UNDERTOW
David Gordon Green, Undertow, EUA, 2004

Há a onipresença do rio no cinema de David Gordon Green. No filme anterior do cineasta, Prova de Amor (All The Real Girls), exibido no Festival do Rio 2003, Paul (Paul Schneider) termina mergulhado nas águas, após o triste desenlace da relação amorosa com Noel (Zooey Deschanel), indagando sobre que sentido da correnteza seu cão, que ele ensina a nadar, deve escolher. A seqüência clímax de Undertow também ocorre no rio, quando Chris (Jamie Bell) mata Deel (Josh Lucas), tio que o perseguia para conseguir as moedas de ouro do irmão John (Dermot Mulroney), atiradas na água pelo protagonista. Em ambos os casos, a simbologia heraclitiana: o rio enquanto força de renovação, como reservatório das dores, dos sofrimentos e das angústias dos personagens, o qual, paradoxalmente, concorre para resgatá-los e para elevá-los da realidade brutal em que subsistem.

Tanto Prova de Amor quanto Undertow são influenciados por Terrence Malick (co-produtor do segundo, aliás), de forma que o olhar que David Gordon Green lança sobre o mundo que representa está fortemente marcado pelo cinema impressionista do mestre: a apreensão do real mediada pelas sensações e pelos sentimentos que provocam nos personagens; o privilégio à materialidade da terra, assim como ao aspecto cósmico da natureza, enquanto locais onde se dá a experiência transcendente; a noção de que o Homem, perdido em meio à concretude do espaço que não lhe pertence e o qual não compreende, procura a comunhão espiritual com o panteísmo circundante.

Undertow remete a O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, 1955, de Charles Laughton), uma vez que a narrativa consiste na perseguição que Deel empreende a fim de reaver as moedas de ouro em posse dos sobrinhos em fuga. David Gordon Green, no entanto, acrescenta a seu filme a tragédia bíblica de Caim e Abel, reencenada no assassinato de John pelo irmão Deel – motivado a um tempo pela questão financeira e pela sexual (a namorada de Deel casou-se com John) –, por sua vez contraposta à dedicação e ao amor que Chris nutre pelo irmão caçula, Tim (Devon Alan).

Tim, cuja fragilidade física aponta para o estranhamento do Homem quanto à natureza, indicado no desequilíbrio que afeta o próprio corpo do irmão caçula. São marcas, feridas, que acompanham os personagens, e as quais os impedem de vivenciar, na plenitude desejada, a experiência sensória que o ambiente lhes disponibiliza. Seja, na seqüência inicial de Undertow, o pé de Chris atravessado pelo prego (como resultado da interdição do sexo e da relação afetiva perpetrada pelo pai da aparente namorada), seja o trauma com a morte da esposa que força John a se retirar, com os filhos, da civilização, seja a chegada inesperada de Deel, egresso da prisão, verdadeira chaga familiar que desestrutura por completo a já problemática convivência dos personagens com o mundo, estão em jogo acontecimentos que bloqueiam a entrega dos personagens à natureza, mas que, ao mesmo tempo, incitam a busca pela transcendência capaz de libertá-los dos fantasmas que os assolam.

Fala-se, em Undertow, que o rio sempre corre para o mar. É no rio que Chris combate Deel, livrando-se em definitivo da presença castradora do tio. Acolhidos pelos avós, os jovens irmãos vislumbram a possibilidade de um novo começo em família, a qual introduz harmonia com a realidade anteriormente negada: o estouro da bola por Tim, e a imagem desfocada de Chris à beira da praia, ao final, mostram tanto que os laços os quais os prendiam à brutalidade reinante se romperam, quanto que é possível viver na natureza, com a natureza e para além da natureza.

Paulo Ricardo de Almeida