QUEM BATE À MINHA PORTA?
Martin Scorsese, Who's that knocking at my door?, EUA, 1967

O caminho da liberdade

No início de Quem Bate à Minha Porta, uma senhora prepara uma refeição, na cozinha, com sua imagem intercalada com a de uma santa, e depois serve o prato para crianças sentadas à mesa. Essas imagens retornarão ao final. No restante da narrativa, não saberemos quem é essa mulher, quem são as crianças, como elas entram na história. Não entram, na verdade. A mulher em questão é Catherine, mãe do diretor Martin Scorsese, e está ali com uma função: situar o restante do filme, ou seja, quase todo ele, naquele ambiente do início, o de uma família com a mediação religiosa em seus valores. Só isso. Essa liberdade narrativa e dramática perpassará muitas das demais situações, que, mesmo quando encadeadas para tecer uma noção de conjunto, mantêm um organização sempre rarefeita na soma das seqüências.

Nenhum outro filme posterior de Scorsese manteve esse fluxo solto, no qual a cenas importam mais que a reunião delas no enredo, principalmente as cenas em que a câmera quase invade os corpos, de tão próxima, e capta assim alguns dos melhores beijos já filmados. Vemos também a dilatação do tempo em uma conversa sem nenhuma funcionalidade para o entendimento do fiapo de história (prosseguindo com Godard e antecipando Tarantino), durante a qual o protagonista conhece uma jovem em uma barca e fala com ela sobre westerns e John Wayne. A câmera capta a aproximação desse homem e dessa mulher sem pressa, de ângulos variados e incomuns, deixando as palavras escorrerem pelos segundos e iniciarem a construção de uma intimidade. A relação desse par é um dos núcleos de Quem Bate à Minha Porta. Ela é introduzida no filme já como flash-back, possibilitando assim um outro tipo de tratamento do tempo, não de dilatação, mas de estrutura cronológica, destinada a fundir dois tempos por meio da experiência e da memória (de outra experiência que interfere na do presente).

Neste núcleo dramático, o do casal, a moralidade será fundamental. Assim veremos qual a relação entre a imagem da santa no início e a reação do protagonista ao saber de um estupro sofrido pela jovem por quem está apaixonado. A mediação religiosa também explicará o desfecho na igreja, introdução da questão da culpa, da punição e da redenção no cinema de Scorsese (e iniciando as esquinas com Abel Ferrara), presente de forma exemplar, direta ou simbólica, nos enredos de Depois de Horas e Cabo de Medo, para citar duas grandes obras consideradas menos autorais e julgadas menores pelo senso crítico comum. Mas também é preciso salientar que, por razões variadas, de produção principalmente (talvez), essa questão entra aqui de forma forçada, sem espontaneidade ou valorização. É quase como se fosse um pós-scriptum de um filme desenvolvido permanentemente como preâmbulo. Estamos em uma narrativa com início, sem meio, sem fim, mas com pós-fim, por assim dizer. E o efeito dessa disjunção é no mínimo interessantíssimo

Essa potente frouxidão narrativa também está presente no outro núcleo dramático do filme (porque o filme tem, sim, dois núcleos-centros, mais que nenhum), este em torno da relação do protagonista com seus dois amigos, na companhia dos quais perambula por ruas, bares e por uma região não urbana onde dão uma pausa na urbanidade. O trio não faz nada de funcional, nenhum deles trabalha, não têm objetivo algum, são apenas seres vivendo o dia, em busca de algo com o que se entreter. Nesse sentido, é como se fossem a turma de Caminhos Perigosos, o filme seguinte de Scorsese, mas sem atividade alguma, ao menos sem atividade definidora de uma identidade pública; portanto, seres sem uma identidade, sem imagem dos outros sobre si e deles mesmos sobre eles mesmos, ao menos na chave lacaniana de desejo e identidade (o ollhar dos outros nos contruindo como sujeitos). As ramificações com o primeiro Jim Jarmush, aquele de Estranhos no Paraíso, base e clichê de boa parte do que virou o cinema indie americano (aquele sobre o peso do vazio tratado com leveza e cinismo), saltam da superfície aqui e ali.

Finalizado inicialmente como um curta universitário em 1964, rodado durante mais cinco anos para virar longa, com interrupções na filmagem e na montagem, Quem Bate à Sua Porta incorpora em sua confecção essa irregularidade. Uma das sequências mais curiosas, e melhores, entrou por ordem do produtor, que queria sexo - mais sexo. E assim vemos um clipe experimental no qual Harvey Keitel esfrega-se em várias mulheres, sucessivamente, com esses corpos sendo substituídos por outros, como uma grande transa com fragmentos de várias mulheres. Poucas sequências no cinema condensaram tão bem a efemeridade sem transcendência da multiplicação de parceiros na atividade sexual como essa.

Toda essa liberdade brota de seu momento histórico, os anos 60, quando o cinema americano respondeu ao crescimento da televisão, ao menos em parte, com formas e conteúdos não permitidos no lazer eletrônico caseiro. As mulheres passaram a tirar a roupa, a câmera começou a circular pelos ambientes, o ritmo substituia a cadência uniforme pelos solavancos da fragmentação assumida, a transparência escancarava as portas para graus variados de auto-referencialidade, os diálogos transformavam-se em conversas sem muita função para o entendimento das ações. A organização narrativa empenhada em extrair sentidos de um conjunto de acontecimentos deixava o sentido à deriva para valorizar os momentos em si mesmos, e o espírito crítico arregaçou as mangas no tratamento de questões caras aos EUA. Scorsese surge nesse contexto, complementado pelo cinema como referência do cinema, um dos traços de qualquer atividade artística moderna, ainda mais para um cineasta que, naquele momento, começava a liderar a geração dos realizadores formados em faculdade de cinema

Scorsese não está desvinculado neste primeiro momento da nouvelle vague japonesa, da francesa, do free cinema inglês, de John Cassavetes, todos cultivando não o cinema do encontro de Robert Bresson - que perseguia a verdade do imprevisto e do não planejado -, mas uma autenticidade extraída da soma entre o planejamento e o imprevisto da realuzação, com o roteiro abrindo espaço para a filmagem, com a montagem buscando mais o ritmo dos planos e menos a lógica geral dos eventos. Assim o filme pulsa em sua busca da beleza na composição do enquadramento, na colocação dos atores no espaço físico, da câmera que se move nesse espaço, manifestando um olhar em movimento e irriquieto, que olha sem piscar para os lados atrás de algo a revelar, mas sem revelar nada muito além do que a superfície dos corpos e das coisas. E isso já é coisa à beça.

Cléber Eduardo

(DVD Warner)