Quantidade e qualidade, o cinema
cada vez mais prova, não estão necessariamente interligados.
A explosão da multimilionária indústria americana dos
desenhos animados em longa-metragem - que, com a hegemonia do
desenho digital, teve abertas as portas de uma nova
era de sucesso de bilheteria -
tem conduzido, em vez de a um ambiente de criação constante,
a uma inflação de títulos e a um inevitável questionamento
quase simmeliano: o que antes poderia ser creditado
ao deslumbramento, ao maravilhamento diante da proeza
técnica que a grande quantidade de desenhos, um em comparação
ao outro, era obrigada a criar, agora começa a ultrapassar
os limites do hiper-estímulo e a não mais afetar no
plano do visual. E a complementação dessa problemática
é que a sustentação textual dos filmes animados passa
a ter um papel cada vez mais central. Não que já não
tivesse, mas a disparidade começou a se tornar gritante.
Simples assim, então: perdeu a graça. Não há mais como
basear produções apenas na realização olímpica de uma
proeza tecnológica (ou de casting, como a obsessiva
escalação de estrelas hollywoodianas para as dublagens
prova). O que faz de Toy Story 1 e 2 desenhos
animados importantes como cinema não é essa demonstração
de habilidades manuais. É a singularidade de seus roteiros.
Claro, O Espanta Tubarões, por mais que possa
ter sido gestado em paralelo, tem sobre si o fantasma
de Procurando Nemo, um filme de igual cenário,
o fundo do mar. Mas não se trata de ser ou não ser uma
imitação. O fato é que Nemo é um filme singular
e O Espanta Tubarões não é. E é assim que o filme
da Dreamworks se coloca no atual cenário dos longas
de animação americanos e como dele um bom representante:
como nos últimos tempos o que leva ao cinema nesses
filmes é a curiosidade, Espanta é, como cinema
americano em geral, eficiente: ela é satisfeita nos
primeiros minutos. Da pior maneira possível.
Desde o começo do filme já se vê que ele será (e ao
final se vê que foi mesmo) uma obra sem novidades. Nem
o visual “peixumanóide” e cafona o salva disso. É a
chegada ao desenho do clichê de fórmula. A história
é a retomada da velha construção de “O Inspetor Geral”
já tocada mil vezes, nas mais variadas formas (inclusive
magistralmente por Jerry Lewis em A Farra dos Malandros,
de 1954, só para citar um ícone comercial americano):
o imbecil que é levado a uma posição de destaque por
uma mentira que o coloca como o que ele não é. Daí para
frente, tudo é repetição de fórmulas. Não se pode correr
o risco e, portanto, parece que é preciso oferecer o
que se sabe que dá certo. O filme, entretanto, produz
ainda uma outra impressão: ele quer construir, como
toda fábula, um jogo de espelhamento com o mundo real,
o mundo dos homens. Mas diferentemente de seu “colega”
Nemo, não faz isso no conceito, mas no jogo de
reexibição e reconstituição (sim, a mesma piada que
“Os Flintstones” faziam nos anos 60).
O que impressiona são as referências desse jogo. A primeira
é o próprio cinema, o que poderia ter salvado o filme
da pasmaceira, mas prefere ficar no jogo do exótico:
o mundo a que o universo subaquático se refere, nesse
plano, não é o de fato real, mas o do universo dos gângsteres
como vistos no cinema e ao universo de como o cinema
vê o mundo. Mas não chega a ser um jogo de metalinguagem
– é apenas falta de habilidade mesmo. Bem feita, a comparação
teria dado em algo; neste caso, ficou apenas como idéia.
É o caso dos Tubarões, que são o espelho do banditismo,
mas de um banditismo épico, cinematográfico. Mas isso
não é utilizado de fato no filme senão para estar lá,
para ser uma marca.
Pois é de marca que se trata. Este é o segundo traço
da comparação com o mundo real: é pelo consumo que é
feito o segundo jogo de espelhos. Se os desenhos da
Hanna Barbera utilizavam o consumo e o consumismo como
objetos, eles davam conta de um conflito, então crescente
e central na cultura americana e mundial, justamente
o conflito entre aquilo que se chamou “vida moderna”
e a tendência estacionária da sociedade dos Estados
Unidos: como utopia, a América permitia que seus habitantes
tivessem uma vida mais fácil.
Não é o caso hoje. O conflito produzido pelo consumo
é de outra ordem. E o filme o incorpora da maneira mais
tola (como outros filmes animados, como Hércules,
por exemplo). Diferentemente de Monstros S/A,
que traz em sua carne o choque capital-vida, este apenas
se constrói como um espelho vida-consumo. É o eterno
jogo da construção do personagem como imagem e semelhança
do espectador porque aquele usa o mesmo produto (adaptado
à lógica do filme, como por ter um nome-trocadilho baseado
em sua mitopoiese).
É o filme a ser satirizado. Como os produtos que satiriza.
Alexandre Werneck
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