Há dois anos, foi exibido
na Mostra de São Paulo o mais recente (difícil
falar em último) episódio desta série
de filmes de Gitai sobre uma determinada área
empobrecida nas proximidades de Haifa. Na ocasião,
eu mesmo escrevi um
texto onde o que mais sobressaía era a dificuldade
de se ler todos os signos e compreender todas as referências
ou lógicas estruturais daquele documentário
(Wadi Grand Canyon), sem ter tido acesso aos
episódios anteriores. Pois bem, neste ano podemos
retomar o contato não só com o mesmo filme
já visto antes, como com o filme que junta seus
dois episódios anteriores (Wadi 1981-1991)
- e, mais do que isso, junto também com uma retrospectiva
bastante abrangente dos filmes de Gitai como um todo,
o que ajuda mais ainda a contextualizar uma série
de suas preocupações, métodos e
objetivos ao filmar. Curiosamente, vale a observação,
mais uma vez os filmes foram vistos fora de ordem (por
circunstâncias de sua exibição),
o que de alguma forma impediu, ainda, um visionamento
do último episódio a partir do
que veio antes. Mas, pelo menos já foram vistos
num espaço de tempo bastante próximo.
Sendo vistos nesta proximidade, o que mais impressiona
perceber é uma certa interiorização
da câmera de Gitai no espaço dos personagens
de seus filmes. As primeiras imagens, colhidas em 1981,
lembram muito a de uma série de documentários
sociais brasileiros sobre o estado de miséria,
reportando de fora as condições ultrajantes
em que vivem vários dos personagens retratados.
Entretanto, na medida em que Gitai vai se tornando mais
íntimo das pessoas que filma, o seu filme vai
abandonando um pouco este olhar de fora, e acreditando
cada vez mais em dar a palavra a seus entrevistados
(num processo que lembra muito, principalmente no Grand
Canyon, mas não só, o cinema de Eduardo
Coutinho), e que é no simples falar para a câmera
destes que ele vai conseguir extrair o maior significado
possível daquilo que ele deseja mostrar.
E o que ele deseja mostrar? Nada de muito diferente
do que seu cinema vem reafirmando seguidamente: as complexas
relações sócio-históricas
dos povos judeu e palestino dentro de Israel. No caso
destes filmes, podemos antever na realidade que o documentário
retrata uma série de temas que voltariam depois
ficcionalizados por Gitai, como o casamento entre judeus
e árabes (presente, principalmente, em Yom
Yom), como a relação com os imigrantes
de outros países (visto bastante em Alila),
como as questões relativas às perdas e
dificuldades de relacionamentos (algo sempre presente
em sua ficção), ou, para falar de uma
temática mais visual, da exploração
dos espaços das construções e da
arquitetura como símbolos tácteis da História
da região (algo presente em quase todos os seus
filmes, e aqui onipresente - das ruínas que surgem
no início do primeiro filme ao shopping center
que assombra o final do mais recente).
Então, através não só das
palavras, mas dos jogos de relacionamentos que se estabelecem
diante de sua câmera (do pai árabe com
a filha, do marido árabe com a mulher judia,
da esposa árabe com o marido), Gitai consegue
traçar nestes filmes uma tapeçaria muito
rica de complexidades humanas que, nunca abandonando
a especifidade de cada um dos entrevistados (algo que
nem sempre suas ficções conseguiram manter),
consegue emprestar a eles um significado para além
de cada um. E o que sobressai é o que quase sempre
sobressairá quando se mostra as pessoas de lá
de frente: que parece tão insano quanto absolutamente
compreensível (pelas circunstâncias históricas)
que dois povos não consigam encontrar um espaço
e uma possibilidade da vida em comum. E que é
sempre presente a dualidade de sensações:
entre o quão simples deveria ser resolver algo
assim (em se tratando de seres humanos conscientes),
e o quão impossível soa que se possa resolver
algo tão entranhado (histórica, social,
religiosa, e pessoalmente).
Eduardo Valente
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