Não é por acaso
que M. Night Shyamalan é um cineasta que insiste
em creditar um sound designer nos seus trabalhos,
ao invés do mais comum (dentro do sistema americano
dos estúdios) título de supervising
sound editor. Este fato, aparentemente banal, serve
como sinal (sem trocadilho com o nome do seu quinto
filme) da atenção que Shyamalan sempre
dedicou ao som. Neste texto, tentaremos explorar um
pouco as nuances de trabalho nos três filmes do
diretor que foram lançados em cinema antes do
atual A Vila para incluir este seria preciso
mais tempo e chances de assistir antes de poder lançar
este olhar mais atento a um determinado aspecto da sua
linguagem.
No universo destes três filmes, Shyamalan trabalhou
primeiro com Michael Kirchberger (em Sexto Sentido),
um experiente nome que inicia sua carreira dentro da
equipe de Coppola como editor de som, e assume a supervisão
geral em filmes como Peggy Sue e The Rainmaker
e mesmo no recente relançamento do Apocalypse
Now Redux. É difícil dizer se a troca
deste profissional para os outros filmes foi motivada
por razões estéticas, pessoais, ou apenas
por questões de agenda profissional mesmo (prova
de que estas questões num sistema de estúdio
podem sofrer diferentes motivações é
que Shyamalan trabalha com o mesmo fotógrafo
no primeiro e no terceiro filmes desta seqüência,
mas com um diferente no segundo). O fato é que,
nos outros dois filmes, assumiu o som Richard King,
profissional com pelo menos uma década a menos
de experiência do que Kirchberger, mas que também
já chega com alguma experiência começando
em filmes de ação menores, mas já
tendo trabalhado com Robert Altman em alguns filmes,
e em outros de trabalho de som delicado como Magnólia
ou Vida que Segue (Moonlight Mile).
O que une O Sexto Sentido, Corpo Fechado
e Sinais é a presença clara de
um conceito de trabalho sonoro onde o naturalismo puro
e simples cede espaço a um delicado uso do som
como criador de atmosfera (e neste sentido é
importante notar que isto é bastante próximo
do trabalho que Shyamalan extrai de seus fotógrafos),
e como elemento diferenciado de linguagem. Shyamalan
é um cineasta que se preocupa constantemente
em lidar com as convenções de gênero
trabalhando ainda próximo o suficiente delas,
mas tentando subvertê-las a seu favor. Pode-se
dizer que ele segue uma longa tradição
americana de filmar dentro de um sistema essencialmente
industrial, conseguindo responder a certos anseios de
público, mas ao mesmo tempo cunhando uma obra
absolutamente pessoal, cheia de pontos e preocupações
temáticas em comum. Para exemplificar este ponto
de forma bem rápida, basta olhar para os três
filmes citados de forma bem direta: Sexto Sentido
é um filme de "fantasmas" onde não há
de fato uma ameaça em nenhum momento; Corpo
Fechado é um filme de super-herói
sem nenhum confronto ou trama de ação
(e pode-se argumentar mesmo que sem herói); e
Sinais é um filme de ficção
científica e invasão alienígena,
sem qualquer cena da mesma invasão, de naves
espaciais, ou de confrontos intergaláticos. Esta
noção de usar a convenção,
ao mesmo tempo em que se leva ela um tanto além,
é um dos principais pontos do trabalho de Shyamalan
algo reiterado pelo som, como tentaremos ver a seguir.
Trabalharemos os filmes em ordem cronológica
para, a partir do segundo, começar com comentários
comparativos que unam as obras.
O Sexto Sentido (1999)
Como mencionado acima, Sexto Sentido trazia um
desafio em especial: trata-se de um filme de suspense-horror
onde não há sequer um monstro ou ameaça
real envolvidos. Portanto, e por definição
do projeto, trata-se de um filme que vai necessitar
essencialmente da noção de "clima" para
conseguir o sucesso com o público (o que aliás,
conseguiu). E, ao se falar em "clima", quase sempre
se fala de um cuidadoso trabalho entre roteiro, mise-en-scène
e conceito de som para atingir os resultados que se
procura. No que diz respeito ao som, o trabalho em Sexto
Sentido é especialmente interessante pois,
ao contrário de um exemplo como Sinais,
trata-se de uma opção detalhista e sutil
de buscar muito mais uma subtração do
que uma adição de efeitos.
Como uma das características comuns mais fortes
nos filmes dele é justamente a idéia de
trabalhar estes gêneros a partir do drama de um
pequeno número de personagens, pode-se dizer
muitas vezes inclusive que os filmes "se passam" dentro
da cabeça destes mesmos personagens. Se isto
é verdade de todos eles, em nenhum de forma tão
forte como em Sexto Sentido: este conceito parece
ser o principal no trabalho de som do filme, que reproduz
esta visão "parcial" e aprisionada da realidade.
A maneira mais direta com que podemos ver isso no filme
é no trabalho com o som ambiente. Mesmo se passando
numa grande cidade (Philadelphia), em Sexto Sentido
todos os locais onde as cenas se desenvolvem parecem
envoltos por um enorme vácuo sonoro. Há
pouquíssimo uso de efeitos de som que criem ambiências
externas (carros, buzinas, animais, murmurinho) e, em
contrapartida, os ruídos feitos em cena pelos
personagens, e suas vozes, são mixadas um tom
acima do normal, com extrema clareza e limpidez. A impressão
passada é a de um universo quase à parte,
um enorme aquário por onde transitam estes dois
personagens (os de Bruce Willis e de Haley Joel Osment).
Acentua-se assim, essencialmente, a relação
entre os dois, sempre.
Isto pode ser notado com maior clareza, por exemplo,
na cena de Willis com sua mulher, no restaurante. Porque
se antes poderia se dizer que os ruídos externos
não estão mais presentes por serem distantes,
ali a presença das outras mesas do restaurante
(bastante cheio) é tornada um longínquo
e abafado som ambiente. Deve-se notar, aqui, que a opção
"radical" seria a eliminação total do
ambiente de vozes mas aí é preciso lembrar
que Shyamalan quer brincar com as normas, mas sempre
trabalhando dentro do cinemão popular de gênero:
neste sentido, a supressão total de um som visualmente
presente (como este caso do jantar) certamente se tornaria
um incômodo ao espectador, indo contra o desejo
do cineasta de conseguir uma imersão do mesmo
no filme. Comparando o som do restaurante com o do velório,
já mais para o final, vemos a semelhança
que este tratamento cria entre dois ambientes a priori
muito distintos. A notar-se ainda uma cena em hospital
com a completa ausência dos "bips", respiradouros
e murmúrios em corredor que criam tipicamente
este ambiente.
Na verdade, quartos de hospital, salas de casa e grandes
igrejas acabam se igualando no opressivo silêncio
que cerca os dois personagens. Este jogo torna-se notável,
em especial, pelo contraste com alguns outros momentos
do filme, como nas duas cenas em que vemos a personagem
da mãe de Osment sozinha. Não é
por acaso que ambos os momentos são aqueles em
que surge uma música diegética no filme
(no primeiro por conta de um radinho de pilha, no segundo
por um walkman), e elas criam um ambiente externo
que não está presente nunca nos sons ambientes
que cercam os outros dois protagonistas, que de fato
são os portadores da trama central.
Finalmente, temos a "libertação" final
do garoto, ao conseguir "dominar seus medos", simbolizado
na cena da peça infantil, quando ele encena o
clássico momento em que o Rei Artur retira Excalibur
da pedra. Ali, junto com a espada, é como se
o som se libertasse das amarras, e os ambientes se tornam
mais altos e presentes. É importante notar, nesta
relação do personagem de Osment com os
ambientes que o cercam, que quando ele é punido
na escola, de repente o som das crianças brincando
do lado de fora torna-se altíssimo, para mostrar
a "prisão" que diferencia este personagem da
liberdade infantil que existe lá fora. Ou o uso
da campainha da escola num certo momento, por exemplo,
certamente alterada para se assemelhar muito com um
grito, aproveitando o exato instante de tensão
e desconforto em que é usada. Outro notável
ruído é o do correr de um lápis
pela mesa da mesma escola, ou ainda o giz no quadro
negro. Pela separação do menino dos seus
amigos, causada pelo seu "dom", os ambientes com a presença
destes meninos (como a escola) são sempre evidenciados
como desconfortáveis para ele. Notemos isso em
especial na cena da festa infantil, onde a presença
dele é marcada pelo desconforto: a música
que toca na festa, ao contrário de inocente (algo
como um equivalente local à Xuxa) ou alegre,
é uma soturna e assustadora melodia de órgão
eletrônico que remete a motivos infantis num
contexto completamente deslocado.
A cena da festa, aliás, marca um outro importante
uso do som: como antecipador. Se a principal revelação
do filme será, por parte do garoto, de que "I
see dead people", antes de sabermos que ele as vê,
já nos é dada a possibilidade de partilhar
com ele a audição das pessoas mortas.
Esta cena se dá justamente na festa, quando ele
é trancado num armário pelos amigos. Naquele
momento ainda não sabemos o que é aquela
voz, mas depois quando ele fizer a revelação
citada, entenderemos que ele também ouve "dead
people". Mais na frente será também através
do som que o personagem de Bruce Willis ganhará
convicção do dom do rapaz, por uma cena
que envolve, justamente, o uso de um gravador e que
coloca em cena a temática do volume dos ruídos,
com o personagem aumentando o volume para ouvir a gravação.
Este momento, o mais marcante em relação
à importância do som no filme, serve talvez
como símbolo do trabalho todo do filme: a impressão
de que precisamos aumentar o som para readquirir a possibilidade
de ouvir o que está à nossa volta, saindo
de um mundo opressivo interno. Talvez seja o único
momento em que Shyamalan chame a atenção
para o som, num filme que trabalha criativamente este
elemento, sem jamais torná-lo distrativo ou dominante.
Corpo Fechado
Corpo Fechado, não por acaso, funciona
muito bem como um meio termo a unir o filme anterior
ao seguinte: aqui, temos o mesmo cuidado no uso de ambientes
em busca de um clima (embora bem diferente no sentido
em que o clima buscado é outro), mas já
começamos a ver algumas intrusões essencialmente
não-naturalistas do som na criação
de um mundo exterior à diegese, o que ficará
muito forte em Sinais.
Neste sentido, a seqüência inicial da trama
(não a de abertura de fato, que funciona muito
mais como um prólogo) é exemplar. O que
seria apenas um diálogo de Bruce Willis com uma
personagem feminina num trem, se torna algo extremamente
tenso pelas passagens que o som cria por túneis
e outros obstáculos comuns da viagem onde o
volume e o ritmo destes sons externos evidenciam por
si só que algo de muito errado está por
acontecer. Não há nada na mise-en-scène
que nos faça antecipar o acontecimento que
termina a seqüência, mas o som faz este trabalho
pelo diretor, com enorme sutileza, mas inegável
presença. Primeiro pela simples entrada inesperada,
e depois por uma lenta, mas notável, subida no
volume dos trilhos e do apito do trem. De fato, o que
Shyamalan faz é criar um acidente de trem monumental
sem nunca mostrar uma só imagem disto.
Na cena imediatamente seguinte, uma primeira comparação
com o filme anterior é desejável: estamos
num hospital, num enquadramento muito mais restrito
do que o do quarto de Osment no outro filme. No entanto,
o entorno do hospital é criado com todos os seus
sons ambientes que no outro filme estavam ausentes.
Mas, há um uso ainda mais forte do som na cena,
dramático e combinado com a imagem: ao longo
de um diálogo que se dá ao fundo do quadro,
vai nos sendo passada a magnitude da situação
à medida em que vamos vendo um personagem que
é levado até a morte, a qual percebemos
somente por uma mancha de sangue que cresce na nossa
frente enquanto o som do bip, que já associamos
tão classicamente aos batimentos cardíacos
e à vida e morte de alguém, vão
mudando sutilmente, passando todo o quieto desespero
da situação. Em duas seqüências,
Shyamalan já usou mais os efeitos de som do que
em todo o filme anterior, mas acima de tudo repetiu
o que fez no outro filme: criou um clima inconfundível
para o filme todo.
Este clima, ao contrário do Sexto Sentido,
não tem uma relação tão
direta com os personagens, no sentido quase físico
que o som adquiria naquele. Por isso, varia do uso do
som "fora de quadro", com o qual Shyamalan suprime informações
visuais tão bem (seus orçamentos certamente
seriam bem mais caros com uma utilização
menos rica destes sons aqui, por exemplo, todo um
jogo de futebol americano, com direito a estádio
lotado, é simulado pelo som), ao uso de alguns
momentos de significação especial como
a bengala de vidro do personagem de Samuel L. Jackson,
que tanto na aparência quanto no ruído
que faz, antecipa a queda e o estilhaçar de seus
ossos que acontecerão a seguir na mesma cena
(um trabalho bastante rico, aliás, de achar o
som exato para reproduzir uma sensação
incômoda).
Há um momento de som no filme que reproduz o
uso "psicológico" do som, porém, com enorme
sutileza e inegável beleza: quando o personagem
de Willis ouve um recado na secretária eletrônica,
do personagem de Jackson. A informação
que o outro passa é tão importante e mexe
de tal forma com o primeiro, que a voz vai lentamente
sendo "limpa" dos efeitos que a colocam na tal secretária,
e ao final, mesmo ainda tendo a mesma fonte, temos uma
voz que soa como a de um personagem presente fisicamente
em cena, o que reproduz a sensação de
Willis. Este momento (assim como alguns outros como
a cena mais uma vez no restaurante, com ambientes reduzidos
de novo) demonstra a capacidade de Shyamalan de nos
colocar, pelo som, na pele dos personagens. Mas, todos
os usos do som em Corpo Fechado parecem uma preparação
(talvez de Shyamalan e de seu novo sound designer)
para o filme-ápice deste trabalho, o seguinte
Sinais.
Sinais
Sinais, como já foi antecipado, é
um filme praticamente construído a partir da
tensão entre o que está fora do quadro
com o que está dentro do quadro, tensão
esta perfeitamente encarnada no seu som. Trata-se, mais
uma vez, de Shyamalan tornando o som parte indissociável
do conceito geral do filme, que é, afinal, uma
trama sobre o conflito entre dentro e fora (num primeiro
olhar, entre terráqueos e extra-terrestres, mas
essencialmente entre os que estão dentro de uma
casa, dos que estão fora). Assim sendo, o filme
tem utilizações dramáticas do som
em quase todas as suas seqüências, motivo
pelo qual utilizaremos o agrupamento de muitas delas
a partir de certas categorias, para não sermos
completamente exaustivos nessa análise.
O filme começa com um sobressalto, com algo que
acorda um personagem e o faz pular da cama. O que primeiramente
é um sentimento difuso, se explica pelo som:
ao longe, um ruído que tanto pode ser o grito
de um pássaro (como um corvo), quanto o de uma
criança, quanto um som indistinto. Logo percebemos
que se trata mesmo de uma criança, mas partilhamos
da confusão do personagem de Mel Gibson, num
primeiro instante. Neste primeiro movimento do filme,
em que o tema da invasão ainda não se
anuncia de todo, o que importa mais é justamente
a tensão de que há algo errado, mas não
se sabe bem o quê. Nisso, Shyamalan usa o som
ambiente do campo de milho à perfeição,
brincando com o incômodo e o inesperado: cachorros,
grilos, insetos, todos os tipos de ruídos (e
silêncios, quando se espera ruídos) são
usados e mexidos para criar esta tensão, esta
sensação de algo errado.
A partir do momento em que fica esclarecida (ou bastante
bem sinalizada) a causa da tensão no filme (a
presença dos alienígenas), o filme passa
a usar alguns outros expedientes. Antes de mais nada,
há as fontes de informação externas
e/ou distantes, entre as quais se destaca dramaticamente
no filme a TV, que é de fato a única ligação
da família do filme com o mundo exterior. Mesmo
funcionando muitas vezes também visualmente,
há alguns importantes usos do som relacionado
com a TV. Talvez o mais claro seja um momento em que
o narrador do telejornal diz "What youre seeing is
real, unbelievable...", e tudo que estamos vendo é
a família sentada em frente à TV, hipnotizada
pela tal visão descrita. Faz parte do jogo do
filme todo esta tensão entre o não-visto
e o que se supõe que viu (mostrada ainda na silhueta
do alienígena no alto do telhado, ou na sua perna
na plantação, por exemplo). Portanto,
criamos esta tal visão pela resposta dos personagens
em cena, mas também pela voz e as palavras que
o narrador nos diz. Um outro momento importante é
o da cena que se passa no Brasil: aqui vemos a imagem
da TV, mas o trabalho de som amplia uma certa sensação
de "vídeo caseiro", dá ainda mais realismo
à imagem que surge, um desespero (que mesmo na
TV, está fora de quadro) que a mesma não
teria sem o que ouvimos. Da mesma forma, a simples falha
na voz do narrador, mais adiante, ou o som da TV fora
do ar, são indicativos desesperadores do que
acontece fora do mundo dos personagens.
No entanto, em termos específicos do som, o objeto
mais marcante é mesmo o comunicador de bebê.
Ele dá origem, de fato, a uma primeira seqüência
em que tudo gira em torno do som: a da família
em torno do carro tentando "ouvir" algum sinal dos alienígenas.
Aqui, há um sofisticado jogo de enquadramentos
e movimentos de câmera, mas todos são ditados
em ultima instância por algo que nunca vemos:
o suposto som dos alienígenas que sai pelo comunicador.
Além da construção desta seqüência
em si, mais adiante teremos ainda a confirmação
de que a invasão chegou até a casa dos
personagens pelo uso do mesmo comunicador, que foi plantado
como fonte importante de informação (embora
nunca fique exatamente esclarecido de como isso se daria)
nesta primeira seqüência em torno dele.
O uso do som diegético de alguns objetos, levemente
alterados, também é fonte de sensações
diretas. Por exemplo, a porta da casa de Ray Reddy,
que não poderia deixar de ranger com toda força,
uma vez que sabemos que lá dentro há um
alienígena (antes disso, um telefone fora do
gancho na mesma casa já indicava a sensação
de algo errado um som ouvido pelo personagem, e por
nós, de fora da casa, ainda que seja o tipo de
som que naturalisticamente só se captaria grudando
o ouvido no gancho). Outro exemplo importante de sons
em volumes inesperados criando tensão e susto
é o do ataque do cachorro à menininha,
logo no início. Ou, ainda, a simultânea
utilização da voz pausada de Gibson tentando
acalmar a filha enquanto o irmão prega madeira
numa janela, onde as batidas do martelo parecem brigar
com o sussurro do personagem.
No entanto, a grande força do filme está
mesmo no recurso do som fora do quadro oprimindo o que
vemos na diegese. Desde o início das estranhezas,
como quando as sinetas de vento do lado de fora da casa,
até o momento em que o personagem de Gibson vê
os alienígenas fora da casa e os grilos param
de soar neste exato momento, como se tão assustados
quanto ele. A acumulação dos sons fora
do quadro acaba ganhando no filme sentido por si mesma.
Muitas vezes o som dos grilos, dos pássaros,
do vento, cria uma verdadeira música complementar
à escrita originalmente para o filme pelo compositor
(e, aliás, o trabalho de James Newton Howard
nos três filmes de Shyamalan é impressionante).
Claro que tudo isso serve como acúmulo para a
cena final, da invasão de fato da fazenda, onde
os personagens enfrentam os invasores justamente ao
se isolarem dentro da casa, e lidando apenas com os
sons produzidos. Num primeiro momento, o reconhecimento
da invasão: o insistente latido do cachorro,
até sua aparente morte pelos alienígenas
(sempre somente ouvida, acompanhando visualmente a expressão
e o esforço de ouvir/reagir dos personagens);
as sinetas do lado de fora; os passos; até finalmente
as batidas nas portas e janelas e a quebra de vidros
das mesmas. Aqui, vale o destaque: impressiona o quanto
os criadores de efeitos acertaram ao criar o som dos
alienígenas, que é assustador com muito
poucas características "monstruosas" de fato.
Lembrando muito mais o som que um inseto emite ao tentar
se comunicar, ainda assim aquelas batidas em ritmo constante
de código Morse (e, enquanto bato no teclado
do meu computador, vejo o quanto este som se assemelha
também), cria uma idéia de racionalidade,
comunicação e ameaça ao mesmo tempo.
Depois deste primeiro movimento na seqüência
final, vem a radicalização: se trancando
no porão, a família acaba quebrando a
única lâmpada que provê iluminação.
Após breves instantes de escuridão completa,
ficamos apenas com a luz eventual proveniente de duas
lanternas, que tanto revelam quanto escondem. A partir
dali o filme mergulha de cabeça na tensão
entre o ouvido e não visto, até que surge
um rádio que servirá como contato final
com a civilização já na manhã
seguinte. Na melhor tradição de alguns
filmes de horror clássicos (como o Invasores
de Corpos original), Shyamalan consegue criar uma
das mais desesperadoras cenas do cinema recente, sem
mostrar nada mais do que uma maçaneta girando
ou um pedaço de braço. Ajuda ainda que
um dos personagens sofra um ataque de asma, o tipo de
doença cuja aflição vem tanto de
seus efeitos quanto dos sons que estes causam: a respiração
ofegante e incompleta, o nervosismo. Este ataque de
asma, aliás, dá origem ao último
grande momento do som, onde o garoto que sofre dele
ressurge para a vida estando sempre fora de quadro:
a volta da sua respiração e de sua voz,
seguidos da reação dos outros personagens,
fecham o filme com mais uma seqüência essencialmente
sonora.
* * *
Não fica nenhuma dúvida, após assistir-se
aos três filmes, do domínio de linguagem
e narrativa de Shyamalan. Importante notar que ao compreender
esta linguagem, ele trabalhe com elementos visuais e
sonoros com a mesma importância: seus filmes jamais
seriam o que são com um trabalho de som que fosse
menos detalhista que o dele. Este texto, aliás,
provavelmente não esgota a quantidade de complexidades
que existam nesta concepção sonora, possivelmente
escapando ao reconhecimento racional algumas outras
sutilezas de linguagem sem porém escapar jamais
do emocional (é mais do que sabido da teoria
da percepção que o som é um sentido
muito mais ligado à emoção, enquanto
a visão fala à razão). E, em última
instância, esta sutil mas permanente manipulação
do nosso emocional é o que busca Shyamalan no
seu trabalho com o som
Eduardo Valente
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