupta – e vai a julgamento. Ali, então, surge o momento que mais levanta questões dentro do filme: perante os jurados, o personagem de The Rock se levanta e mostra uma cicatriz forte deixada pelos bandidos em seu peito, e afirma que se for inocentado vai se candidatar a xerife e impedir que crimes como aquele continuem impunes. Cabe observar a encruzilhada que emerge da cena: The Rock se tornaria herói por ter estraçalhado várias pessoas num impulso, ou seria encarcerado por ter defendido os direitos que não vinham sendo cumpridos.

Tornado herói e xerife, o povo da cidade – ainda acovardado perante os bandidos – acredita que, antes um herói psicopata que os defenda, do que se conformar com a situação que vinham vivendo. O que traz interesse a toda questão é que Kevin Bray não parece, lá no fundo, tão preocupado em tomar partido sobre uma questão tão complicada como a justiça(?) com as próprias mãos, e sim em simplesmente criar situações a partir deste clima tenso, onde o embate é inevitável, para filmar belas cenas de ação. Isso faz com que o filme termine levantando questões, sem se obrigar a respondê-las.

The Rock é um sujeito simpático para o tamanho físico que ostenta, consegue sem maiores dificuldades conquistar com seu carisma pessoas à sua volta. Quando assume a figura de um sujeito obcecado em livrar sua cidade dos poderes capitais, é capaz de, ostentando apenas um pedaço de madeira na mão, começar uma revolução à base do extermínio (literalmente) dos bandidos. A seqüência onde assistimos uma montagem de como ele e seu parceiro chegam até os bandidos, seguindo das bases de vendedores de drogas para chegar nos grandes fornecedores, chega a ser assustadora: é literalmente no braço que ambos vão convencer os pequenos a lhe ditarem o caminho dos grandes. O filme passa quase que por cima destes momentos, mas são justamente os que demonstram o ar mais irracional dos atos de “nossos heróis”. Como são muito simples as seqüências, simplesmente vemos algumas pauladas, e um novo local já sendo invadido.

Mas o personagem de The Rock não é tão simples, e nem tem tempo de ser tão bem desenvolvido quanto poderia. Seus atos podem ser psicóticos e inconseqüentes, mas há um lado de bastante valoroso na forma como Bray os mostra – não é necessariamente uma tomada de partido, mas simplesmente se satisfazer em estar filmando The Rock desde o princípio. Bray o acompanha muito mais do que narra uma parábola política – ele nunca tem de tomar um partido, não há o momento de escolha, simplesmente segue filmando aquele ser humano, independente de seus caminhos. Daí que nunca soa que estamos vendo um filme que faça apologia ao olho por olho, dente por dente, ainda que tal política seja aplicada em cena – especialmente porque como tal não teria lá muita força (o que sobra em filmes de Lustig).

Aí é que se entra outro terreno, já que se trata de um filme onde se vê muitas questões políticas bastante incisivas sendo levantadas, mas que parecem claramente serem o que de menos realmente traga interesse ao cineasta enquanto filma. Kevin Bray caminha por estes trajetos, mas é no mergulho da ação à moda antiga, onde impera uma fisicalidade direta entre os corpos, que o filme ganha vida. Até que ponto qualquer um dos apontamentos políticos realmente diziam algo a Bray ou não, não está ao alcance dos olhos, mas surge a questão acerca do surgimento de filmes tão estranhos como este. Dentro de uma idéia de cinema comercial, Com as Próprias Mãos parece quase impraticável – até se pode vendê-lo como algo que não é, mas o resultado é pesado, complicado, e até mesmo por isso de muito valor. Há de certo neste valor muito do que arquitetaram Kevin Bray e The Rock, com suas idéias de cinema físico, mas também muito do que traz força para este filme surge dessa relação esquizofrênica com o cinema político, que abraçam sem medo vários dos cineastas aos quais o filme parece remeter (Lustig, Larry Cohen – o segundo, o mestre do cinema político de gênero), e com o qual o filme parece relegar um certo desleixo – o que pode ser tanto problema quanto uma espécie de solução, ao menos neste caso.

Se Com as Próprias Mãos é um filme menos bem sucedido que Bem Vindo à Selva, o filme anterior de The Rock, é também porque não se satisfaz em ser mero exercício de gênero, ou talvez por querer ser apenas isso, e não ser capaz. De todas as formas, é um filme que ambiciona mais, mesmo que indiretamente, e que talvez merecesse mais atenção e menos tratamento reducionista. Há alguns filmes diferentes aqui dentro desta mesma obra, mas todos são, no mínimo, de algum valor. Ainda que a campanha publicitária tente vender que “um homem irá defender o que é certo”, pelas imagens em alguns momentos quase pornográficas destes atos, advindas do tal desleixo com este aspecto político, não fica impressão necessariamente de que há um certo, mas de que há um sobrevivente. Dentro de uma obra tão estranha, que possibilita tantos pensamentos quando claramente não parece tão envolvida com estes, serão sempre apenas impressões obtidas em um momento.

Guilherme Martins