Não se passa incólume
por uma sessão de Tarnation, e pode-se
dizer que este é um grande ponto positivo para
o filme numa época em que tantas produções
cinematográficas são esquecidas - muitas
até mesmo ainda enquanto as assistimos. Isso
não se trata nunca, por si só, de um elogio
a ele, uma vez que inúmeras outras coisas (e
não só filmes) na vida não deixam
de nos afetar, sem serem com isso positivos como fatos
ou impulsos criadores (no caso de uma obra de arte).
Tarnation possui um outro valor que é
no mínimo discutível como um específico
dele: a transformação de um material,
a princípio da ordem do "doméstico",
em objeto do discurso artístico. Não se
trata exatamente de uma novidade no cinema - um impulso
que remete, pelo menos, aos anos 60 e a vários
trabalhos de cineastas de consistente trajetória
fora do "grande cinema", como um Stan Brakhage.
É preciso que se some esta gênese da maior
parte do material do filme (que nos apresenta um cinema
do self, onde objeto e sujeito misturam-se o
tempo todo) com a atual explosão de fronteiras
que o digital como formato tem permitido (não
apenas em termos de produção mas de exibição
também) para entender o efeito explosivo que
a exibição de Tarnation dentro
do Festival de Cannes conseguiu alcançar (afinal,
é raro um filme da Quinzena dos Realizadores
repercutir como este conseguiu).
Me parece, no entanto, que se o filme (cabe esclarecer:
claro que, especificamente falando, Tarnation
não é um "filme", já
que é feito e exibido em digital, etc - no entanto
para fins deste texto utilizaremos o conceito mais abrangente
do termo, deixando de lado esta outra discussão)
tem algum interesse real, ele ultrapassa estas questões
que garantiram tal repercussão, e se encaminha
mais pela verdadeira historiografia de uma certa imagem
caseira contemporânea que o filme permite entrever
– ou seja, Tarnation serve como um retrato geracional
fascinante para estudo futuro, como uma primeira obra
que demonstre o uso de uma determinada tecnologia (o
vídeo) pela geração que nasce e
cresce com ela. Tudo isso de forma cronológica
e nos momentos mesmo em que acontecem - e não
por uma reflexão a posteriori com estas
imagens.
Como se pode ver, tudo a que nos referimos até
agora, e que é onde nos parecem residir os focos
de interesse e/ou de atenção midiática
que o filme gera, são, primariamente, fatos que
estão fora do discurso fílmico em si.
Quer dizer, tratamos de fatos presentes no filme mas
que independem bastante de qual uso se quis fazer deste
tipo de imagem e/ou formato de exibição.
Porque se partimos para uma análise do material
ali presente, a coisa vai se complicando bastante.
Tarnation é o retrato de uma subjetividade
em crise, isso ele deixa claro desde o início.
O que ele vai fazer, então, é uma arqueologia
desta subjetividade em crise, eminentemente pelo viés
familiar, doméstico: de onde vem, afinal, esta
crise? Um passo seguinte, que poderia-se dizer que o
filme faz, é o de expurgar esta crise pela sua
própria realização. O cinema como
objeto de terapia, portanto. Aceitando-se que este é
o impulso por detrás do filme (e ele o afirma
seguidamente) fica a primeira pergunta: entendido o
motivo do realizador precisar fazer isso, entende-se
o porquê dele precisar exibir tal produto? Para
deixar mais claro, pensemos, por exemplo, nos que acreditem
na psicanálise como processo terapêutico.
É fácil entender porque eles vão
ao analista a partir desta ótica - mas seria
assim tão fácil entender porque deveriam
exibir suas sessões posteriormente para uma audiência?
Pois o efeito que sentimos ao longo de Tarnation
é eminentemente este: estamos assistindo a algo
que não deveríamos estar vendo, a uma
invasão da esfera do privado - que não
fica só no eventual interesse que um tal movimento
possa ter, mas extravasa para questões mais complicadas.
Ainda assim, mesmo que aceitemos o acima dito, não
seria motivo a priori para se colocar frontalmente
contra o filme. Afinal, se o realizador resolveu realizar
esta terapia-exorcismo em público, mesmo que
o achemos algo equivocado, trata-se de impulso a ser
respeitado como qualquer outro. Aonde a coisa começa
a complicar (e era de se esperar) é no que esta
terapia começa a respingar para as pessoas em
torno do realizador – e aí sim torna-se complicado
fazer o "tratamento" de maneira audiovisual
e com filmes domésticos, porque está não
só se usando um discurso para tratar de algumas
pessoas para um especialista (caso da psicanálise),
mas a própria imagem destas pessoas, e captada,
muitas vezes, com fins outros do que o de sua exibição
pública. Quando se trata, então, de pessoas
com problemas graves de saúde, seja ela física
(um derrame da avó), seja ela mental (a maioria),
a exibição destas imagens passa a beirar
o abjeto, o pornográfico. Costurar este uso com
ferramentas de um cinema de ficção nunca
diminui o que é anterior ao uso que se deseje
fazer das imagens: seu estatuto inicial, sua gênese.
Mas é importante dizer que essa abjeção
não se dá só por uma questão
do estatuto destas imagens em si (imagens domésticas
ou de pessoas sem capacidade de defesa contra o produtor
delas), questão que poderia ser resolvida "legalmente"
sem problemas. Se trata de denunciar, acima de tudo,
que uso se faz aqui destas imagens: pois Caouette cria
com elas um discurso de demonização culpabilizadora
de algumas figuras (o avô, a avó, o pai)
pela vitimização de outras (ele mesmo,
principalmente - "poor Jonathan" repete o
filme toda hora - e a mãe). Como, trabalhe-se
como quiser, não se tratam ali de figuras do
campo da ficção, torna-se algo bastante
sujo assistir-se a cenas como a do avô tornado
um demônio por manipulações de vídeo
com cores vermelhas; ou, principalmente, a reprodução
por escrito de uma conversa com o pai que não
temos nenhuma evidência que tenha se dado daquela
maneira.
Não bastando isso, se questiona aqui de fato
o impulso por trás deste ato de se montar e exibir
estas imagens como aí estão. Porque, produto
de uma extremada vaidade, Tarnation soa cada
vez mais como um ato pensado, como a possibilidade de
tornar a vida familiar em freak show para consumo
alheio menos por necessidade pessoal (esta se esgotaria
na gravação das cenas), e muito mais por
possibilidade de conseguir-se algo em proveito próprio
(algo conseguido, a partir da exibição
em Cannes), a partir da exposição da imagem
de todas estas pessoas que participaram de um jogo cujas
regras desconheciam. Se visto assim, Tarnation
completa seu trajeto rumo a abjeção, sem
qualquer pudor. E qualquer interesse histórico
ou de "identificação" que ele
possa encontrar não parece capaz, em nenhum momento,
de ser maior do que o mal que ele se permite fazer com
os que explora e aos que o assistem desta maneira.
Claro que se pode afirmar que toda a vaidade de Caouette
está exposta por ele mesmo na tela, e que sua
manipulação do material é evidente.
Ainda assim, não se mudará a sensação
de assistir-se a um movimento criminoso de utilização
da imagem/som – e deve-se lembrar que a consciência
de um criminoso do seu próprio crime não
é atenuante, e sim complicador.
Aqui não se tocou ainda nem nas questões
formais em si, porque elas parecem até problemas
menores – como a utilização da trilha
sonora (não as canções, e sim a
trilha "de fundo") como elemento de auto-piedade; ou
como o reiterativo uso de legendas como discurso, seja
cronológico (no início de forma especialmente
primária, porque imagens e sons construirão
todo aquele tedioso desfilar de fatos depois), seja
de comentário (afinal a legenda sempre entra
com uma leitura outra do que uma voz off, cria
sempre uma terceira pessoa que distancia o realizador
de um discurso – o que num filme como este não
se justifica).
No meio do filme, ficamos sabendo que Caouette fez no
colégio uma encenação de Veludo
Azul (de David Lynch) como um musical. Pena que
não foi este tipo de impulso criador que ele
resolveu nos mostrar na sua incursão no cinema,
porque este sim parecia algo que interessaria assistir
- e, diga-se, igualmente pessoal (lembrando neste caso
Hedwig and the Angry Inch, cujo diretor, John
Cameron Mitchell, consta nos produtores de Tarnation
– embora se saiba que um filme nos moldes deste não
precisa de um "produtor", e que os nomes de
Mitchell e Gus Van Sant indicam mais um apadrinhamento
de grife que abra portas como as de Cannes). Já
seu espetáculo de vaidosa auto-piedade, aqui
apresentado, parece existir para pouco mais do que o
consumo sado-masoquista de uma "vida real"
– e disto precisamos pouco.
Eduardo Valente
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