TARTARUGAS PODEM VOAR
Bahman Ghobadi, Lakposhta hâm parvaz mikonand, Irã, 2004

A cidade inteira gira em torno de Satélite. Satélite é um menino de óculos que lhe tomam metade do rosto. Ele traz e instala antenas nos vilarejos entre a fronteira do Irã com o Iraque, tanto as convencionais quanto as parabólicas. Negociante precoce, ele arruma sustento para os órfãos curdos fazendo-os recolher minas americanas que ele posteriormente vende a um comerciante local. Além disso, Satélite também é o intérprete dos acontecimentos que estão prestes a ter lugar naquela localidade: estamos nas vésperas da invasão americana ao Iraque, e os anciãos do vilarejo instalam uma parabólica para tentar se antecipar à declaração de guerra e preparar-se para o pior. Satélite (pronúncia americana, "sateláit"), com suas duas ou três palavras em inglês, é a única pessoa que parece possivelmente capaz de desvendar a fala dos canais americanos que desencadeará a guerra. Tartarugas Podem Voar é um nome poético para designar dois percursos: o primeiro é o do menino self-made-man que venera tudo que é made in USA mas que perde tudo que tem por causa de coisas made in USA; o segundo é o percurso de uma mina que explode - um objeto semelhante a uma tartaruga encolhida que, ao contrário do animal, se abre quando alguém encosta nela, e voa, tirando pedaço daqueles que estão por perto.

Bahman Ghobadi, em seu terceiro longa, não abandona seu sadismo característico de estabelecer tensões emocionais a partir de aleijados e animais em situações delicadas e daí tentar extrair sentimentos "humanos" ou evocações humanitárias. Mas dessa vez o coquetel vem recheado de uma densidade inesperada, menos estética do que política. Antes dos Estados Unidos invadirem fisicamente as terras, pela presença das tropas, eles já invadiram todo o resto: o solo através das minas americanas, a língua através das saudações e das outras palavras que Satélite troca com seus parceiros de negócios, o imaginário a partir dos canais de televisão (tanto os canais permitidos quanto os "proibidos", os de música, de comportamento e de sexo), e até a prole, uma vez que o filho da menina Agrin foi concebido através de um estupro por soldado americano. Vendo nela uma pessoa tão solitária quanto ele, Satélite se apaixona por Agrin e completa enfim seus códigos e sua dependência em relação aos EUA: tudo que diz respeito a Satélite foi ou será tocado pela presença americana, da qual ele será – sem trocadilho – um satélite, e um satélite que servirá de astro maior a toda a comunidade, esta também tornada satélite do menino.

Tartarugas Podem Voar comove em alguma medida porque jamais nos impõe essa centralização. Vemos aos poucos que todo o entorno de Satélite vai sendo destruído pela mão imaterial americana, mas isso nunca é telegrafado diretamente para nós. É pela acumulação discreta de signos que podemos "ver" o que acontece. E "ver" tem um significado bastante específico no filme. "Ver" não é da natureza laica da visibilidade ocidental, mas do destino e do desígnio: Satélite precisa interpretar como um oráculo as imagens (que ele não entende) da televisão, mas, sabendo que ele não é nem oráculo e muito menos um verdadeiro intérprete, ele espera que um outro faça por ele a profecia (dessa vez uma verdadeira profecia) e ele possa, como falso oráculo, declarar a iminência da guerra. Seguem planos de helicópteros americanos chegando e distribuindo folhetos em que dizem que são a salvação do mundo, enquanto ao longo do filme vemos que os estilhaços deixados pela presença americana são de forma global a própria razão da penúria daquela gente. Poderosa arte de apenas mostrar, esperando que a síntese se faça somente na cabeça do espectador (assim como a relação tartaruga=mina), dando a ele a liberdade de entrar na história e ruminar por si próprio a complexidade de visões e interesses do qual o filme é questão. Satélite é um ditador? É um santo? É o porta-voz da desgraça ou a última chance de esperança? Mártir ou vilão? Bahman Ghobadi parece muito mais interessado na ambigüidade – que, no mais, é a dele próprio, de diretor com preocupações políticas mas também cheio de crueldade em filmar o que filma – do que na defesa cega de uma figura fácil demais de se identificar. Através de Satélite, repousa toda a problemática do cinema de Bahman Ghobadi e, especificamente, de Tartarugas Podem Voar, filme comovente em sua sinceridade formal e em sua falta de jeito estilística.

Ruy Gardnier