De Bertolucci melhor sempre
esperar o inesperado: do sublime (Antes da Revolução,
O Último Imperador, A Estratégia da Aranha)
ao regular (O Céu Que Nos Protege, Beleza
Roubada), passando pela diluição de seu próprio
cinema (1900, Assédio) e indo até mesmo
ao simples e puramente promocional (O Pequeno Buda,
O Último Tango em Paris). O que sempre houve
de interessante no caso Bertolucci é a confusão entre
os moldes que o diretor volta e meia utiliza para melhor
enquadrar seus filmes dentro de um grande esquema de
produção-distribuição internacional. Desta forma o promocional
podia conter momentos de grande encanto e beleza (O
Último Tango..., O Conformista), em meio
à diluição podiam brotar alguns dos momentos mais inventivos
e interessantes de seu cinema nos últimos anos (Assédio,
Beleza Roubada), o sublime podia manifestar-se
justamente nas tentativas de adequação e incorporação
que Bertolucci sempre tentou junto aos grandes públicos
(O Conformista, O Último Imperador) e
mesmo o regular podia conter problemas e questões frutíferas
o bastante para mantermos interesse no percurso bastante
errante deste cineasta (O Céu Que Nos Protege).
2004 e 1968, antes e depois da revolução... Onde situar
Os Sonhadores? Menos nos acontecimentos ocorridos
durante maio de 68 em Paris que numa estranha região
chamada "o cinema de Bernardo Bertolucci".
Ou, em outras palavras: infelizmente não se trata de
um acerto de contas com os erros do passado (os dos
"sonhadores", os dos filmes falhos que Bertolucci
realizou), como se impunha O Último Imperador
em relação a 1900. Trata-se apenas de uma repetição
de erros que possibilita tornar um anti-evento em uma
imagem explorável (e eventual), catalogar um anti-signo
à pecha infindável dos signos pertencentes à sociedade
dos espetáculos. Por isso é que há algo de obsceno nas
passagens em que imagens de arquivo de cine-jornal são
mescladas às cenas da super-produção que Bertolucci
realiza em 2003. Ou, para ficarmos em apenas um exemplo:
a desastrosa participação (em todos os sentidos que
esta palavra pode ter) de Jean-Pierre Léaud no filme
não é apenas um crasso erro de representação do passado
ao qual o filme se refere, como é também a repetição
do equívoco cometido por Bertolucci em O Último Tango
em Paris com a figura deste ator. A utilização de
uma imagem bruta e embrutecida de um Léaud jovem
que berra aos microfones junto com as cenas onde um
Léaud velho - em meio a travellings, gruas e
toda a sorte de movimentos de câmera sofisticados -
reinterpreta sua "participação" num momento
histórico dos mais complicados do século XX como apenas
mais um "papel" que tem em um filme de Bertolucci
só não soa mais equivocada pela lembrança da participação
de Léaud em O Último Tango..., quando foi transformado
na imagem-tipificação máxima do jovem cineasta francês
afetado, pós-Nouvelle Vague, pseudo-artista metido a
revolucionário.
Não temos dúvida nenhuma que se trata de um filme onde
um velho cineasta relembra seu passado, e a princípio
não temos nenhum problema com tal tipo de filme, ainda
mais se pensamos em Alexandria... Nova York ou
Má Educação. Mas o problema de Bertolucci é um
de ordem: o que realmente lhe interessa? O percurso
individual de cada um dos seus três protagonistas ou
as condições sócio-históricas-psico-sexuais-políticas
destes jovens em um velho apartamento parisiense que
claramente representa tudo aquilo que, para Bertolucci,
maio de 68 porá um fim? Um elogio a uma cinefilia transgressora
e transgressiva que cultua Nicholas Ray e Sam Fuller
(nem tão transgressora quanto nos faz acreditar Bertolucci,
pelo menos por volta de um 68 pós-Cahiers du Cinéma,
pós-O Demônio das Onze Horas e outros filmes
de Godard) ou uma elegia a Henri Langlois e a um certo
tipo de cinefilia que Bertolucci, ao que parece, crê
não mais existir? Poema nostálgico ou simplesmente retrô;
teatro naturalista (que numa cena o personagem do estudante
americano põe-se a criticar, mas cujos pressupostos
Bertolucci apenas reproduz em seu filme) ou meta-teatro
de todos os sentimentos confusos de um cineasta ante
um acontecimento que afetou toda uma geração da qual
fez parte?
"Qual o problema em querer fazer tudo isso ao mesmo
tempo e num mesmo filme?", deve perguntar o leitor.
Nenhum realmente, não fosse o recorte que Bertolucci
escolhe: a ausência de qualquer recorte, de qualquer
espaço entre todas estas questões. Bertolucci não fez
um filme ruim por encarar de maneira elegíaca a cinefilia
que nasceu na Cinémathèque Française ou por encarar
a juventude de "inocentes" de 68 um tanto
conscientemente, nem por querer fazer as duas coisas
ao mesmo tempo. O problema - ou pelo menos o cerne de
todo o problema que é o projeto estético deste filme
- é que Bertolucci busca reconciliar aquilo que não
é reconciliável, tenta fazer de seus personagens menos
sujeitos que bonecos repetidores dos pontos de vista
de um homem de 64 anos que olha para o passado com uma
pretensa inocência - tão mais falsa por admitir maio
de 68 como passado, por admitir a visão mais
convencional possível daquilo que se convenciona chamar
de "passado".
O "passado", ele é exatamente (ou não) o
quê? Um gesto, uma ação (como na obra-prima que
é o último filme de Eric Rohmer)? O terror, uma presença
que ainda não se compreende por completo (como em Nossa
Música)? Um ponto de vista, um encantamento (Chahine
e Almodóvar)? Em Os Sonhadores, a hipótese é
bem mais triste e desinteressante: o passado em que
Bertolucci situa seu filme é justamente o tipo de "grande
declaração", de narrativa importante que embalava
os sonos dos tais ratos da Cinémathèque. Mais
que a sofisticação técnica e cênica que tenta emular
as imagens difíceis e brutais daquilo que se registrou
do maio de 68, é isso o verdadeiramente obsceno.
Bruno Andrade
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