"Por que realizar
uma obra, se é tão belo apenas sonhá-la?",
questiona Pier Paolo Pasolini em Decameron (Decameron,
1972). Peter Greenaway, em A Última Tempestade,
transforma os delirantes sonhos vingativos de Prospero
(John Gielgud), Duque de Milão exilado em ilha
distante com sua filha e seus livros, em fatos reais,
para refletir acerca da criação artística,
ao mesmo tempo angelical e diabólica, pois, embora
capaz de gerar a beleza redentora e de absorver todo
o conhecimento do mundo, traz consigo, inseparável,
o poder do artista, tanto sobre a obra e os personagens,
quanto sobre o público para quem se dirige.
Peter Greenaway adapta
A Tempestade, de William Shakespeare: a biblioteca
com que Prospero é exilado - pelo próprio
irmão, que lhe toma o ducado para aliar-se ao
Reino de Nápoles - permite ao cineasta inglês
instaurar a intensa intertextualidade que caracteriza
seus filmes, visualmente expressa através do
aproveitamento da superfície do quadro - sobreposição
e divisões de imagens dentro da tela, uso gráfico
dos textos, quebrando a linearidade temporal da narrativa
ao estilhaçar o espaço para aproximá-lo
da tela do computador, hipertextual por excelência,
com links que remetem sempre a outros links. Dessa forma,
enquanto Prospero, cercado por figuras mitológicas
(sobretudo Ariel e Calibã, o Anjo e o Demônio,
respectivamente), escreve a trama de vingança,
Greenaway aproveita para relacionar a obra em gestação
com todos os livros que ajudaram a construir o imaginário
do artista, que agora se apropria e se utiliza da rede
de signos conhecida a priori a fim de criar o novo,
ato em si mágico, misterioso e inexplicável,
exprimindo os sonhos fantásticos que lhe atravessam
a alma e o corpo.
A Última Tempestade,
no entanto, não cai nas autocitações
vazias que marcam, por exemplo, Oito Mulheres e Meia
(Eight and A Half Women, 1999) e As Maletas
de Tulse Luper, A História de Moab (The
Tulse Luper Suitcases, The Moab Story, 2003), em
que Peter Greenaway se preocupa somente com o próprio
umbigo. Se em Oito Mulheres e Meia cada seqüência
se inicia com a página do roteiro que a origina
- de modo que a cena fecha-se sobre si mesma - , e se
em As Maletas de Tulse Luper, A História de
Moab há a onipresença de referências
às obras anteriores do cineasta - a repetição
do mesmo acontecimento três vezes, bem como a
reaparição da personagem Cissie Colpitts,
as quais se ligam a Afogando em Números
(Drawning by Numbers, 1988), ou o fato de Tulse
Luper ter escrito o roteiro de A Barriga do Arquiteto
(The Belly of an Architect, 1987) - , em A
Última Tempestade, ao contrário, os
livros que pontuam a narrativa acabam por estruturá-la,
na medida em que (como aponta a seqüência
na qual Prospero os destrói, lançando-os
na água, para possibilitar que a peça
de Shakespeare enfim surja) eles se referem à
alquimia que transforma chumbo em ouro.
É a arte enquanto
bruxaria, que materializa as páginas escritas
por Prospero, que torna reais os delírios do
protagonista, que faz da vingança caminho, através
do amor entre Miranda (Isabelle Pasco) e Ferdinand (Mark
Rylance), para o perdão e, em conseqüência,
para a redenção. Movimento, contudo, inusitado
no cinema de Greenaway que, em geral, prefere o humor
negro a fim de revelar o cinismo das relações
pessoais e dos códigos sociais que as pautam,
seja na mãe e nas filhas que matam os maridos
em Afogando em Números; seja no estupro
coletivo como método de punição
à falsa gravidez em O Bebê Santo de
Macon (The Baby of Macon, 1993); seja no
exótico jantar servido ao final de O Cozinheiro,
O Ladrão, Sua Mulher e o Amante (The Cook,
The Thief, His Wife and Her Lover, 1989). Trata-se,
por certo, de mostrar o poder que perpassa e que desequilibra
o contato entre os homens, visto que os desiguala: na
disputa pelo controle da exposição entre
Stourley Kracklite (Brian Dennehy) e Caspasian Speckler
(Lambert Wilson) em A Barriga do Arquiteto; nos
enquadramentos precisos e arbitrários de Mr.
Neville (Anthony Higgins) para seus desenhos, aos quais
dispensa a mesma violência com a qual chantageia
sexualmente aquela que o emprega em O Contrato do
Amor (The Draughtman’s Contract); na obsessão
de Greenaway pelos números, que servem para ordenar,
para sistematizar e, por fim, para anular qualquer afeto
ou sentimento dos personagens neles imersos.
Conforme evidenciam tanto
o pré-cineasta encarnado por Mr. Neville, quanto
Nagiko (Vivian Wu), a qual domina os corpos dos amantes
ao usá-los como páginas em O Livro
de Cabeceira (The Pillow Book, 1996), a arte
se constrói enquanto estratégia de controle.
Prospero, em A Última Tempestade, detém
o poder sobre os personagens que cria, pois, literalmente
(é o próprio John Gielgud quem fala por
eles), dá-lhes voz. Para perpetrar sua vingança,
escraviza Ariel e Calibã. Frente à rebelião
do segundo - a qual marca a independência progressiva
das demais figuras em cena do jugo do artista - , resta
a Prospero apenas a obediência do primeiro, a
quem promete libertar caso o objetivo a que se propõe
seja alcançado.
Ariel, mas também
Prospero, pois enquanto Ariel executa as ações
no mundo imaginado por Prospero, este igualmente representa
a ponte entre o universo cinematográfico visto
na tela e o público para o qual ele se destina.
De maneira que a liberdade de Ariel liga-se a de Prospero,
o qual a adquire quando reconhece que não há
onipotência na criação, quando,
paradoxalmente, abandona o papel de criador para abraçar
o de personagem: os sonhos do artista - de Prospero,
de Greenaway - como veículos para incitar os
sonhos dos espectadores, verdadeiros senhores a quem
o cinema se subordina.
Paulo Ricardo de Almeida
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