A cidade inteira gira em torno
de Satélite. Satélite é um menino
de óculos que lhe tomam metade do rosto. Ele
traz e instala antenas nos vilarejos entre a fronteira
do Irã com o Iraque, tanto as convencionais quanto
as parabólicas. Negociante precoce, ele arruma
sustento para os órfãos curdos fazendo-os
recolher minas americanas que ele posteriormente vende
a um comerciante local. Além disso, Satélite
também é o intérprete dos acontecimentos
que estão prestes a ter lugar naquela localidade:
estamos nas vésperas da invasão americana
ao Iraque, e os anciãos do vilarejo instalam
uma parabólica para tentar se antecipar à
declaração de guerra e preparar-se para
o pior. Satélite (pronúncia americana,
"sateláit"), com suas duas ou três
palavras em inglês, é a única pessoa
que parece possivelmente capaz de desvendar a fala dos
canais americanos que desencadeará a guerra.
Tartarugas Podem Voar é um nome poético
para designar dois percursos: o primeiro é o
do menino self-made-man que venera tudo que é
made in USA mas que perde tudo que tem por causa
de coisas made in USA; o segundo é o percurso
de uma mina que explode - um objeto semelhante a uma
tartaruga encolhida que, ao contrário do animal,
se abre quando alguém encosta nela, e voa, tirando
pedaço daqueles que estão por perto.
Bahman Ghobadi, em seu terceiro longa, não abandona
seu sadismo característico de estabelecer tensões
emocionais a partir de aleijados e animais em situações
delicadas e daí tentar extrair sentimentos "humanos"
ou evocações humanitárias. Mas
dessa vez o coquetel vem recheado de uma densidade inesperada,
menos estética do que política. Antes
dos Estados Unidos invadirem fisicamente as terras,
pela presença das tropas, eles já invadiram
todo o resto: o solo através das minas americanas,
a língua através das saudações
e das outras palavras que Satélite troca com
seus parceiros de negócios, o imaginário
a partir dos canais de televisão (tanto os canais
permitidos quanto os "proibidos", os de música,
de comportamento e de sexo), e até a prole, uma
vez que o filho da menina Agrin foi concebido através
de um estupro por soldado americano. Vendo nela uma
pessoa tão solitária quanto ele, Satélite
se apaixona por Agrin e completa enfim seus códigos
e sua dependência em relação aos
EUA: tudo que diz respeito a Satélite foi ou
será tocado pela presença americana, da
qual ele será sem trocadilho um
satélite, e um satélite que servirá
de astro maior a toda a comunidade, esta também
tornada satélite do menino.
Tartarugas Podem Voar comove em alguma medida
porque jamais nos impõe essa centralização.
Vemos aos poucos que todo o entorno de Satélite
vai sendo destruído pela mão imaterial
americana, mas isso nunca é telegrafado diretamente
para nós. É pela acumulação
discreta de signos que podemos "ver" o que
acontece. E "ver" tem um significado bastante
específico no filme. "Ver" não
é da natureza laica da visibilidade ocidental,
mas do destino e do desígnio: Satélite
precisa interpretar como um oráculo as imagens
(que ele não entende) da televisão, mas,
sabendo que ele não é nem oráculo
e muito menos um verdadeiro intérprete, ele espera
que um outro faça por ele a profecia (dessa vez
uma verdadeira profecia) e ele possa, como falso oráculo,
declarar a iminência da guerra. Seguem planos
de helicópteros americanos chegando e distribuindo
folhetos em que dizem que são a salvação
do mundo, enquanto ao longo do filme vemos que os estilhaços
deixados pela presença americana são de
forma global a própria razão da penúria
daquela gente. Poderosa arte de apenas mostrar, esperando
que a síntese se faça somente na cabeça
do espectador (assim como a relação tartaruga=mina),
dando a ele a liberdade de entrar na história
e ruminar por si próprio a complexidade de visões
e interesses do qual o filme é questão.
Satélite é um ditador? É um santo?
É o porta-voz da desgraça ou a última
chance de esperança? Mártir ou vilão?
Bahman Ghobadi parece muito mais interessado na ambigüidade
que, no mais, é a dele próprio,
de diretor com preocupações políticas
mas também cheio de crueldade em filmar o que
filma do que na defesa cega de uma figura fácil
demais de se identificar. Através de Satélite,
repousa toda a problemática do cinema de Bahman
Ghobadi e, especificamente, de Tartarugas Podem Voar,
filme comovente em sua sinceridade formal e em sua falta
de jeito estilística.
Ruy Gardnier
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