É muito desagradável constatar
como todos os movimentos políticos que agitavam o mundo
há coisa de quarenta anos atrás hoje procuram políticas
de inserção “tolerante” na sociedade que lhes garantam
uma convivência mais ou menos pacífica em troca do conformismo
generalizado. Pode-se questionar a eficiência e a função
prática dessa estratégia na vida das “minorias” (negros,
homossexuais, imigrantes), mas é certo que militância
hoje é uma palavra que carrega um pecha de provocação
inconseqüente, de uma violência intolerável na nova
ordem vigente no mundo. Antes tínhamos os Black Panthers,
hoje temos os movimentos de ação afirmativa. Antes,
os filmes políticos tentavam engajar pela forma; hoje
em dia, filmes como Fahrenheit 9/11, para serem
“políticos”, precisam submeter-se à forma espetacular
reinante da televisão para surtir efeito. Será que o
não-conformismo virou coisa de hippie velho e de moleque
irresponsável?
Antes que alguém se apresse em responder na positiva,
cabe dizer peremptoriamente que não. Mesmo porque, se
nos calássemos, Reich Framboesa diria isso para
nós. O filme de Bruce LaBruce encerra tantas problemáticas
acerca de militância, sociedade contemporânea, arte
e vida engajada, terrorismo e não-conformismo transformado
em commodity – além, claro, de identidade sexual,
tema principal da obra inteira de BLB – que fica muito
difícil jogar nele um apressado rótulo de “filme gay”
ou qualquer outra conceituação que tente conjurar seu
conteúdo ou as questões que o filme traz num ambiente
de porralouquice. Pois bem, Reich Framboesa é
um grande filme militante. E como é um filme de militância
homossexual anti-conformista, ele faz uso de diversas
práticas para chamar a atenção para sua(s) causa(s):
sexo explícito gay, slogans e palavras de ordem
que pulam brilhando na tela, música eletropunk,
happenings na rua, humor provocativo contra os
outros e contra si mesmo.
Reich Framboesa é uma espécie de A Chinesa
que troca Mao Tse-tung por Wilhelm Reich – e a Revolução
Cultural pela “Intifada Homossexual”, como eles gritam
em uma de suas palavras de ordem. Um grupo de jovens
militantes organiza o grupo revolucionário Reich Framboesa
e decide seqüestrar o filho de um poderoso empresário
a fim de chamar atenção para as suas reivindicações.
Como no filme de Godard, o despreparo político e estratégico
do grupo o impede de funcionar direito (em A Chinesa,
porque a jovem intelectualidade maoísta-marxista-leninista
está isolada do resto da população, em Reich Framboesa
porque o grupo é mais “radical chic” do que propriamente
radical), mas isso não impede que surja alguma coisa
de muito verdadeiro na busca político-existencial da
turma. Em chave ao mesmo tempo de comédia de erros e
de filme militante, o filme emenda uma a uma frases
extraordinárias, como “A revolução é meu namorado” (quando
a protagonista Gudrun recusa ao namorado a fidelidade
sexual), “Junte-se à Intifada homossexual”, “Hip-hop
corporativo é contra-revolucionário”, “Madonna é contra-revolucionária”
ou o melhor de todos “A heterossexualidade é o ópio
das massas”.
O conteúdo explícito de Reich Framboesa não é
só para fazer sensação: dos pontos de vista político,
sexual e de encenação, ele sempre age de modo a fazer
levantar questões cruciais acerca de ação individual,
ação de grupo, militantismo, identidade sexual e imagem
como espetáculo. Um filme cult pornô gay
explícito já é em si mesmo um objeto de contestação:
de contestação ao olhar heterossexual que tem preconceitos,
mas também ao olhar homossexual, tanto o conformista
quanto aquele que deseja fechar seu comportamento e
raio de ação num gueto de iguais (LaBruce contraria
a lógica do filme gay colocando relações heterossexuais
no filme). Da mesma forma, era intenção do filme jogar
nova luz aos grupos terroristas de esquerda anti-conformista
dos anos 70 – os Weathermen, o Baader-Meinhof (de onde
a protagonista Gudrun tira seu nome) – para ver em que
medida ainda há uma verdade sobre esses grupos que não
se reduz facilmente ao puro niilismo, como dizem os
engravatados da “guerra ao terror”. Bruce LaBruce, em
Reich Framboesa, faz o verdadeiro filme militante
de atualidades: ele não se preocupa em montar um discurso
e mostrar como ele é verdadeiro, mas apresentar um determinado
cenário e especular com ele. Quando alguém hoje em dia
faz filmes por acreditar que a imagem serve para levantar
questões, e não para respondê-las, é necessário aplaudir.
Aplaudamos, então, LaBruce e sua célula militante.
Ruy Gardnier
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