O ESPANTA TUBARÕES
Bibo Bergeron, Vicky Jenson e Rob Letterman, Shark tale, EUA, 2004

Quantidade e qualidade, o cinema cada vez mais prova, não estão necessariamente interligados. A explosão da multimilionária indústria americana dos desenhos animados em longa-metragem - que, com a hegemonia do desenho digital, teve abertas as portas de uma nova era de sucesso de bilheteria - tem conduzido, em vez de a um ambiente de criação constante, a uma inflação de títulos e a um inevitável questionamento quase simmeliano: o que antes poderia ser creditado ao deslumbramento, ao maravilhamento diante da proeza técnica que a grande quantidade de desenhos, um em comparação ao outro, era obrigada a criar, agora começa a ultrapassar os limites do hiper-estímulo e a não mais afetar no plano do visual. E a complementação dessa problemática é que a sustentação textual dos filmes animados passa a ter um papel cada vez mais central. Não que já não tivesse, mas a disparidade começou a se tornar gritante.

Simples assim, então: perdeu a graça. Não há mais como basear produções apenas na realização olímpica de uma proeza tecnológica (ou de casting, como a obsessiva escalação de estrelas hollywoodianas para as dublagens prova). O que faz de Toy Story 1 e 2 desenhos animados importantes como cinema não é essa demonstração de habilidades manuais. É a singularidade de seus roteiros.

Claro, O Espanta Tubarões, por mais que possa ter sido gestado em paralelo, tem sobre si o fantasma de Procurando Nemo, um filme de igual cenário, o fundo do mar. Mas não se trata de ser ou não ser uma imitação. O fato é que Nemo é um filme singular e O Espanta Tubarões não é. E é assim que o filme da Dreamworks se coloca no atual cenário dos longas de animação americanos e como dele um bom representante: como nos últimos tempos o que leva ao cinema nesses filmes é a curiosidade, Espanta é, como cinema americano em geral, eficiente: ela é satisfeita nos primeiros minutos. Da pior maneira possível.

Desde o começo do filme já se vê que ele será (e ao final se vê que foi mesmo) uma obra sem novidades. Nem o visual “peixumanóide” e cafona o salva disso. É a chegada ao desenho do clichê de fórmula. A história é a retomada da velha construção de “O Inspetor Geral” já tocada mil vezes, nas mais variadas formas (inclusive magistralmente por Jerry Lewis em A Farra dos Malandros, de 1954, só para citar um ícone comercial americano): o imbecil que é levado a uma posição de destaque por uma mentira que o coloca como o que ele não é. Daí para frente, tudo é repetição de fórmulas. Não se pode correr o risco e, portanto, parece que é preciso oferecer o que se sabe que dá certo. O filme, entretanto, produz ainda uma outra impressão: ele quer construir, como toda fábula, um jogo de espelhamento com o mundo real, o mundo dos homens. Mas diferentemente de seu “colega” Nemo, não faz isso no conceito, mas no jogo de reexibição e reconstituição (sim, a mesma piada que “Os Flintstones” faziam nos anos 60).

O que impressiona são as referências desse jogo. A primeira é o próprio cinema, o que poderia ter salvado o filme da pasmaceira, mas prefere ficar no jogo do exótico: o mundo a que o universo subaquático se refere, nesse plano, não é o de fato real, mas o do universo dos gângsteres como vistos no cinema e ao universo de como o cinema vê o mundo. Mas não chega a ser um jogo de metalinguagem – é apenas falta de habilidade mesmo. Bem feita, a comparação teria dado em algo; neste caso, ficou apenas como idéia. É o caso dos Tubarões, que são o espelho do banditismo, mas de um banditismo épico, cinematográfico. Mas isso não é utilizado de fato no filme senão para estar lá, para ser uma marca.

Pois é de marca que se trata. Este é o segundo traço da comparação com o mundo real: é pelo consumo que é feito o segundo jogo de espelhos. Se os desenhos da Hanna Barbera utilizavam o consumo e o consumismo como objetos, eles davam conta de um conflito, então crescente e central na cultura americana e mundial, justamente o conflito entre aquilo que se chamou “vida moderna” e a tendência estacionária da sociedade dos Estados Unidos: como utopia, a América permitia que seus habitantes tivessem uma vida mais fácil.

Não é o caso hoje. O conflito produzido pelo consumo é de outra ordem. E o filme o incorpora da maneira mais tola (como outros filmes animados, como Hércules, por exemplo). Diferentemente de Monstros S/A, que traz em sua carne o choque capital-vida, este apenas se constrói como um espelho vida-consumo. É o eterno jogo da construção do personagem como imagem e semelhança do espectador porque aquele usa o mesmo produto (adaptado à lógica do filme, como por ter um nome-trocadilho baseado em sua mitopoiese).

É o filme a ser satirizado. Como os produtos que satiriza.

Alexandre Werneck