O
caminho da liberdade
No início de Quem Bate à Minha Porta,
uma senhora prepara uma refeição, na cozinha,
com sua imagem intercalada com a de uma santa, e depois
serve o prato para crianças sentadas à
mesa. Essas imagens retornarão ao final. No restante
da narrativa, não saberemos quem é essa
mulher, quem são as crianças, como elas
entram na história. Não entram, na verdade.
A mulher em questão é Catherine, mãe
do diretor Martin Scorsese, e está ali com uma
função: situar o restante do filme, ou
seja, quase todo ele, naquele ambiente do início,
o de uma família com a mediação
religiosa em seus valores. Só isso. Essa liberdade
narrativa e dramática perpassará muitas
das demais situações, que, mesmo quando
encadeadas para tecer uma noção de conjunto,
mantêm um organização sempre rarefeita
na soma das seqüências.
Nenhum outro filme posterior de Scorsese manteve esse
fluxo solto, no qual a cenas importam mais que a reunião
delas no enredo, principalmente as cenas em que a câmera
quase invade os corpos, de tão próxima,
e capta assim alguns dos melhores beijos já filmados.
Vemos também a dilatação do tempo
em uma conversa sem nenhuma funcionalidade para o entendimento
do fiapo de história (prosseguindo com Godard
e antecipando Tarantino), durante a qual o protagonista
conhece uma jovem em uma barca e fala com ela sobre
westerns e John Wayne. A câmera capta a
aproximação desse homem e dessa mulher
sem pressa, de ângulos variados e incomuns, deixando
as palavras escorrerem pelos segundos e iniciarem a
construção de uma intimidade. A relação
desse par é um dos núcleos de Quem
Bate à Minha Porta. Ela é introduzida
no filme já como flash-back, possibilitando assim
um outro tipo de tratamento do tempo, não de
dilatação, mas de estrutura cronológica,
destinada a fundir dois tempos por meio da experiência
e da memória (de outra experiência que
interfere na do presente).
Neste núcleo dramático, o do casal, a
moralidade será fundamental. Assim veremos qual
a relação entre a imagem da santa no início
e a reação do protagonista ao saber de
um estupro sofrido pela jovem por quem está apaixonado.
A mediação religiosa também explicará
o desfecho na igreja, introdução da questão
da culpa, da punição e da redenção
no cinema de Scorsese (e iniciando as esquinas com Abel
Ferrara), presente de forma exemplar, direta ou simbólica,
nos enredos de Depois de Horas e Cabo de Medo,
para citar duas grandes obras consideradas menos autorais
e julgadas menores pelo senso crítico comum.
Mas também é preciso salientar que, por
razões variadas, de produção principalmente
(talvez), essa questão entra aqui de forma forçada,
sem espontaneidade ou valorização. É
quase como se fosse um pós-scriptum de um filme
desenvolvido permanentemente como preâmbulo. Estamos
em uma narrativa com início, sem meio, sem fim,
mas com pós-fim, por assim dizer. E o efeito
dessa disjunção é no mínimo
interessantíssimo
Essa potente frouxidão narrativa também
está presente no outro núcleo dramático
do filme (porque o filme tem, sim, dois núcleos-centros,
mais que nenhum), este em torno da relação
do protagonista com seus dois amigos, na companhia dos
quais perambula por ruas, bares e por uma região
não urbana onde dão uma pausa na urbanidade.
O trio não faz nada de funcional, nenhum deles
trabalha, não têm objetivo algum, são
apenas seres vivendo o dia, em busca de algo com o que
se entreter. Nesse sentido, é como se fossem
a turma de Caminhos Perigosos, o filme seguinte
de Scorsese, mas sem atividade alguma, ao menos sem
atividade definidora de uma identidade pública;
portanto, seres sem uma identidade, sem imagem dos outros
sobre si e deles mesmos sobre eles mesmos, ao menos
na chave lacaniana de desejo e identidade (o ollhar
dos outros nos contruindo como sujeitos). As ramificações
com o primeiro Jim Jarmush, aquele de Estranhos no
Paraíso, base e clichê de boa parte
do que virou o cinema indie americano (aquele sobre
o peso do vazio tratado com leveza e cinismo), saltam
da superfície aqui e ali.
Finalizado inicialmente como um curta universitário
em 1964, rodado durante mais cinco anos para virar longa,
com interrupções na filmagem e na montagem,
Quem Bate à Sua Porta incorpora em sua
confecção essa irregularidade. Uma das
sequências mais curiosas, e melhores, entrou por
ordem do produtor, que queria sexo - mais sexo. E assim
vemos um clipe experimental no qual Harvey Keitel esfrega-se
em várias mulheres, sucessivamente, com esses
corpos sendo substituídos por outros, como uma
grande transa com fragmentos de várias mulheres.
Poucas sequências no cinema condensaram tão
bem a efemeridade sem transcendência da multiplicação
de parceiros na atividade sexual como essa.
Toda essa liberdade brota de seu momento histórico,
os anos 60, quando o cinema americano respondeu ao crescimento
da televisão, ao menos em parte, com formas e
conteúdos não permitidos no lazer eletrônico
caseiro. As mulheres passaram a tirar a roupa, a câmera
começou a circular pelos ambientes, o ritmo substituia
a cadência uniforme pelos solavancos da fragmentação
assumida, a transparência escancarava as portas
para graus variados de auto-referencialidade, os diálogos
transformavam-se em conversas sem muita função
para o entendimento das ações. A organização
narrativa empenhada em extrair sentidos de um conjunto
de acontecimentos deixava o sentido à deriva
para valorizar os momentos em si mesmos, e o espírito
crítico arregaçou as mangas no tratamento
de questões caras aos EUA. Scorsese surge nesse
contexto, complementado pelo cinema como referência
do cinema, um dos traços de qualquer atividade
artística moderna, ainda mais para um cineasta
que, naquele momento, começava a liderar a geração
dos realizadores formados em faculdade de cinema
Scorsese não está desvinculado neste primeiro
momento da nouvelle vague japonesa, da francesa,
do free cinema inglês, de John Cassavetes,
todos cultivando não o cinema do encontro de
Robert Bresson - que perseguia a verdade do imprevisto
e do não planejado -, mas uma autenticidade extraída
da soma entre o planejamento e o imprevisto da realuzação,
com o roteiro abrindo espaço para a filmagem,
com a montagem buscando mais o ritmo dos planos e menos
a lógica geral dos eventos. Assim o filme pulsa
em sua busca da beleza na composição do
enquadramento, na colocação dos atores
no espaço físico, da câmera que
se move nesse espaço, manifestando um olhar em
movimento e irriquieto, que olha sem piscar para os
lados atrás de algo a revelar, mas sem revelar
nada muito além do que a superfície dos
corpos e das coisas. E isso já é coisa
à beça.
Cléber Eduardo
(DVD Warner)
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