Um bom filme sobrevive aos seus
defeitos, obviamente. Às vezes, mais até do que isso:
o bom filme confunde suas qualidades e seus problemas,
de modo a torná-los quase inextricáveis. Sangre,
por exemplo, é um filme em que, já à distância, se reconhecem
problemas evidentes. Mas é um filme que, uma vez acompanhado
de perto, revela que seus excelentes momentos estão
diretamente imbricados nas derrapagens, além de provocar
aquele tipo de simpatia a que dificilmente se resiste.
Quanto mais nos aproximamos do filme, menos damos bola
para os defeitos: praticamente uma inversão da lógica
conhecida, aquela que afirma a proporcionalidade direta
entre o olhar de perto e o enxergar defeitos.
O começo de Sangre não está entre os melhores
da Mostra, apesar de prender a atenção como poucos filmes
– em meio a essa maratona – conseguem, logo de início.
Numa manhã como outra qualquer, vemos um homem se vestir
inteiramente de branco, depois pintar o rosto com tinta
também branca e subir num pequeno cubo, na calçada de
uma rua ainda pouco movimentada. O homem se comporta
como estátua, só se mexendo em agradecimento quando
alguém deposita moedas ao seu lado (como aqueles homens-estátua
que ficam no centro da cidade). Um grupo de três mulheres
pára e cada uma posa para uma fotografia ao lado dele.
De repente, surge uma legião de pessoas que esquartejam
o homem-estátua, embrulham-no e o levam dali. Há um
plano de grua que fecha a seqüência com o detalhe do
sangue que ficou no chão, onde antes havia o homem vivo.
Esquartejar o homem, guardá-lo em pedaços, substitui-lo
pela representação fluida e quase imaterial da sua realidade
física... – qualquer semelhança com a natureza do cinema
não é mera coincidência. Essa cena surreal cria uma
ambigüidade que depois será repetida em algumas passagens
do filme, pois faz parte da opção encontrada para trabalhar
o universo fantasioso da mente de Martín, eterno aspirante
a cineasta que sai pelo mundo com sua câmera super-8
– mas que raramente leva a cabo algum projeto. Quem
edita seus trabalhos é o irmão mais novo, Nicolas, um
pouco mais pé no chão e pragmático, porém igualmente
sensível.
Sangre traz um tema familiar que se equilibra
entre a proximidade absoluta do abraço materno e a estranha
distância que às vezes se interpõe entre um e outro
irmão, ou entre pai e filho. A família de Sangre
são os irmãos Martín e Nicolas, a mãe (que sofre
de alguma doença pulmonar grave) e a lembrança (ou o
fantasma?) do pai falecido. O primeiro plano do filme,
quando transcorrem os créditos iniciais, consiste numa
porta que se entreabre sozinha e permite que a luz se
desenhe no chão de um cômodo escuro e vazio. Imagem
que será retomada ao final, quando os irmãos assistirem
a um arquivo familiar em super-8 e se depararem com
cenas do pai sorridente. Eles se dirigem à pequena tela
em que se projetam as imagens e praticamente abraçam
o semblante roubado ao pai e transformado em cinema.
Nesse momento, a porta se entreabre daquela mesma forma
e deixa entrar uma nesga de luz na sala escura. É como
a aparição de um fantasma – o fantasma que o próprio
cinema insere no mundo. Aquelas imagens filmadas em
super-8 proporcionaram um contato intenso com uma vida
que já não se move senão na imagem (de cinema, da memória,
dos sonhos). O cinema, como disse Jean Louis Schefer,
é a inquietude acoplada à mobilidade geral das coisas;
ele nos permite antever a morte daquilo que mostra.
O cinema é já morte em si. Mas é também vida após a
vida; é um tempo que não se mede porque não se sabe
onde começa e onde termina.
Pablo César apanha essa liberdade do cinema em relação
às “contingências temporais” e a insere na busca dos
dois irmãos pelo mistério que representou a morte do
pai, quando eles ainda eram crianças. A maneira distinta
com que cada um busca “conhecer” o pai gera maneiras
distintas de filmar as ações de Martín e Nicolas. Enquanto
o primeiro se esforça na construção de um imaginário
da figura paterna (imaginário que não deixa de atormentá-lo),
tentando achar na ficção uma solução para o mistério,
o segundo freqüenta, por exemplo, a boate erótica que
o pai também costumava freqüentar. Como diz o “segurança”
do banheiro da boate, Nicolas lembra muito o pai, tanto
no temperamento quanto no jeito de agir e falar. Martín,
por outro lado, consegue lembrar do pai. Seu
rosto aparece nítido na memória de Martín, mas a relação
que ele estabelece com essa imagem é claramente conflituosa.
A verdade é que o filme acaba encontrando um modo de
filmar o universo de Nicolas muito mais interessante
do que aquele encontrado para Martín: os planos-seqüência
nas festas a que o irmão mais novo vai são bem mais
pujantes e bem realizados que as cenas em que uma dezena
de construções arquetípicas desfilam na tela durante
as alucinações de Martín, emprestando a ele uma (nada
original) sexualidade reprimida.
A despeito dessa desigualdade realmente gritante entre
as cenas das vidas individuais dos dois irmãos, nas
cenas em que a família está reunida o filme se harmoniza
melhor. E o que o filme guarda para o final é, justiça
seja feita, uma agradabilíssima constatação do tempo
e da vida em estado dilapidado, sem mistificação e sem
olhares resignados para trás. Quando a mãe deles está
de cama, restando-lhe muito pouco tempo, Nicolas e Martín
a abraçam com todo o carinho do mundo. “Por que vocês
não vão dar uma volta?”, ela sugere. Mas é claro que
eles permanecem ali, abraçados a ela. Depois que a sua
morte é diluída em uma sucessão de fusões que demonstram
a casa sendo esvaziada, não assistimos ao enterro, apenas
vemos os dois voltando ainda abalados pela perda. Depois
de uma elipse, cada um já mora sozinho e dá seqüência
à vida. Mas isso não significa uma mensagem de individualismo:
os breves diálogos do fim revelam uma forte união entre
eles. O último plano do filme, então, reconecta-se com
a última sugestão feita pela mãe, e os dois são mostrados
andando lado a lado, passeando por ruas e praças num
longo travelling que os acompanha enquadrados frontalmente,
até que eles param e a câmera continua, se distanciando.
O plano-seqüência ocorre ao som da música com que a
mãe deles costumava se emocionar quando ouvia. Na música,
uma grave voz masculina, que Nicolas dizia parecer de
bêbado, afirma que quanto mais se vive menos se sabe.
E o lugar em que Sangre se coloca é justamente
este: o da vida como um desaprendizado (no bom sentido,
naturalmente). A perda do calor do abraço materno é
a exigência de um novo modo de andar. A opção de César
para esse belo final não é pouca coisa: Nicolas fora
do micro-universo de seu quarto (que, como o quarto
da maioria dos jovens contemporâneos, comporta uma infinidade
de janelas para o lazer e para a telecomunicação), Martín
distante da câmera e das suas abstrações – e ambos saindo
para um passeio, entregando um sorriso para o mundo,
respirando ar fresco. A receita é simples, mas eficaz.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|