É bastante curioso observar
este filme dentro do cinema americano comercial hoje.
Produzido como o terceiro veículo que busca estabilizar
The Rock como um novo astro de ação dentro da indústria,
sob a tutela de Kevin Bray (cineasta que vinha de trabalhos
de menos abertura – seu filme anterior, Amigos por
Acaso, era um veículo para Ice Cube que alcança
um público específico mas tem dificuldade de avançar
para fora deste gueto, daí ter ido direto para as locadoras
no Brasil), parte do princípio de realizar um filme
simples – nada de grandes explosões ou efeitos – e de
apelo direto, para que se construa um público cativo
ao astro.
Todas estas informações são de fato completamente extrafilme,
mas de certa forma parecem importantes quando se pensa
o resultado de uma obra tão esquizofrênica como esta.
Com as Próprias Mãos parece um bocado com uma
versão light de um filme de William Lustig, mas
que deseja ao mesmo tempo ser Caçado, de William
Friedkin. Ainda que sem o talento de ambos os cineastas
citados, o filme de Bray oscila entre uma política de
reação no melhor estilo “olho por olho, dente por dente”,
e momentos onde mergulha por completo num cinema físico,
de corpos.
The Rock faz um ex-soldado que retorna para sua cidade
natal e a encontra tomada pela corrupção e drogas -
“aqui não é mais nosso lar” relembra seu melhor amigo.
Ele então vai aos poucos “perdendo a paciência” e decidindo
iniciar sozinho uma revolução – à base da paulada. Acaba
preso pela polícia – corrupta – e vai a julgamento.
Ali, então, surge o momento que mais levanta questões
dentro do filme: perante os jurados, o personagem de
The Rock se levanta e mostra uma cicatriz forte deixada
pelos bandidos em seu peito, e afirma que se for inocentado
vai se candidatar a xerife e impedir que crimes como
aquele continuem impunes. Cabe observar a encruzilhada
que emerge da cena: The Rock se tornaria herói por ter
estraçalhado várias pessoas num impulso, ou seria encarcerado
por ter defendido os direitos que não vinham sendo cumpridos.
Tornado herói e xerife, o povo da cidade – ainda acovardado
perante os bandidos – acredita que, antes um herói psicopata
que os defenda, do que se conformar com a situação que
vinham vivendo. O que traz interesse a toda questão
é que Kevin Bray não parece, lá no fundo, tão preocupado
em tomar partido sobre uma questão tão complicada como
a justiça(?) com as próprias mãos, e sim em simplesmente
criar situações a partir deste clima tenso, onde o embate
é inevitável, para filmar belas cenas de ação. Isso
faz com que o filme termine levantando questões, sem
se obrigar a respondê-las.
The Rock é um sujeito simpático para o tamanho físico
que ostenta, consegue sem maiores dificuldades conquistar
com seu carisma pessoas à sua volta. Quando assume a
figura de um sujeito obcecado em livrar sua cidade dos
poderes capitais, é capaz de, ostentando apenas um pedaço
de madeira na mão, começar uma revolução à base do extermínio
(literalmente) dos bandidos. A seqüência onde assistimos
uma montagem de como ele e seu parceiro chegam até os
bandidos, seguindo das bases de vendedores de drogas
para chegar nos grandes fornecedores, chega a ser assustadora:
é literalmente no braço que ambos vão convencer os pequenos
a lhe ditarem o caminho dos grandes. O filme passa quase
que por cima destes momentos, mas são justamente os
que demonstram o ar mais irracional dos atos de “nossos
heróis”. Como são muito simples as seqüências, simplesmente
vemos algumas pauladas, e um novo local já sendo invadido.
Mas o personagem de The Rock não é tão simples, e nem
tem tempo de ser tão bem desenvolvido quanto poderia.
Seus atos podem ser psicóticos e inconseqüentes, mas
há um lado de bastante valoroso na forma como Bray os
mostra – não é necessariamente uma tomada de partido,
mas simplesmente se satisfazer em estar filmando The
Rock desde o princípio. Bray o acompanha muito mais
do que narra uma parábola política – ele nunca tem de
tomar um partido, não há o momento de escolha, simplesmente
segue filmando aquele ser humano, independente de seus
caminhos. Daí que nunca soa que estamos vendo um filme
que faça apologia ao olho por olho, dente por dente,
ainda que tal política seja aplicada em cena – especialmente
porque como tal não teria lá muita força (o que sobra
em filmes de Lustig).
Aí é que se entra outro terreno, já que se trata de
um filme onde se vê muitas questões políticas bastante
incisivas sendo levantadas, mas que parecem claramente
serem o que de menos realmente traga interesse ao cineasta
enquanto filma. Kevin Bray caminha por estes trajetos,
mas é no mergulho da ação à moda antiga, onde impera
uma fisicalidade direta entre os corpos, que o filme
ganha vida. Até que ponto qualquer um dos apontamentos
políticos realmente diziam algo a Bray ou não, não está
ao alcance dos olhos, mas surge a questão acerca do
surgimento de filmes tão estranhos como este. Dentro
de uma idéia de cinema comercial, Com as Próprias
Mãos parece quase impraticável – até se pode vendê-lo
como algo que não é, mas o resultado é pesado, complicado,
e até mesmo por isso de muito valor. Há de certo neste
valor muito do que arquitetaram Kevin Bray e The Rock,
com suas idéias de cinema físico, mas também muito do
que traz força para este filme surge dessa relação esquizofrênica
com o cinema político, que abraçam sem medo vários dos
cineastas aos quais o filme parece remeter (Lustig,
Larry Cohen – o segundo, o mestre do cinema político
de gênero), e com o qual o filme parece relegar um certo
desleixo – o que pode ser tanto problema quanto uma
espécie de solução, ao menos neste caso.
Se Com as Próprias Mãos é um filme menos bem
sucedido que Bem Vindo à Selva, o filme anterior
de The Rock, é também porque não se satisfaz em ser
mero exercício de gênero, ou talvez por querer ser apenas
isso, e não ser capaz. De todas as formas, é um filme
que ambiciona mais, mesmo que indiretamente, e que talvez
merecesse mais atenção e menos tratamento reducionista.
Há alguns filmes diferentes aqui dentro desta mesma
obra, mas todos são, no mínimo, de algum valor. Ainda
que a campanha publicitária tente vender que “um homem
irá defender o que é certo”, pelas imagens em
alguns momentos quase pornográficas destes atos, advindas
do tal desleixo com este aspecto político, não fica
impressão necessariamente de que há um certo,
mas de que há um sobrevivente. Dentro de uma obra tão
estranha, que possibilita tantos pensamentos quando
claramente não parece tão envolvida com estes, serão
sempre apenas impressões obtidas em um momento.
Guilherme Martins
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