O RIO DAS ALMAS PERDIDAS
Otto Preminger, River of no return, EUA, 1954

Na década de 50, principalmente a partir de Ingênua até Certo Ponto (1953), a carreira de Otto Preminger passa a ser marcada como a de um cineasta que, a cada trabalho, pretende transgredir ou, no mínimo, dar um passo à frente, seja no ponto de vista temático ou no plano da mise-en-scène. Mesmo que algumas dessas transgressões hoje possam parecer superficiais, como no já citado filme de 1953, onde elas se limitam a uma inserção de diálogos maliciosos ou palavras tabus para a época, como "virgem". Mas não resta dúvida de que, mesmo assim, tiveram sua importância.

Deste modo, no contexto do desenvolvimento da obra do cineasta, O Rio das Almas Perdidas pode, numa primeira análise, parecer um retrocesso. Trata-se de um western pouco memorável, de roteiro um tanto convencional e com uma mensagem final francamente moralista e defensora dos valores familiares. Claramente um produto de estúdio, a Fox, para quem Preminger vinha trabalhando desde a década de 40, e aceitou dirigir para cumprir contrato antes de se firmar como diretor-produtor independente. Um veículo para o astro Robert Mitchum e o então ascendente símbolo sexual Marilyn Monroe.

O roteiro, de Frank Fenton, é convencional e episódico, e seus personagens todos arquetípicos do gênero: o homem solitário que pretende ocultar um passado nebuloso trabalhando honestamente, o garoto fascinado pela figura paterna até então desconhecida (ao mesmo tempo similar e diverso ao protagonista de Shane), a prostituta de bom coração, o jogador inescrupuloso. O argumento, resumidamente, traz a história de um fazendeiro (Mitchum) que, após reencontrar-se com o filho, que crescera à distância, resgata Marilyn e seu amante, o jogador, de uma balsa desgovernada no rio à beira de sua propriedade. O jogador rouba o cavalo e a arma do fazendeiro e segue para a cidade. Mas um ataque de índios obriga Mitchum, Marilyn e o garoto a fugirem na balsa. O roteiro apresenta a fuga como uma sucessão de obstáculos a serem superados (a correnteza, os índios, animais selvagens, bandoleiros), ao mesmo tempo em que vai brotando o inevitável romance entre os astros, até a chegada à cidade e o inevitável embate final. Nada surpreendente.

Mas Preminger, diretor inteligente, para dizer o mínimo, vai aos poucos inserindo seu toque pessoal e sua ousadia. Como no crescimento da tensão sexual entre Mitchum e Marilyn, marcado por um erotismo ao mesmo tempo velado e intenso. Um belo exemplo é a seqüência em que Marilyn, no auge de sua mitológica beleza, encharcada e febril, precisa despir-se e ficar enrolada em um cobertor, enquanto é massageada por Mitchum. Marca de mestre também nos momentos iniciais, quando vemos Mitchum derrubar uma árvore e seguir a cavalo por paisagens plácidas e idílicas até chegar a um caótico acampamento, uma aglomeração de pessoas atraídas pela corrida do ouro, comparada por um padre a Sodoma e Gomorra. Preminger usa enquadramentos certeiros para demarcar a oposição destacada no roteiro entre uma valorização do árduo trabalho agrícola e a crítica a uma exploração predatória e imediatista. Uma oposição entre o campo pacífico e as cidades nascentes, pecadoras e desumanas. Sem esquecer, também, da sutil ousadia que é, ao final do filme, fazer uma criança empunhar uma arma e matar um homem, mesmo que este seja o vilão. Posso estar errado, mas, se esta não foi a primeira vez, ao menos não era comum em filmes anteriores a O Rio das Almas Perdidas ver uma criança atirar intencionalmente contra outra pessoa.

Apesar de visíveis limitações, O Rio das Almas Perdidas não deixa de exercer seu papel como um passo à frente na carreira de Preminger. Mas em que sentido? Bem, foi neste filme a primeira vez em que o diretor trabalhou com um formato de tela larga, o então recente Cinemascope, lançado pela Fox no ano anterior em O Manto Sagrado. Vemos aí mais um sinal de sagacidade em Preminger: nada melhor que exercitar um novo recurso em uma produção impessoal e menos pretensiosa, antes de partir para vôos mais altos, como seu projeto seguinte, Carmen Jones. Deste modo, O Rio das Almas Perdidas pode até ser considerado como um trabalho experimental. E Preminger já demonstra todo o domínio da técnica, explorando desde os primeiros minutos o que a amplitude da imagem pode proporcionar na exploração das paisagens, ou na já decantada seqüência do acampamento, onde cada elemento do quadro tece algum comentário, em um belo trabalho com profundidade de campo. É também o imediato domínio do Cinemascope pelo diretor que confere algum realismo às cenas onde a balsa percorre o rio, mesmo àquelas de planos médios e próximos, fotografadas no estúdio, em backscreen. Preminger também concebe bem seus enquadramentos nas raras seqüências de interiores, em especial quando Marilyn, quase ao fim do filme, reencontra o jogador e conversa com ele em um saloon, tendo um piano ao fundo.

Concluindo, O Rio das Almas Perdidas é um exemplo evidente de como um trabalho decididamente menor pode exercer um papel fundamental na evolução de uma obra. Além disso, destaca a importância de se lançar filmes em DVD ou exibi-los na TV no formato em que foram concebidos, pois, sem a amplitude da tela, O Rio das Almas Perdidas não passaria de um faroeste pouco acima do mediano, no qual o excesso de canções melosas interpretadas por Marilyn Monroe enquanto finge (mal) tocar violão chega às vezes a irritar. Ainda assim, Marilyn, Mitchum e Preminger fazem a diferença.


Gilberto SIlva Jr.

(DVD Fox Video)