Na
década de 50, principalmente a partir de Ingênua
até Certo Ponto (1953), a carreira de Otto
Preminger passa a ser marcada como a de um cineasta
que, a cada trabalho, pretende transgredir ou, no mínimo,
dar um passo à frente, seja no ponto de vista
temático ou no plano da mise-en-scène.
Mesmo que algumas dessas transgressões hoje possam
parecer superficiais, como no já citado filme
de 1953, onde elas se limitam a uma inserção
de diálogos maliciosos ou palavras tabus para
a época, como "virgem". Mas não
resta dúvida de que, mesmo assim, tiveram sua
importância.
Deste modo, no contexto do desenvolvimento da obra do
cineasta, O Rio das Almas Perdidas pode, numa
primeira análise, parecer um retrocesso. Trata-se
de um western pouco memorável, de roteiro
um tanto convencional e com uma mensagem final francamente
moralista e defensora dos valores familiares. Claramente
um produto de estúdio, a Fox, para quem Preminger
vinha trabalhando desde a década de 40, e aceitou
dirigir para cumprir contrato antes de se firmar como
diretor-produtor independente. Um veículo para
o astro Robert Mitchum e o então ascendente símbolo
sexual Marilyn Monroe.
O roteiro, de Frank Fenton, é convencional e
episódico, e seus personagens todos arquetípicos
do gênero: o homem solitário que pretende
ocultar um passado nebuloso trabalhando honestamente,
o garoto fascinado pela figura paterna até então
desconhecida (ao mesmo tempo similar e diverso ao protagonista
de Shane), a prostituta de bom coração,
o jogador inescrupuloso. O argumento, resumidamente,
traz a história de um fazendeiro (Mitchum) que,
após reencontrar-se com o filho, que crescera
à distância, resgata Marilyn e seu amante,
o jogador, de uma balsa desgovernada no rio à
beira de sua propriedade. O jogador rouba o cavalo e
a arma do fazendeiro e segue para a cidade. Mas um ataque
de índios obriga Mitchum, Marilyn e o garoto
a fugirem na balsa. O roteiro apresenta a fuga como
uma sucessão de obstáculos a serem superados
(a correnteza, os índios, animais selvagens,
bandoleiros), ao mesmo tempo em que vai brotando o inevitável
romance entre os astros, até a chegada à
cidade e o inevitável embate final. Nada surpreendente.
Mas Preminger, diretor inteligente, para dizer o mínimo,
vai aos poucos inserindo seu toque pessoal e sua ousadia.
Como no crescimento da tensão sexual entre Mitchum
e Marilyn, marcado por um erotismo ao mesmo tempo velado
e intenso. Um belo exemplo é a seqüência
em que Marilyn, no auge de sua mitológica beleza,
encharcada e febril, precisa despir-se e ficar enrolada
em um cobertor, enquanto é massageada por Mitchum.
Marca de mestre também nos momentos iniciais,
quando vemos Mitchum derrubar uma árvore e seguir
a cavalo por paisagens plácidas e idílicas
até chegar a um caótico acampamento, uma
aglomeração de pessoas atraídas
pela corrida do ouro, comparada por um padre a Sodoma
e Gomorra. Preminger usa enquadramentos certeiros para
demarcar a oposição destacada no roteiro
entre uma valorização do árduo
trabalho agrícola e a crítica a uma exploração
predatória e imediatista. Uma oposição
entre o campo pacífico e as cidades nascentes,
pecadoras e desumanas. Sem esquecer, também,
da sutil ousadia que é, ao final do filme, fazer
uma criança empunhar uma arma e matar um homem,
mesmo que este seja o vilão. Posso estar errado,
mas, se esta não foi a primeira vez, ao menos
não era comum em filmes anteriores a O Rio
das Almas Perdidas ver uma criança atirar
intencionalmente contra outra pessoa.
Apesar de visíveis limitações,
O Rio das Almas Perdidas não deixa de
exercer seu papel como um passo à frente na carreira
de Preminger. Mas em que sentido? Bem, foi neste filme
a primeira vez em que o diretor trabalhou com um formato
de tela larga, o então recente Cinemascope, lançado
pela Fox no ano anterior em O Manto Sagrado.
Vemos aí mais um sinal de sagacidade em Preminger:
nada melhor que exercitar um novo recurso em uma produção
impessoal e menos pretensiosa, antes de partir para
vôos mais altos, como seu projeto seguinte, Carmen
Jones. Deste modo, O Rio das Almas Perdidas
pode até ser considerado como um trabalho experimental.
E Preminger já demonstra todo o domínio
da técnica, explorando desde os primeiros minutos
o que a amplitude da imagem pode proporcionar na exploração
das paisagens, ou na já decantada seqüência
do acampamento, onde cada elemento do quadro tece algum
comentário, em um belo trabalho com profundidade
de campo. É também o imediato domínio
do Cinemascope pelo diretor que confere algum realismo
às cenas onde a balsa percorre o rio, mesmo àquelas
de planos médios e próximos, fotografadas
no estúdio, em backscreen. Preminger também
concebe bem seus enquadramentos nas raras seqüências
de interiores, em especial quando Marilyn, quase ao
fim do filme, reencontra o jogador e conversa com ele
em um saloon, tendo um piano ao fundo.
Concluindo, O Rio das Almas Perdidas é
um exemplo evidente de como um trabalho decididamente
menor pode exercer um papel fundamental na evolução
de uma obra. Além disso, destaca a importância
de se lançar filmes em DVD ou exibi-los na TV
no formato em que foram concebidos, pois, sem a amplitude
da tela, O Rio das Almas Perdidas não
passaria de um faroeste pouco acima do mediano, no qual
o excesso de canções melosas interpretadas
por Marilyn Monroe enquanto finge (mal) tocar violão
chega às vezes a irritar. Ainda assim, Marilyn,
Mitchum e Preminger fazem a diferença.
Gilberto SIlva Jr.
(DVD Fox Video)
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