Por que fazer um filme? Existem
infinitas razões, da vaidade à necessidade
de expressão, do amor pelo métier
ao amor pela conta bancária, ou até pela
salutar obrigação de estar empregado.
Mas nenhumas dessas razões mais costumeiras explicam
a feitura de um filme como Tarnation, um autodocumentário
que é uma prestação de contas selvagem
consigo mesmo, com a vida familiar e com o ambiente
institucional de uma América que sempre luta
para que seus cidadãos sejam normais e, mais
que isso, bem sucedidos em sua normalidade. Jonathan
Caouette, o diretor do filme, não nasceu no seio
familiar mais tranqüilo, não teve a chance
de desenvolver calmamente sua personalidade, vivendo
em penúria com pais adotivos, com seus avós
ou com sua mãe. Hiperativo, com processo de despersonalização
antes dos quinze anos de idade, teve desde cedo o uso
da própria imagem como espécie de terapia
radical de recentramento. Filmou a si e à sua
família loucamente desde os onze anos de idade:
dramatizações para a câmera, filmetes
em que interpretava mulheres decadentes dando testemunhos,
ou fazendo sua avó interpretar papéis,
entre outras diversas atividades (entre elas a feituras
de curtas underground). Tarnation, um
filme que retoma todas essas imagens e narra em terceira
pessoa, através de legendas na tela, o percurso
de Jonathan e da mãe Renee, aparece principalmente
como um filme de exorcismo, de expiação
de uma vida com as imagens, com o que essas imagens
puderam revelar ou esconder, mas acima de tudo guardar.
Só isso, no entanto, não faria de Tarnation
um filme especial dentro do extenso mar de autodocumentários
produzidos nos últimos anos. O que faz do filme
de Jonathan Caouette uma experiência verdadeiramente
desorientadora é o fato de ele montar a partir
desse caleidoscópio de imagens de si mesmo produzidas
durante toda sua vida uma espécie de espetáculo
musical, uma ópera-rock documentária de
sua vida. Uma tal operação, em que as
cenas de uma vida ganham relevos hiperficcionalizados
e transformados em performance pode evocar obras tão
diversas quanto o Black Album do rapper Jay-Z
ou a encenação com barbies que Todd Haynes
fez em Superstar The Karen Carpenter Story,
mas o decisivo de Tarnation é que a forma
grandiosa encontrada para narrar com imagens de arquivo
uma vida em primeira pessoa nos demanda um outro estatuto
da imagem cinematográfica, uma outra maneira
de nos relacionarmos com as imagens que estamos vendo,
pesar diferentemente cada cena, cada registro de discussão
familiar ou cada informação que é
dada pelas onipresentes legendas que tecem a narrativa.
Tarnation na superfície aparece como um autodocumentário,
mas se constrói verdadeiramente como o musical
frustrado da vida de uma mulher e de seu filho. É
o triunfo sublimado dos dejetos da América, daquilo
que eles chamam tão apropriadamente de underdog.
Explica-se. O mote narrativo central de Tarnation,
aquilo que instala a ficção, é
um acontecimento entre outros. Renee LeBlanc, uma menina
linda de Houston, Texas, recém descoberta por
um fotógrafo de Nova York e transformada em garota
propaganda, cai do teto de sua casa, quebra os dois
joelhos e fica paralisada por seis meses. Por indicação
de psiquiatras, a família autoriza a utilização
de choque elétrico para uma melhor recuperação
psicológica da moça, e isso acaba desencadeando
um histórico que culmina com múltiplas
internações em instituições
psiquiátricas e um completo descontrole emocional
e psíquico da jovem. Entre internações
e altas dessas instituições, Renee se
casa, tem um filho e é abandonada pelo marido.
Tentando sair de casa com a criança, ela é
estuprada por um motorista que lhe dá carona.
Jonathan, a partir daí, vive com pais adotivos
e posteriormente com seus avós, e desenvolve
desde cedo problemas psicológicos, dos quais
o principal é a despersonalização.
Gay desde cedo e dono de uma sensibilidade precoce,
com treze anos Jonathan é apresentado ao punk
e ao cinema underground, freqüentando clubes
para maiores de dezoito anos travestido como uma menina
dark. Mãe e filho se igualam nesse desejo
abortado de estrelismo, nesse "bigger than life"
que a vida lhes recusa impiedosamente, seja pela localidade
(o Texas não é a Califórnia), seja
pelo ambiente que os circunda (a família, a vizinhança,
os Estados Unidos), mais sobretudo pela impossibilidade
de articulação de discursos. A loucura,
dizia Foucault, é a ausência de discurso.
Tarnation, um registro de vida apresentado aos
espectadores como musical freak, é finalmente
a vitória abjeta e sublime do underdog
frente a um mundo que não foi montado para ele.
Os créditos do filme, tanto os iniciais quanto
os finais, nos apresentam os atores como num filme de
ficção. Renee interpreta Renee, Jonathan
interpreta Jonathan, e ambos são apresentados
como estrelas do filme. Não é uma mera
brincadeirinha de apresentação, mas uma
chave privilegiada de decifração do filme:
Tarnation é o filme possível após
a queda de Renee aos doze anos e sua carreira frustrada,
o filme possível por um rapaz despersonalizado
e por uma mãe esquizofrênica tornada débil
após uma overdose de lítio. Naturalmente,
para o processo ser levado a cabo ao mesmo tempo como
espetáculo e expiação, como triunfo
do que não foi e como criação de
um discurso de sua própria história, o
filme contém cenas questionáveis, e acima
de tudo difíceis de serem vistas: Renee louca
fazendo performances com uma abóbora de brinquedo
diante da tela, Jonathan chorando ao receber a notícia
da overdose da mãe, ou as brigas familiares diante
da câmera com seu avô (sobre como permitiram
os tratamentos com choque elétrico que iniciaram
todo o processo de loucura da mãe) ou o reencontro
entre pai, mãe e filho após mais de vinte
anos. Podemos nos questionar da falta de tom ao fazer
estes questionamentos com a câmera ligada, podemos
perguntar se a própria obsessão em filmar
todos os aspectos desta vida não constitui propriamente
algo doentio. Tarnation não está
livre destas críticas nem de muitas outras possíveis
sobretudo morais, mas não só estas
, mas o próprio projeto do filme mostra
coerentemente por que ele é feito desta forma,
porque ele é mostrado para além de sua
própria família e como ele deseja ser
visto para um público que não é
concernido diretamente com as questões familiares
que ele trata.
Uma dos delírios recorrentes de Renee é
com Elizabeth Taylor. Por diversas vezes ela se acha
filha da atriz, diz que comprou tal ou tal broche que
pertencia a ela. Delírio esquizofrênico
conhecido, mas que revela que o imaginário da
ex-garota propaganda ainda é o da estrela abortada,
da menina promissora que por conta do acaso, da má
informação e de procedimentos científicos
equivocados não teve a vida que esperava. Jonathan
Caouette, em Tarnation, faz da mãe sua Elizabeth
Taylor, sua superstar glamurosa, e assim se reconcilia
com o passado e com as imagens de seu passado de forma
comovente. Freaks meets All That Heaven
Allows. Não é o mais desprezível
dos motivos para se fazer um filme. Um grande filme.
Ruy Gardnier
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