Lukas Moodysson fala aos quatro
ventos: "Meu cinema não tem nada a ver com
o Dogma". Em seus filmes anteriores, apesar dos
cacoetes de um certo cinema despojado e forçosamente
seco (câmera tremida, jump-cuts, uso do
som direto estourando cada detalhe, relações
humanas em crise), Moodysson de fato reservava um local
de acolhimento para seus personagens (principalmente
em Amigas de Colégio e Bem-vindos)
que os dinamarqueses dogmáticos dificilmente
teriam o ímpeto de oferecer, assim como o papel
de destaque que ele concedia à música
não-diegética o excluía de uma
das regras básicas do tal manifesto. O último
filme de Moodysson trazido ao Brasil, Lilya 4-ever
(passou no Festival do Rio e na Mostra de SP de
2002, e ainda teve exibição recente no
CCBB), já prenunciava, contudo, um deslocamento
desse espaço de proteção para um
mundo que no final se revelava ainda mais cruel e hostil
do que se poderia pressupor de início, quando
os personagens tentavam sair de situações
adversas. A tortura imposta à personagem de Lilya,
uma menina russa de 16 anos que é aliciada por
um escroque e levada para ser prostituta na Suécia,
aparecia lá ilustrada pelos signos mais famosos
do capitalismo (comentário sócio-político
por si só óbvio e emparedado na própria
indignação). Moodysson mostrou que estava
ficando sério, queria parar de fazer filmes "sessão
da tarde" – o que Amigas de Colégio
e Bem-vindos o são, mesmo que numa chave
mais liberal – e se transportar ao cinema de choque
estético e da deflagração dos absurdos
sociais e existenciais.
Péssimo para ele: Bem-vindos é
tanto seu filme mais light quanto seu melhor,
talvez o único realmente interessante quando
sua obra é observada em retrospecto. E Um
Vazio em Meu Coração é tanto
seu filme mais agressivo quanto uma das piores coisas
já feitas. A seqüência de Lilya
4-ever em que são mostrados os clientes da
protagonista, um a um, agredindo-a e insultando-a, já
era algo de muito torpe, mas o filme como um todo não
tinha aquele tom e mesmo o histórico de Moodysson
não permitia concluir que ele enveredaria agora
por tamanho equívoco. Um Vazio em Meu Coração
é o que pode haver de pior no cinema contemporâneo:
estética propositalmente tosca, mas que (vergonhosamente)
lá pelo meio do filme tenta achar uma seqüência
poética; planos longos que não filmam
nada porque partem do pressuposto de que não
há nada para ser filmado (fazer da vacuidade
o local de chegada do cinema, e não tentar extrair
o que pode haver de cósmico de uma situação
aparentemente banal); crítica à transparência
da cultura da pornografia na linha de raciocínio
mais burra que pode existir (pior até do que
Violência Gratuita, de Michael Haneke);
progressão de nojeiras que no fundo só
querem testar a resistência do espectador (do
tipo "vamos ver até onde vocês agüentam").
E por aí vai. Tudo temperado, é claro,
por freudismo de botequim e existencialismo de fim de
noite em festa ruim.
Um Vazio em Meu Coração é
uma sucessão de cenas dentro do apartamento em
que vive a família disfuncional composta de três
adultos – cuja única ocupação consiste
em vídeos pornôs amadores – e um adolescente
problemático. O filme nem chega a ser nocivo,
porque dificilmente alguém o leva a sério
– mas a questão é que Moodysson pensa
estar dizendo algo. Na cena em que a mulher da casa
(os outros dois adultos são o pai do adolescente
e um amigo) sai para fazer compras, os rostos das outras
pessoas no supermercado aparecem embaçados da
mesma forma que as partes íntimas dos personagens
do filme haviam aparecido nas cenas no apartamento.
Essa contextualização, que acusa a prática
do capitalismo de ser obscena e a imagem cinematográfica
de ser pornográfica em qualquer situação
– uma vez que expõe a público os semblantes
das pessoas (questão que Serge Daney, por exemplo,
já tinha analisado a fundo nos anos 70) –, ainda
mais feita assim, de maneira tão pouco sutil
e desnecessária, mostra o quão atrasado
e superficial Moodysson se acha em seus questionamentos.
Um Vazio em Meu Coração às
vezes soa como um Jackass psicológico,
mas só não passa como piada porque: 1)
não tem graça e 2) impõe ao espectador
um estado de asco que obstrui a passagem de qualquer
comicidade.
Há um cartaz espalhado pela central de venda
de ingressos e pelos cinemas onde está acontecendo
o festival que alerta para o conteúdo forte e
polêmico de Um Vazio em Meu Coração.
Mas é preciso que se acrescente o principal:
trata-se de um filme que só não é
totalmente desprezível porque reúne e
maximiza um conjunto de sintomas que uma parte (a menos
louvável) do cinema contemporâneo já
vinha apresentando. O fato do clímax do filme
ser a cena em que um homem vomita dentro da boca de
uma mulher ao som de A Paixão Segundo São
Mateus, de Bach, diz muito sobre suas intenções,
limitações e, acima de tudo, sobre sua
estupidez. Estranho caminho este por que Lukas Moodysson
optou.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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