Mike Leigh é um demagogo.
Só ele seria capaz de, para filmar uma parideira
ilegal na Inglaterra dos anos 50, tomar a primeira hora
inteira de seu filme mostrando como ela é boa
para a comunidade a seu redor, como ela é o elemento
de agregação de sua família, como
ela é boa de coração, como pode
faltar dinheiro e espaço naquela casa de família
proletária, mas todos têm um excelente
coração e uma convivência primorosa.
O marido de Vera, Stan, diz várias vezes aquilo
que já sabíamos porque Mike Leigh faz
questâo de nos lembrar a todo instante: "Tivemos
tanta sorte". Em contraposição, nas
casas burguesas (em que Vera trabalha como doméstica)
ou nas aburguesadas (a do irmão de Stan, cooptado
em parte para o lado negro da força por uma esposa
ninfomaníaca, interesseira e que não se
importa com os dramas das pessoas a seu redor), impera
o reino dos atos impuros: um estupro, uma relação
sexual estabanada, mas acima de tudo a impessoalidade
e a assepsia não-humana. Está provado
que é preciso ser pobre para ser feliz. Vera
Drake ajuda as pessoas: ela "helps young girls
out", realizando nelas abortos para evitar os filhos
que elas não podem ter. A prática é
ilegal, Vera sabe disso, mas ela se sente no dever de
fazer alguma coisa por essas garotas. Ela não
ganha dinheiro com a atividade. Quem lucra com essa
atividade é Lily, amiga de Vera que agencia as
meninas e cobra dinheiro sem que Vera saiba disso. De
todos os tipos de aborto ilegal, a prática utilizada
por nossa protagonista é a seringa, a mais segura
que consiste em encher as moças de desinfetante
e esperar nos dias seguintes que o sangue desça
, mas isso não impede que uma dessas "young
girls" quase morra no dia seguinte à intervenção.
A polícia é chamada e Vera é presa.
Mike Leigh tem um programa,
uma visão de mundo que ele deseja passar para
nós custe o que custar. Pouco importa se os fatos
vão contra sua proposta: pior para os fatos.
Para nos compadecermos por Mrs. Drake e seu drama, para
nos mostrar a hipocrisia da sociedade inglesa, ele nos
mostra sem verdadeira conexão com a história
narrada, vale dizer um aborto conduzido por um
médico, com uma taxa abusiva e direito a consulta
psiquiátrica em que a personagem precisa mentir
para conseguir sua operação. Toda essa
subtrama, fica claro, só existe para que nossa
santa Vera pareça ainda mais pura, pela humildade
de seus instrumentos contra a máfia institucionalizada
do aborto nos meios sociais mais altos. Que Vera Drake
faça seus abortos por pura bondade, isso está
fora de discussão. Que ela os faça porque
há pessoas necessitando de ajuda, idem. Mas Mike
Leigh adora se exceder, e comete uma série de
impropriedades lógicas para fazer valer seu peixe
"humanista" de defesa do modo-de-vida da classe
trabalhadora. A personagem de Lily, por exemplo, desaparece
do filme assim que denuncia Vera. Desaparece do filme
e do discurso: ela não é denunciada junto
com Vera pela prática, e ninguém chega
a questionar Vera o fato de ela nunca ter se questionado
sobre a motivação que sua colega tinha
ao agendar os abortos.
Mike Leigh acredita que tiques
compõem um estilo. Assim, se Imelda Staunton
tem uma interpretação fabulosa, todos
os personagens que circulam em torno dela são
identificados mais por traços caricatos de comportamento
jogar a boca pro lado ao falar, ser incapaz de
olhar no rosto dos outros do que por um detido
trabalho de personalidade. A essa característica
desagradável e presente ao longo da carreira
de Leigh, Vera Drake acresce um novo dado, a
pieguice. Nunca o cinema de Mike Leigh foi tão
baixo em utilizar momentos dramáticos e música
lacrimejante para fazer o espectador se emocionar. Nada
contra filmar uma tragédia humana das mais pungentes,
nada contra fazer um libelo pró-aborto, mas a
estratégia de santificar um personagem apenas
como forma de fazer passar um discurso antes de se ater
ao drama é uma atitude de cineasta das mais sofríveis
que se pode fazer. A nosso cronista social da classe
trabalhadora falta a arte da perspectiva, de colocar
todos os atos da cadeia social em sua respectiva posição.
Mike Leigh é no fundo um maniqueísta,
e se o mal se instaura no seio de uma comunidade proletária,
a culpa é sempre dos outros. Santa Vera, em toda
sua bondade, precisa de um quinhão de autismo
autismo que Leigh tenta sempre conjurar
para que acreditemos que ela não sabe que faz
parte de uma cadeia de causalidade em que o dinheiro
acaba se inscrevendo. Autismo que o próprio Leigh
decide não colocar em sua narrativa, sempre tão
bem alinhada no que mostra e no que não mostra
que arrisca por momentos até zombar da inatividade
da protagonista. Autêntica obra de má-fé,
Vera Drake representa mais do que qualquer outro
filme a falência artística de Mike Leigh.
Ruy Gardnier
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