Soará um tanto óbvio, mas lá
vai: O Quinto Império é um filme falado. Para
Manoel de Oliveira, mais um. O texto teatral de Jose
Régio que o inspirou está lá, palavra por palavra. E
o que há de especial nessa relação que ele constrói
com a palavra é sua consciência de que esta mobiliza
uma duração e um movimento. A palavra em seus filmes
não estimula um movimento, ela é o movimento em si.
Assim como as imagens semifixas que muitas vezes perduram
por minutos no filme, a palavra não cria a impressão
de tempo, mas ocupa um tempo. A única verdadeira ação
dos personagens de O Quinto Império é falar.
Oliveira já declarou mais de uma vez sua convicção na
não-distinção entre os dois vetores da equação deleuziana,
movimento e tempo. Trata-se sempre, para o cineasta
português, de um só tempo-imagem que une todos os elementos
fundamentais do cinema. Qualquer movimento se expressa
no tempo, e qualquer palavra é, em princípio, imagem
(porque dá forma ao pensamento – e não há pensamento
sem imagem). Essa teoria, que Oliveira diagramou a partir
de uma frase de Aristóteles e outra de Molière, não
pode servir de chave mágica para a compreensão de sua
obra. Não é uma teoria que baliza os filmes, mas antes
uma interessante via de contato com a filosofia por
trás deles, que nada têm de esquemáticos.
O Quinto Império vem como um filme que tanto
solidifica características costumeiras na obra de Oliveira
quanto surpreende com um tom sombrio e grave. O protagonista
é um jovem rei de Portugal que, tomado que está por
um impulso bélico megalômano e insano, que ele defende
através de discursos patrióticos/progressistas (diante
do que, de fato, fica impossível não pensar em Bush
Jr.), dispensa os conselheiros, rechaça os prazeres
da carne e começa a assustar a todos com suas propostas
inverossímeis. A divagação que o filme faz em relação
ao poder e sua deturpação na mente acaba levando-o para
uma comédia negra do poder, em que este só se enxerga
no espelho quando está diante dos bobos da corte: o
personagem psicologicamente mais aparentado ao rei é
o truão Perna Curta. A diferença é que este último não
detém “a vã glória de mandar”.
Trata-se de mais um filme de Oliveira impulsionado pela
fascinação por algumas grandes obras da língua portuguesa
(fora assim recentemente em Palavra e Utopia,
anteriormente em O Dia do Desespero). Mas à diferença
de Palavra e Utopia, em que o próprio Antonio
Vieira é o protagonista, O Quinto Império parte
de um texto em que a palavra perde essa primeira-pessoa
sólida e se torna mais volátil. A diferença não é pouca:
enquanto lá havia uma relação corpo-fala indissociável,
as mudanças do corpo acompanhando as dos sermões e vice-versa,
aqui a palavra adquire uma dimensão bastante fantasmática.
Há muitas vozes sem corpo em O Quinto Império,
o que pode significar um estado provisório (Luís Miguel
Cintra surge de trás da cortina para dar rosto às falas
que começara em off), mas pode também ser uma condição
de existência – a exemplo dos antepassados e dos mitos,
cujas falas perduram na mesma medida em que eles já
não podem mais falar.
O filme é feito na escuridão porque precisa mostrar,
como diz o personagem de Luís Miguel Cintra (ator extraordinário
como sempre), aquilo que a luz do dia encobre. É somente
no céu da noite que brotam as estrelas. O Quinto
Império instaura esse paradoxo da visibilidade:
diminuir a luz para enxergar o mais difícil, valorizar
essa hora propensa ao sonho, insuflar a escuridão com
silhuetas e vozes. Se por um lado os corpos estão quase
sempre na penumbra, por outro as vozes que deles emanam
podem ser ouvidas com precisão, às vezes ecoando pelo
castelo. Na cena em que os reis, cujas estátuas no canto
da parede já pareciam ter vida, começam a surgir um
a um pelo lado direito do quadro, o filme suspende a
si mesmo para se tornar pura poesia de luz e sombra.
Em O Quinto Império, há um complexo jogo de revelação
gradual do espaço cênico.
Com este filme, Manoel de Oliveira elabora um teatro
do imaterial. Um filme-fantasma que circula pelo meio
físico. O Quinto Império consegue criar a sensação
de presença da cena e dos atores, mantendo uma
impostação de voz e uma redução do espaço cênico típicas
do teatro, mas ao mesmo tempo fazendo o jogo de ocultação
e revelação do cinema – e tirando proveito das tensões
entre ausência e presenciação inerentes à imagem. Seu
trabalho com o espaço-fora-da-tela – talvez seja redundante
dizer a essa altura do campeonato – está entre os mais
brilhantes que o cinema já pôde oferecer. No cômodo
em que decorre a maior parte do filme, Oliveira passa
um bom tempo apenas filmando um lado do cenário, sem
que a câmera revele o que está atrás de onde ela se
posiciona. Sabemos, no entanto, que em algum momento
ele vai mostrar o outro lado, vai tirar do limbo o contra-espaço
daquela locação. Chega a haver uma certa tensão em relação
ao que será mostrado (podia ser apenas uma parede, podia
haver um enorme corredor, podia se tratar de uma sala
repleta de recortes arquitetônicos), e quando finalmente
é apresentada essa continuação do espaço, tudo que resta
na sala de cinema são rostos boquiabertos.
A outra parcela do poder hipnótico do filme está nos
olhares para a câmera. O filme dialoga diretamente conosco,
inclui nosso espaço no universo por ele instalado. O
Quinto Império é uma das experiências mais imersivas
e enigmáticas do cinema de Oliveira, que não cansa de
fazer obras-primas por um motivo muito simples: ele
filma o mistério, e o mistério nunca tem fim, fica sendo
propagado através de imagens - ou seja, através de palavras.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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