O QUINTO IMPÉRIO - ONTEM COMO HOJE
Manoel de Oliveira, O Quinto Império - Ontem como Hoje, Portugal, 2004

Soará um tanto óbvio, mas lá vai: O Quinto Império é um filme falado. Para Manoel de Oliveira, mais um. O texto teatral de Jose Régio que o inspirou está lá, palavra por palavra. E o que há de especial nessa relação que ele constrói com a palavra é sua consciência de que esta mobiliza uma duração e um movimento. A palavra em seus filmes não estimula um movimento, ela é o movimento em si. Assim como as imagens semifixas que muitas vezes perduram por minutos no filme, a palavra não cria a impressão de tempo, mas ocupa um tempo. A única verdadeira ação dos personagens de O Quinto Império é falar.

Oliveira já declarou mais de uma vez sua convicção na não-distinção entre os dois vetores da equação deleuziana, movimento e tempo. Trata-se sempre, para o cineasta português, de um só tempo-imagem que une todos os elementos fundamentais do cinema. Qualquer movimento se expressa no tempo, e qualquer palavra é, em princípio, imagem (porque dá forma ao pensamento – e não há pensamento sem imagem). Essa teoria, que Oliveira diagramou a partir de uma frase de Aristóteles e outra de Molière, não pode servir de chave mágica para a compreensão de sua obra. Não é uma teoria que baliza os filmes, mas antes uma interessante via de contato com a filosofia por trás deles, que nada têm de esquemáticos.

O Quinto Império vem como um filme que tanto solidifica características costumeiras na obra de Oliveira quanto surpreende com um tom sombrio e grave. O protagonista é um jovem rei de Portugal que, tomado que está por um impulso bélico megalômano e insano, que ele defende através de discursos patrióticos/progressistas (diante do que, de fato, fica impossível não pensar em Bush Jr.), dispensa os conselheiros, rechaça os prazeres da carne e começa a assustar a todos com suas propostas inverossímeis. A divagação que o filme faz em relação ao poder e sua deturpação na mente acaba levando-o para uma comédia negra do poder, em que este só se enxerga no espelho quando está diante dos bobos da corte: o personagem psicologicamente mais aparentado ao rei é o truão Perna Curta. A diferença é que este último não detém “a vã glória de mandar”.

Trata-se de mais um filme de Oliveira impulsionado pela fascinação por algumas grandes obras da língua portuguesa (fora assim recentemente em Palavra e Utopia, anteriormente em O Dia do Desespero). Mas à diferença de Palavra e Utopia, em que o próprio Antonio Vieira é o protagonista, O Quinto Império parte de um texto em que a palavra perde essa primeira-pessoa sólida e se torna mais volátil. A diferença não é pouca: enquanto lá havia uma relação corpo-fala indissociável, as mudanças do corpo acompanhando as dos sermões e vice-versa, aqui a palavra adquire uma dimensão bastante fantasmática. Há muitas vozes sem corpo em O Quinto Império, o que pode significar um estado provisório (Luís Miguel Cintra surge de trás da cortina para dar rosto às falas que começara em off), mas pode também ser uma condição de existência – a exemplo dos antepassados e dos mitos, cujas falas perduram na mesma medida em que eles já não podem mais falar.

O filme é feito na escuridão porque precisa mostrar, como diz o personagem de Luís Miguel Cintra (ator extraordinário como sempre), aquilo que a luz do dia encobre. É somente no céu da noite que brotam as estrelas. O Quinto Império instaura esse paradoxo da visibilidade: diminuir a luz para enxergar o mais difícil, valorizar essa hora propensa ao sonho, insuflar a escuridão com silhuetas e vozes. Se por um lado os corpos estão quase sempre na penumbra, por outro as vozes que deles emanam podem ser ouvidas com precisão, às vezes ecoando pelo castelo. Na cena em que os reis, cujas estátuas no canto da parede já pareciam ter vida, começam a surgir um a um pelo lado direito do quadro, o filme suspende a si mesmo para se tornar pura poesia de luz e sombra.

Em O Quinto Império, há um complexo jogo de revelação gradual do espaço cênico.       

Com este filme, Manoel de Oliveira elabora um teatro do imaterial. Um filme-fantasma que circula pelo meio físico. O Quinto Império consegue criar a sensação de presença da cena e dos atores, mantendo uma impostação de voz e uma redução do espaço cênico típicas do teatro, mas ao mesmo tempo fazendo o jogo de ocultação e revelação do cinema – e tirando proveito das tensões entre ausência e presenciação inerentes à imagem. Seu trabalho com o espaço-fora-da-tela – talvez seja redundante dizer a essa altura do campeonato – está entre os mais brilhantes que o cinema já pôde oferecer. No cômodo em que decorre a maior parte do filme, Oliveira passa um bom tempo apenas filmando um lado do cenário, sem que a câmera revele o que está atrás de onde ela se posiciona. Sabemos, no entanto, que em algum momento ele vai mostrar o outro lado, vai tirar do limbo o contra-espaço daquela locação. Chega a haver uma certa tensão em relação ao que será mostrado (podia ser apenas uma parede, podia haver um enorme corredor, podia se tratar de uma sala repleta de recortes arquitetônicos), e quando finalmente é apresentada essa continuação do espaço, tudo que resta na sala de cinema são rostos boquiabertos.      

A outra parcela do poder hipnótico do filme está nos olhares para a câmera. O filme dialoga diretamente conosco, inclui nosso espaço no universo por ele instalado. O Quinto Império é uma das experiências mais imersivas e enigmáticas do cinema de Oliveira, que não cansa de fazer obras-primas por um motivo muito simples: ele filma o mistério, e o mistério nunca tem fim, fica sendo propagado através de imagens - ou seja, através de palavras.

Luiz Carlos Oliveira Jr.