A linha de frente na arte não
se encontra na repetição de determinados
cacoetes que estão em voga (Dogma 95, entre outros),
não está do lado daqueles que se empenham
a trazer para a tela os assuntos que estão na
moda (Charlie Kaufman, idem), e tampouco se presta à
manutenção de uma linhagem e de códigos
de cinema já devidamente assimilados e transformados
em mercadoria cult (o cinema contemporâneo
dos tempos mortos e das psicologias em penúria).
A linha de frente artística só se faz
presente quando ela flerta abertamente com tudo que
não é arte, que está na linha de
fronteira com o que se constitui como não-arte,
como não-ainda-arte, como aquilo que ainda pode
causar estupor ao fazer com que o espectador a cada
minuto fique se perguntando o que fazer com todas as
informações que recebe da tela. E como
extrair beleza desse tipo de preocupação
artística aparentemente tão fria e de
gozo puramente intelectual? Esse é o principal
paradoxo concernente até agora à magra
(em número de filmes) e parruda (em intensidade)
filmografia de Apichatpong Weerasethakul. Embora seus
filmes sejam experiências conceituais muito rigorosas,
existe uma sensualidade que emana de cada um de seus
planos, um sentido quase religioso de revelação
(da vida, das imagens), um sentimento de feelgood
que parece o oposto da imagem que se tem do cinema
moderno e de experimento.
Experimento parece uma palavra acertada quando um cineasta
se credita não pelo tradicional "directed
by", mas pela algo pomposa descrição
"conceived by". Pomposo mas justificado: existe
uma inocência de encenação, uma
simplicidade no registro que traem a idéia "profissional"
de diretor de cinema (como dono de um saber de encenação
segundo as normas e o repertório adquirido) e
abrem para um outro tipo de fruição do
objeto artístico, um tipo de fruição
que vem sendo explorada mais e mais em outros campos
artísticos (música, artes plásticas),
mas apenas timidamente no cinema. Apichatpong Weerasethakul,
como alguns outros cineastas (Claire Denis, Hou Hsiao-hsien,
Lucrecia Martel, Vincent Gallo, Sofia Coppola), se inscrevem
num momento do cinema em que tanto o vocabulário
clássico quanto o moderno já estão
evidentemente repertoriados e assentados num regime
de signos do já-conhecido, do já-visto
(déjà vu), e cujo projeto artístico
exige uma certa selvageria dos signos, uma opacidade
(às vezes apenas aparente) dos significados e
uma beleza bruta do significante que nenhuma linguagem
já constituída a que estamos acostumados
poderia dar conta. É necessário travar
uma guerra contra a narrativa. Nada a ver com fazer
filmes a-narrativos (mesmo porque qualquer arte da duração
está sempre, em algum nível, presa a uma
certa idéia de continuidade lógica): existe
sempre uma linha narrativa tênue que se estabelece
e que estrutura o sentido de tudo que vemos na obra
desses realizadores citados. Essa guerra à narrativa
existe sobretudo como maneira modal de fazer cinema,
considerar o tecido narrativo como algo que dá
as linhas básicas de fruição da
obra mas estruturar seu cinema a partir de outra coisa
que é ela mesma não-narrativa, extrair
beleza não a partir da história que está
sendo contada, mas da narrativa própria da imagem,
do intrincado jogo de decifração e revelação
que pode se estabelecer de diversas formas entre espectador
e imagem.
Diz-se tudo isso não para entender um possível
estilo-Weerasethakul, mas para melhor inscrever Mal
dos Trópicos nesse não-estilo do inesperado
e do desconhecido. Pobre daquele que julgava que, tendo
visto Eternamente Sua/Blissfully Yours, guardaria
uma chave privilegiada de decifração para
este novo filme de "Joe" Weerasethakul. OK,
um dos personagens do filme anterior está lá,
como também estão um filme dividido em
dois e a floresta tailandesa, imantada de graça
e exuberância. Mas o jogo se joga de outra forma.
Onde antes havia dois casais, dois homens e duas mulheres,
agora há apenas um casal, composto por dois homens.
Tong, analfabeto, trabalhador braçal numa fábrica
de gelo, depois desempregado indo procurar emprego numa
sapataria. Keng, soldado do exército tailandês.
Os primeiros planos do filme, uma campanha de um destacamento
de soldados no campo, se prestam mais à confusão
do que à instalação de um universo
ficcional. Da mesma forma que a passagem, de um canto
a outro do quadro, de um homem nu, andando um tanto
animalescamente. Imagens prosaicas do cotidiano de uma
cidade, um encontro de conhecidos conversando no trânsito,
ou então imagens idílicas de vida no campo.
Só muito aos poucos os personagens passam a ter
nome. Passam o tempo livre juntos: vão ao cinema,
passeiam pela praça, conversam um no colo do
outro, sentados num alpendre. Não é à
toa que Brian Eno está na lista de agradecimentos
do filme: Mal dos Trópicos é cinema
de atmosfera em que os personagens parecem indestacáveis
dos espaços que eles ocupam, a paisagem parecendo
tão ou mais importante do que as pessoas que
a habitam. Cinema modal porque, uma vez estabelecido
o princípio narrativo que estrutura o sentido,
cabe tudo na trama: um cachorro pétreo deitado
na estrada (basta um "É o meu cachorro"
para que ele seja personagem do filme), um número
musical de cabaré, uma sessão de ginástica
aeróbica ao ar livre, uma visita a um santuário
mágico situado numa caverna. Mas é necessária
a separação: Keng precisa voltar para
o pelotão e Tong se afasta, dentro do plano,
até se tornar indiscernível com o fundo
preto.
A partir daí, o filme se reconstrói todo
de novo (a ponto de haver na platéia assovios
para o projecionista: tela preta por diversos segundos).
Tong desaparecido, Keng ouve de vizinhos que há
um monstro devorando vacas na região. O filme
deixa então o ambiente idílico de um casal
apaixonado para começar um filme (de guerra?
de terror? um romance?) sobre um embate apaixonado entre
dois homens, duas feras, dois seres da natureza. O repertório
de imagens se multiplica: temos cartelas explicativas,
almas de animais que saem do corpo, vaga-lumes que iluminam
magicamente uma árvore de extensões colossais
e macacos que se comunicam com Keng, agora nomeado apenas
como "soldado". Ele busca o fantasma de um
tigre, encarnação mística de um
xamã que "vive nas memórias dos outros"
e ocupa o corpo de Tong (ou serão duas outras
pessoas que, por acaso, são interpretadas pelos
mesmos atores? Ninguém sabe...). Pas de deux
numa floresta: perseguição que se
converte em paixão, ou paixão sublimada
em perseguição, o soldado espreita à
procura do monstro/tigre fantasma/ser amado. Só
ele e floresta. Do outro lado, o xamã/Tong/tigre,
nu e com o corpo todo pintado, cheira a quilômetros
o corpo do ser amado. A batalha amorosa, antes travada
à distância, agora se dá no mesmo
plano, talvez o plano mais fenomenal do filme (e um
plano de filme de terror), quando o soldado está
olhando para um fora-de-plano que, com um movimento
simplérrimo para a esquerda, revela sua presa/ser
amado, que retorna o olhar. Não restam mais homens,
não restam mais nomes: a partir daí, são
só dois seres que, despidos de quaisquer atributos,
ou com zilhões de atributos intercambiáveis,
se aproximam e se repelem, viram seres misteriosos da
floresta, ocupam seus espaços tanto mais quanto
eles são cada espaço. Naturalismo
redivivo, Apichatpong mostra o homem como um animal
como qualquer outro, e encara a câmera como, mais
que o testemunho, o catalizador dessa passagem. O primeiro
longa-metragem de Joe se chama Objeto Misterioso
ao Meio-Dia (Mysterious Object at Noon);
seu filme seguinte, Blissfully Yours, é
um objeto misterioso numa tarde; Mal dos Trópicos
é um objeto misterioso de todas as horas
do dia, ou simplesmente um objeto misterioso. E imenso.
Ruy Gardnier
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