Em
Olhos Abertos, transcorre a cena matricial de
Shyamalan. O protagonista Joshua, contando dez anos,
está com sua mãe na seção
de brinquedos de uma loja de conveniência. O que
ele diz para ela poderia ser transplantado, tomadas
as devidas distâncias, para a boca de todo herói
de seus filmes: "Antes, eu entrava aqui e era um
mundo de sonhos (...) Hoje, é só plástico
e tinta."
O cinema de M. Night Shyamalan, ao menos até
agora, tem como tema principal a fé, sua perda
e a possibilidade de religação a um estado-de-espírito
que restabeleça ordem no mundo (religião=religare).
Seus filmes são muito lentos. O ritmo deles não
é pautado pelas ações dos personagens,
mas pela narrativa interna neles que vai do não-saber
ao algum-saber (jamais ao tudo-saber). De Olhos Abertos
a A Vila (não tendo visto o primeiro filme
do realizador, Praying with Anger), as histórias
dos filmes são o percurso especulativo que leva
os protagonistas de estados de crença à
dúvida, e vice-versa. O objetivo de Shyamalan
não é procurar certezas, mas dramatizar
o trajeto; não encontrar soluções,
mas alguma paz, uma vez dada a comprovação
de que não há soluções.
Se há um sentimento que comove em todos os seus
filmes, mesmo os mais irregulares, é a incerteza.
Bruce Willis não entende o que acontece com seu
corpo em Corpo Fechado, Joshua pratica um sincretismo
religioso selvagem (cristão, comemora o hannukah
judeu e respeita o ramadã muçulmano)
em sua missão de encontrar Deus em Olhos Abertos,
Mel Gibson e Joaquin Phoenix são incapazes de
conceber o que está acontecendo quando assistem
pela televisão à chegada de alienígenas
em todos os recantos do mundo, inclusive à sua
própria casa, em Sinais. Em A Vila,
a intriga se adensa, e não é mais só
o devir de um personagem que está em jogo, mas
o de uma comunidade inteira, e de um conflito mudo de
gerações dentro dela.
A Vila, verdadeiro tratado de visibilidade, possibilita
redimensionar toda a carreira de Shyamalan baseado nos
conceitos de lar e olhar. Pouco importa que em Olhos
Abertos e O Sexto Sentido se perca um lar
(seja ele qual for, um avô ou a vida) e que em
Corpo Fechado e Sinais seja questão
de mantê-lo: o que é decisivo é
a mudança do olhar quando ele passa a olhar de
um outro ponto de vista que não o do lar. A
Vila prolonga e adiciona a essa problemática.
Os anciãos do vilarejo reduzem o escopo do seu
olhar para só olhar aquilo que querem. Mais que
isso, eles preparam o olhar de seus filhos para que
vejam não só a ordem visível de
uma lei (da vila), mas também uma antiordem invisível
que paira além dos limites da comunidade (onde
dominam "aqueles de que não falamos").
A vila torna-se problema quando o lar falta, quando
as pessoas já não mais se reconhecem dentro
da comunidade de ficção que construíram:
chutada para fora pela porta, a violência e a
adversidade voltam pela janela, e dessa vez não
pelas mãos de foras-da-lei sem nome, mas pelos
próprios familiares da comunidade. Quando o lar
falta, é preciso ver de outro lugar:
é esse lugar que tentam ocupar Lucius, o campeão
de coragem, e Ivy, a cega. Mas A Vila é
grandioso a partir do momento que não estabelece
uma clivagem entre os membros corajosos da comunidade
e os outros: é como representantes legítimos
da vila que eles são incumbidos de ver de outro
lugar (um como futuro líder, outra como diplomata).
Assim, a descoberta de Ivy ("You have kindness
in your voice. I wasn’t expecting that") não
é apenas um aprendizado subjetivo, mas aparece
acompanhada das aberturas de baú e de um novo
questionamento da parte do chefe dos anciãos,
William Hurt. A tomada de consciência se dá
ao mesmo tempo não pelo esforço individual
de um, mas pelo próprio tempo que a comunidade
tem internamente para desenvolver o pensamento e o julgamento
acerca dela mesma.
Essa visibilidade vai sendo construída aos poucos
dentro da carreira de Shyamalan. Certamente, a reviravolta
de ponto de vista em O Sexo Sentido deve ser
vista hoje muito menos como um gimmick do que
como uma obrigação do percurso do filme.
Mas ainda assim é mais um instante do que um
processo. Corpo Fechado é de longe o filme
que menos trabalha o conceito do "ver de fora",
uma vez que o filme trata de reconstruir um lar com
um novo corpo, e estabelecer um elo de linhagem (pai/filho).
O problema principal do filme é que o fora é
sempre o lugar da alteridade absoluta, ou seja, da morte
e da violência, ao passo que o lar – e o corpo
do pai/herói – é o único refúgio.
Sob esse aspecto, A Vila é uma autocrítica
ponto a ponto de Corpo Fechado. Sinais,
por sua vez, frustra todos os espectadores que esperavam
uma típica ficção científica
de invasão da terra por extraterrestres ao fixar
o ponto de vista que centra a narrativa apenas numa
casa, contra a câmera panóptica comum no
gênero. O terror não se dá pelas
peripécias contra os invasores, mas pelo desespero
filosófico pela possível exterminação
da vida na terra (o que faz do filme basicamente um
remake de O Sacrifício). Destituídos
do aconchego da casa – primeiro em tese, depois materialmente
–, o "ver fora" dos protagonistas do filme
é um terrível auto-questionamento sobre
a consistência do mundo, sua palpabilidade e aquilo
que o sustenta, seu sentido. Um filme religioso, acima
de tudo.
A Vila, mesmo instaurando claramente uma problemática
ética no seio de sua narrativa – o isolacionismo
conjura o mal do mundo? –, reinaugura a questão
da crença e da dúvida. A religião
deixa de estar em primeiro plano para exercer uma força
ainda maior como pano de fundo, povoando de forma discreta
as cerimônias e os costumes da comunidade, "invisíveis"
porque visíveis demais o tempo todo. Um questionamento
religioso que, claro, jamais se desassocia de um habitar
e de um decidir.
Se A Vila, como Elefante, é uma
obra-prima da visibilidade, é porque o filme
constrói um percurso simplesmente através
daquilo que nós conseguimos ver, e não
mostra uma dimensão suplementar à qual
os espectadores acedem e os personagens não (e,
curiosamente, mesmo assim os dois filmes conseguem causar
um suspense impressionante – um suspense branco).
O plano síntese do filme, que tem duas ocorrências
em momentos diferentes, é o plano fechado no
braço de Bryce Dallas Howard, uma vez esperando
chegar a mão de Lucius e outra, talvez ainda
mais comovente, "tateando" a floresta. Existe
uma espécie de recato, um cuidado de aproximação
que M. Night Shyamalan tem com tudo aquilo que ele filma
em A Vila que aproxima-se muito com um tatear
cinematográfico. Pode-se dizer que, quando dramatizamos
a dúvida, não se pode fazer de outra forma
que tateando. Ao que se pode responder: sim, mas ninguém
no cinema narrativo industrial faz isso. E com tanta
maestria. Shyamalan, reiteramos, não tem uma
verdade que ele quer impingir em seus espectadores,
mas um questionamento que ele deseja partilhar. Em seus
contos de fada, o inimigo é ainda apenas o lado
negro do amigo (proporcionalidade entre super-herói
e supervilão em Corpo Fechado, a falta
de fé em Sinais, o medo em A Vila).
É apenas uma questão de olhar, não
de separar. Aliás, falando em olhar, quem, hoje,
além de M. Night Shyamalan, conseguiria fazer
um filme com uma protagonista cega sem um plano sequer
em que olhar para uma cega numa tela de cinema não
fosse em nenhum momento algo parecido com uma experiência
pornográfica?
Ruy Gardnier
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