SANGRE
Pablo Cesar, Sangre, Argentina, 2003

Um bom filme sobrevive aos seus defeitos, obviamente. Às vezes, mais até do que isso: o bom filme confunde suas qualidades e seus problemas, de modo a torná-los quase inextricáveis. Sangre, por exemplo, é um filme em que, já à distância, se reconhecem problemas evidentes. Mas é um filme que, uma vez acompanhado de perto, revela que seus excelentes momentos estão diretamente imbricados nas derrapagens, além de provocar aquele tipo de simpatia a que dificilmente se resiste. Quanto mais nos aproximamos do filme, menos damos bola para os defeitos: praticamente uma inversão da lógica conhecida, aquela que afirma a proporcionalidade direta entre o olhar de perto e o enxergar defeitos.

O começo de Sangre não está entre os melhores da Mostra, apesar de prender a atenção como poucos filmes – em meio a essa maratona – conseguem, logo de início. Numa manhã como outra qualquer, vemos um homem se vestir inteiramente de branco, depois pintar o rosto com tinta também branca e subir num pequeno cubo, na calçada de uma rua ainda pouco movimentada. O homem se comporta como estátua, só se mexendo em agradecimento quando alguém deposita moedas ao seu lado (como aqueles homens-estátua que ficam no centro da cidade). Um grupo de três mulheres pára e cada uma posa para uma fotografia ao lado dele. De repente, surge uma legião de pessoas que esquartejam o homem-estátua, embrulham-no e o levam dali. Há um plano de grua que fecha a seqüência com o detalhe do sangue que ficou no chão, onde antes havia o homem vivo.

Esquartejar o homem, guardá-lo em pedaços, substitui-lo pela representação fluida e quase imaterial da sua realidade física... – qualquer semelhança com a natureza do cinema não é mera coincidência. Essa cena surreal cria uma ambigüidade que depois será repetida em algumas passagens do filme, pois faz parte da opção encontrada para trabalhar o universo fantasioso da mente de Martín, eterno aspirante a cineasta que sai pelo mundo com sua câmera super-8 – mas que raramente leva a cabo algum projeto. Quem edita seus trabalhos é o irmão mais novo, Nicolas, um pouco mais pé no chão e pragmático, porém igualmente sensível.

Sangre traz um tema familiar que se equilibra entre a proximidade absoluta do abraço materno e a estranha distância que às vezes se interpõe entre um e outro irmão, ou entre pai e filho. A família de Sangre são os irmãos Martín e Nicolas, a mãe (que sofre de alguma doença pulmonar grave) e a lembrança (ou o fantasma?) do pai falecido. O primeiro plano do filme, quando transcorrem os créditos iniciais, consiste numa porta que se entreabre sozinha e permite que a luz se desenhe no chão de um cômodo escuro e vazio. Imagem que será retomada ao final, quando os irmãos assistirem a um arquivo familiar em super-8 e se depararem com cenas do pai sorridente. Eles se dirigem à pequena tela em que se projetam as imagens e praticamente abraçam o semblante roubado ao pai e transformado em cinema. Nesse momento, a porta se entreabre daquela mesma forma e deixa entrar uma nesga de luz na sala escura. É como a aparição de um fantasma – o fantasma que o próprio cinema insere no mundo. Aquelas imagens filmadas em super-8 proporcionaram um contato intenso com uma vida que já não se move senão na imagem (de cinema, da memória, dos sonhos). O cinema, como disse Jean Louis Schefer, é a inquietude acoplada à mobilidade geral das coisas; ele nos permite antever a morte daquilo que mostra. O cinema é já morte em si. Mas é também vida após a vida; é um tempo que não se mede porque não se sabe onde começa e onde termina.

Pablo César apanha essa liberdade do cinema em relação às “contingências temporais” e a insere na busca dos dois irmãos pelo mistério que representou a morte do pai, quando eles ainda eram crianças. A maneira distinta com que cada um busca “conhecer” o pai gera maneiras distintas de filmar as ações de Martín e Nicolas. Enquanto o primeiro se esforça na construção de um imaginário da figura paterna (imaginário que não deixa de atormentá-lo), tentando achar na ficção uma solução para o mistério, o segundo freqüenta, por exemplo, a boate erótica que o pai também costumava freqüentar. Como diz o “segurança” do banheiro da boate, Nicolas lembra muito o pai, tanto no temperamento quanto no jeito de agir e falar. Martín, por outro lado, consegue lembrar do pai. Seu rosto aparece nítido na memória de Martín, mas a relação que ele estabelece com essa imagem é claramente conflituosa. A verdade é que o filme acaba encontrando um modo de filmar o universo de Nicolas muito mais interessante do que aquele encontrado para Martín: os planos-seqüência nas festas a que o irmão mais novo vai são bem mais pujantes e bem realizados que as cenas em que uma dezena de construções arquetípicas desfilam na tela durante as alucinações de Martín, emprestando a ele uma (nada original) sexualidade reprimida.

A despeito dessa desigualdade realmente gritante entre as cenas das vidas individuais dos dois irmãos, nas cenas em que a família está reunida o filme se harmoniza melhor. E o que o filme guarda para o final é, justiça seja feita, uma agradabilíssima constatação do tempo e da vida em estado dilapidado, sem mistificação e sem olhares resignados para trás. Quando a mãe deles está de cama, restando-lhe muito pouco tempo, Nicolas e Martín a abraçam com todo o carinho do mundo. “Por que vocês não vão dar uma volta?”, ela sugere. Mas é claro que eles permanecem ali, abraçados a ela. Depois que a sua morte é diluída em uma sucessão de fusões que demonstram a casa sendo esvaziada, não assistimos ao enterro, apenas vemos os dois voltando ainda abalados pela perda. Depois de uma elipse, cada um já mora sozinho e dá seqüência à vida. Mas isso não significa uma mensagem de individualismo: os breves diálogos do fim revelam uma forte união entre eles. O último plano do filme, então, reconecta-se com a última sugestão feita pela mãe, e os dois são mostrados andando lado a lado, passeando por ruas e praças num longo travelling que os acompanha enquadrados frontalmente, até que eles param e a câmera continua, se distanciando. O plano-seqüência ocorre ao som da música com que a mãe deles costumava se emocionar quando ouvia. Na música, uma grave voz masculina, que Nicolas dizia parecer de bêbado, afirma que quanto mais se vive menos se sabe.

E o lugar em que Sangre se coloca é justamente este: o da vida como um desaprendizado (no bom sentido, naturalmente). A perda do calor do abraço materno é a exigência de um novo modo de andar. A opção de César para esse belo final não é pouca coisa: Nicolas fora do micro-universo de seu quarto (que, como o quarto da maioria dos jovens contemporâneos, comporta uma infinidade de janelas para o lazer e para a telecomunicação), Martín distante da câmera e das suas abstrações – e ambos saindo para um passeio, entregando um sorriso para o mundo, respirando ar fresco. A receita é simples, mas eficaz.

Luiz Carlos Oliveira Jr.