MAL DOS TRÓPICOS
Apichatpong Weerasethakul, Sud pralat, Tailândia/Alemanha/Itália, 2004

A linha de frente na arte não se encontra na repetição de determinados cacoetes que estão em voga (Dogma 95, entre outros), não está do lado daqueles que se empenham a trazer para a tela os assuntos que estão na moda (Charlie Kaufman, idem), e tampouco se presta à manutenção de uma linhagem e de códigos de cinema já devidamente assimilados e transformados em mercadoria cult (o cinema contemporâneo dos tempos mortos e das psicologias em penúria). A linha de frente artística só se faz presente quando ela flerta abertamente com tudo que não é arte, que está na linha de fronteira com o que se constitui como não-arte, como não-ainda-arte, como aquilo que ainda pode causar estupor ao fazer com que o espectador a cada minuto fique se perguntando o que fazer com todas as informações que recebe da tela. E como extrair beleza desse tipo de preocupação artística aparentemente tão fria e de gozo puramente intelectual? Esse é o principal paradoxo concernente até agora à magra (em número de filmes) e parruda (em intensidade) filmografia de Apichatpong Weerasethakul. Embora seus filmes sejam experiências conceituais muito rigorosas, existe uma sensualidade que emana de cada um de seus planos, um sentido quase religioso de revelação (da vida, das imagens), um sentimento de feelgood que parece o oposto da imagem que se tem do cinema moderno e de experimento.

Experimento parece uma palavra acertada quando um cineasta se credita não pelo tradicional "directed by", mas pela algo pomposa descrição "conceived by". Pomposo mas justificado: existe uma inocência de encenação, uma simplicidade no registro que traem a idéia "profissional" de diretor de cinema (como dono de um saber de encenação segundo as normas e o repertório adquirido) e abrem para um outro tipo de fruição do objeto artístico, um tipo de fruição que vem sendo explorada mais e mais em outros campos artísticos (música, artes plásticas), mas apenas timidamente no cinema. Apichatpong Weerasethakul, como alguns outros cineastas (Claire Denis, Hou Hsiao-hsien, Lucrecia Martel, Vincent Gallo, Sofia Coppola), se inscrevem num momento do cinema em que tanto o vocabulário clássico quanto o moderno já estão evidentemente repertoriados e assentados num regime de signos do já-conhecido, do já-visto (déjà vu), e cujo projeto artístico exige uma certa selvageria dos signos, uma opacidade (às vezes apenas aparente) dos significados e uma beleza bruta do significante que nenhuma linguagem já constituída a que estamos acostumados poderia dar conta. É necessário travar uma guerra contra a narrativa. Nada a ver com fazer filmes a-narrativos (mesmo porque qualquer arte da duração está sempre, em algum nível, presa a uma certa idéia de continuidade lógica): existe sempre uma linha narrativa tênue que se estabelece e que estrutura o sentido de tudo que vemos na obra desses realizadores citados. Essa guerra à narrativa existe sobretudo como maneira modal de fazer cinema, considerar o tecido narrativo como algo que dá as linhas básicas de fruição da obra mas estruturar seu cinema a partir de outra coisa que é ela mesma não-narrativa, extrair beleza não a partir da história que está sendo contada, mas da narrativa própria da imagem, do intrincado jogo de decifração e revelação que pode se estabelecer de diversas formas entre espectador e imagem.

Diz-se tudo isso não para entender um possível estilo-Weerasethakul, mas para melhor inscrever Mal dos Trópicos nesse não-estilo do inesperado e do desconhecido. Pobre daquele que julgava que, tendo visto Eternamente Sua/Blissfully Yours, guardaria uma chave privilegiada de decifração para este novo filme de "Joe" Weerasethakul. OK, um dos personagens do filme anterior está lá, como também estão um filme dividido em dois e a floresta tailandesa, imantada de graça e exuberância. Mas o jogo se joga de outra forma. Onde antes havia dois casais, dois homens e duas mulheres, agora há apenas um casal, composto por dois homens. Tong, analfabeto, trabalhador braçal numa fábrica de gelo, depois desempregado indo procurar emprego numa sapataria. Keng, soldado do exército tailandês. Os primeiros planos do filme, uma campanha de um destacamento de soldados no campo, se prestam mais à confusão do que à instalação de um universo ficcional. Da mesma forma que a passagem, de um canto a outro do quadro, de um homem nu, andando um tanto animalescamente. Imagens prosaicas do cotidiano de uma cidade, um encontro de conhecidos conversando no trânsito, ou então imagens idílicas de vida no campo.

Só muito aos poucos os personagens passam a ter nome. Passam o tempo livre juntos: vão ao cinema, passeiam pela praça, conversam um no colo do outro, sentados num alpendre. Não é à toa que Brian Eno está na lista de agradecimentos do filme: Mal dos Trópicos é cinema de atmosfera em que os personagens parecem indestacáveis dos espaços que eles ocupam, a paisagem parecendo tão ou mais importante do que as pessoas que a habitam. Cinema modal porque, uma vez estabelecido o princípio narrativo que estrutura o sentido, cabe tudo na trama: um cachorro pétreo deitado na estrada (basta um "É o meu cachorro" para que ele seja personagem do filme), um número musical de cabaré, uma sessão de ginástica aeróbica ao ar livre, uma visita a um santuário mágico situado numa caverna. Mas é necessária a separação: Keng precisa voltar para o pelotão e Tong se afasta, dentro do plano, até se tornar indiscernível com o fundo preto.

A partir daí, o filme se reconstrói todo de novo (a ponto de haver na platéia assovios para o projecionista: tela preta por diversos segundos). Tong desaparecido, Keng ouve de vizinhos que há um monstro devorando vacas na região. O filme deixa então o ambiente idílico de um casal apaixonado para começar um filme (de guerra? de terror? um romance?) sobre um embate apaixonado entre dois homens, duas feras, dois seres da natureza. O repertório de imagens se multiplica: temos cartelas explicativas, almas de animais que saem do corpo, vaga-lumes que iluminam magicamente uma árvore de extensões colossais e macacos que se comunicam com Keng, agora nomeado apenas como "soldado". Ele busca o fantasma de um tigre, encarnação mística de um xamã que "vive nas memórias dos outros" e ocupa o corpo de Tong (ou serão duas outras pessoas que, por acaso, são interpretadas pelos mesmos atores? Ninguém sabe...). Pas de deux numa floresta: perseguição que se converte em paixão, ou paixão sublimada em perseguição, o soldado espreita à procura do monstro/tigre fantasma/ser amado. Só ele e floresta. Do outro lado, o xamã/Tong/tigre, nu e com o corpo todo pintado, cheira a quilômetros o corpo do ser amado. A batalha amorosa, antes travada à distância, agora se dá no mesmo plano, talvez o plano mais fenomenal do filme (e um plano de filme de terror), quando o soldado está olhando para um fora-de-plano que, com um movimento simplérrimo para a esquerda, revela sua presa/ser amado, que retorna o olhar. Não restam mais homens, não restam mais nomes: a partir daí, são só dois seres que, despidos de quaisquer atributos, ou com zilhões de atributos intercambiáveis, se aproximam e se repelem, viram seres misteriosos da floresta, ocupam seus espaços tanto mais quanto eles são cada espaço. Naturalismo redivivo, Apichatpong mostra o homem como um animal como qualquer outro, e encara a câmera como, mais que o testemunho, o catalizador dessa passagem. O primeiro longa-metragem de Joe se chama Objeto Misterioso ao Meio-Dia (Mysterious Object at Noon); seu filme seguinte, Blissfully Yours, é um objeto misterioso numa tarde; Mal dos Trópicos é um objeto misterioso de todas as horas do dia, ou simplesmente um objeto misterioso. E imenso.

Ruy Gardnier