Há a onipresença do rio no cinema
de David Gordon Green. No filme anterior do cineasta,
Prova de Amor (All The Real
Girls), exibido no Festival
do Rio 2003, Paul (Paul Schneider) termina mergulhado
nas águas, após o triste desenlace da relação amorosa
com Noel (Zooey Deschanel), indagando sobre que sentido
da correnteza seu cão, que ele ensina a nadar, deve
escolher. A seqüência clímax de Undertow
também ocorre no rio, quando Chris (Jamie Bell) mata
Deel (Josh Lucas), tio que o perseguia para conseguir
as moedas de ouro do irmão John (Dermot Mulroney), atiradas
na água pelo protagonista. Em ambos os casos, a simbologia
heraclitiana: o rio enquanto força de renovação, como
reservatório das dores, dos sofrimentos e das angústias
dos personagens, o qual, paradoxalmente, concorre para
resgatá-los e para elevá-los da realidade brutal em
que subsistem.
Tanto Prova de
Amor quanto Undertow
são influenciados por Terrence Malick (co-produtor
do segundo, aliás), de forma que o olhar que David Gordon
Green lança sobre o mundo que representa está fortemente
marcado pelo cinema impressionista do mestre: a apreensão
do real mediada pelas sensações e pelos sentimentos
que provocam nos personagens; o privilégio à materialidade
da terra, assim como ao aspecto cósmico da natureza,
enquanto locais onde se dá a experiência transcendente;
a noção de que o Homem, perdido em meio à concretude
do espaço que não lhe pertence e o qual não compreende,
procura a comunhão espiritual com o panteísmo circundante.
Undertow remete
a O Mensageiro
do Diabo (The
Night of the Hunter, 1955, de Charles Laughton),
uma vez que a narrativa consiste na perseguição que
Deel empreende a fim de reaver as moedas de ouro em
posse dos sobrinhos em fuga. David Gordon Green, no
entanto, acrescenta a seu filme a tragédia bíblica de
Caim e Abel, reencenada no assassinato de John pelo
irmão Deel – motivado a um tempo pela questão financeira
e pela sexual (a namorada de Deel casou-se com John)
–, por sua vez contraposta à dedicação e ao amor que
Chris nutre pelo irmão caçula, Tim (Devon Alan).
Tim, cuja fragilidade física aponta para o estranhamento
do Homem quanto à natureza, indicado no desequilíbrio
que afeta o próprio corpo do irmão caçula. São marcas,
feridas, que acompanham os personagens, e as quais os
impedem de vivenciar, na plenitude desejada, a experiência
sensória que o ambiente lhes disponibiliza. Seja, na
seqüência inicial de Undertow,
o pé de Chris atravessado pelo prego (como resultado
da interdição do sexo e da relação afetiva perpetrada
pelo pai da aparente namorada), seja o trauma com a
morte da esposa que força John a se retirar, com os
filhos, da civilização, seja a chegada inesperada de
Deel, egresso da prisão, verdadeira chaga familiar que
desestrutura por completo a já problemática convivência
dos personagens com o mundo, estão em jogo acontecimentos
que bloqueiam a entrega dos personagens à natureza,
mas que, ao mesmo tempo, incitam a busca pela transcendência
capaz de libertá-los dos fantasmas que os assolam.
Fala-se, em Undertow, que o rio sempre corre para o mar. É no rio que Chris combate
Deel, livrando-se em definitivo da presença castradora
do tio. Acolhidos pelos avós, os jovens irmãos vislumbram
a possibilidade de um novo começo em família, a qual
introduz harmonia com a realidade anteriormente negada:
o estouro da bola por Tim, e a imagem desfocada de Chris
à beira da praia, ao final, mostram tanto que os laços
os quais os prendiam à brutalidade reinante se romperam,
quanto que é possível viver na natureza, com a natureza
e para além da natureza.
Paulo Ricardo de Almeida
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