OS SONHADORES
Bernardo Bertolucci, The dreamers, Itália/Inglaterra/França/EUA, 2003

De Bertolucci melhor sempre esperar o inesperado: do sublime (Antes da Revolução, O Último Imperador, A Estratégia da Aranha) ao regular (O Céu Que Nos Protege, Beleza Roubada), passando pela diluição de seu próprio cinema (1900, Assédio) e indo até mesmo ao simples e puramente promocional (O Pequeno Buda, O Último Tango em Paris). O que sempre houve de interessante no caso Bertolucci é a confusão entre os moldes que o diretor volta e meia utiliza para melhor enquadrar seus filmes dentro de um grande esquema de produção-distribuição internacional. Desta forma o promocional podia conter momentos de grande encanto e beleza (O Último Tango..., O Conformista), em meio à diluição podiam brotar alguns dos momentos mais inventivos e interessantes de seu cinema nos últimos anos (Assédio, Beleza Roubada), o sublime podia manifestar-se justamente nas tentativas de adequação e incorporação que Bertolucci sempre tentou junto aos grandes públicos (O Conformista, O Último Imperador) e mesmo o regular podia conter problemas e questões frutíferas o bastante para mantermos interesse no percurso bastante errante deste cineasta (O Céu Que Nos Protege).

2004 e 1968, antes e depois da revolução... Onde situar Os Sonhadores? Menos nos acontecimentos ocorridos durante maio de 68 em Paris que numa estranha região chamada "o cinema de Bernardo Bertolucci". Ou, em outras palavras: infelizmente não se trata de um acerto de contas com os erros do passado (os dos "sonhadores", os dos filmes falhos que Bertolucci realizou), como se impunha O Último Imperador em relação a 1900. Trata-se apenas de uma repetição de erros que possibilita tornar um anti-evento em uma imagem explorável (e eventual), catalogar um anti-signo à pecha infindável dos signos pertencentes à sociedade dos espetáculos. Por isso é que há algo de obsceno nas passagens em que imagens de arquivo de cine-jornal são mescladas às cenas da super-produção que Bertolucci realiza em 2003. Ou, para ficarmos em apenas um exemplo: a desastrosa participação (em todos os sentidos que esta palavra pode ter) de Jean-Pierre Léaud no filme não é apenas um crasso erro de representação do passado ao qual o filme se refere, como é também a repetição do equívoco cometido por Bertolucci em O Último Tango em Paris com a figura deste ator. A utilização de uma imagem bruta e embrutecida de um Léaud jovem que berra aos microfones junto com as cenas onde um Léaud velho - em meio a travellings, gruas e toda a sorte de movimentos de câmera sofisticados - reinterpreta sua "participação" num momento histórico dos mais complicados do século XX como apenas mais um "papel" que tem em um filme de Bertolucci só não soa mais equivocada pela lembrança da participação de Léaud em O Último Tango..., quando foi transformado na imagem-tipificação máxima do jovem cineasta francês afetado, pós-Nouvelle Vague, pseudo-artista metido a revolucionário.

Não temos dúvida nenhuma que se trata de um filme onde um velho cineasta relembra seu passado, e a princípio não temos nenhum problema com tal tipo de filme, ainda mais se pensamos em Alexandria... Nova York ou Má Educação. Mas o problema de Bertolucci é um de ordem: o que realmente lhe interessa? O percurso individual de cada um dos seus três protagonistas ou as condições sócio-históricas-psico-sexuais-políticas destes jovens em um velho apartamento parisiense que claramente representa tudo aquilo que, para Bertolucci, maio de 68 porá um fim? Um elogio a uma cinefilia transgressora e transgressiva que cultua Nicholas Ray e Sam Fuller (nem tão transgressora quanto nos faz acreditar Bertolucci, pelo menos por volta de um 68 pós-Cahiers du Cinéma, pós-O Demônio das Onze Horas e outros filmes de Godard) ou uma elegia a Henri Langlois e a um certo tipo de cinefilia que Bertolucci, ao que parece, crê não mais existir? Poema nostálgico ou simplesmente retrô; teatro naturalista (que numa cena o personagem do estudante americano põe-se a criticar, mas cujos pressupostos Bertolucci apenas reproduz em seu filme) ou meta-teatro de todos os sentimentos confusos de um cineasta ante um acontecimento que afetou toda uma geração da qual fez parte?

"Qual o problema em querer fazer tudo isso ao mesmo tempo e num mesmo filme?", deve perguntar o leitor. Nenhum realmente, não fosse o recorte que Bertolucci escolhe: a ausência de qualquer recorte, de qualquer espaço entre todas estas questões. Bertolucci não fez um filme ruim por encarar de maneira elegíaca a cinefilia que nasceu na Cinémathèque Française ou por encarar a juventude de "inocentes" de 68 um tanto conscientemente, nem por querer fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O problema - ou pelo menos o cerne de todo o problema que é o projeto estético deste filme - é que Bertolucci busca reconciliar aquilo que não é reconciliável, tenta fazer de seus personagens menos sujeitos que bonecos repetidores dos pontos de vista de um homem de 64 anos que olha para o passado com uma pretensa inocência - tão mais falsa por admitir maio de 68 como passado, por admitir a visão mais convencional possível daquilo que se convenciona chamar de "passado".

O "passado", ele é exatamente (ou não) o quê? Um gesto, uma ação (como na obra-prima que é o último filme de Eric Rohmer)? O terror, uma presença que ainda não se compreende por completo (como em Nossa Música)? Um ponto de vista, um encantamento (Chahine e Almodóvar)? Em Os Sonhadores, a hipótese é bem mais triste e desinteressante: o passado em que Bertolucci situa seu filme é justamente o tipo de "grande declaração", de narrativa importante que embalava os sonos dos tais ratos da Cinémathèque. Mais que a sofisticação técnica e cênica que tenta emular as imagens difíceis e brutais daquilo que se registrou do maio de 68, é isso o verdadeiramente obsceno.

Bruno Andrade