O mote de Quase Dois Irmãos
é a junção de um conceito sociológico
(o da "Cidade Partida", cunhado por Zuenir Ventura para
definir as relações entre asfalto e favela
no Rio de Janeiro) com um fato histórico, que
abre o filme numa cartela de texto: a presença
simultânea e no mesmo pavilhão de criminosos
comuns e presos políticos na cadeia de Ilha Grande
no início dos anos 70. A partir destes dois pontos
de saída, Lucia Murat tenta urdir uma história
ficcional que una dois personagens em três momentos
históricos diferentes (fim dos anos 50, início
dos 70, e a atualidade) traçando um retrato das
relações de classe em uma grande cidade
do país.
Projeto cheio de boas intenções, Quase
Dois Irmãos sofre justamente dos resultados
de suas ambições desmedidas: ao querer
traçar este retrato acima descrito, abraça
mais do que tem condições de resolver,
e sua ficção fica refém de uma
tese sociologizante de entendimento das relações
históricas entre classes (e, porque não
dizer, raças). Neste processo, quem sofre são
as personagens, que perdem todas as suas possibilidades
de individualização, tornando-se marionetes
de comprovação destas teses. Verdadeiras
figuras metonímicas, ficam muito claramente sendo
usados, como partes que são, para provar o todo.
Assim, seja o garoto que se apaixona pelo samba proveniente
das classes baixas, seja os presos políticos
(um deles tem um gato chamado Trotski, vejam só),
seja o senador que quer aprovar um "centro cultural
para a comunidade", seja a "branquinha que quer dar
para o bandidão" (a personagem é assim
definida no próprio filme, em inesperado e aparentemente
involuntário impulso auto-crítico), todos
em Quase Dois Irmãos parecem ter apenas
uma função: se enquadrar num discurso
que os ultrapassa.
Um plano do filme (em operação também
metonímica) serve de exemplo ideal: quando a
filha do senador transa com o traficante, logo a câmera
e o foco abandonam seus corpos como centro de atenção,
e passam para a janela, que tem ao fundo os barracos
da favela. Ou seja: em uma cena de sexo, passa a importar
menos o encontro dos desejos, dos corpos e das subjetividades
envolvidas, e sim o fato de serem os corpos de uma filha
de senador com o de um traficante se encontrando dentro
de uma favela. Os personagens são então
quase uma desculpa, como pode ser evidenciado por este
movimento de câmera e passagem de foco, para uma
tese - e não objetos autônomos. Como resultado
desta opção, muito pouca vida é
respirada pelas personagens do filme (com a honrosa
exceção do trabalho de ator de Flavio
Bauraqui, que cisma em injetar vitalidade em todas as
suas aparições, cisma em ser personagem
vivo em relação aos títeres da
narrativa que o cercam - oposto exato das esquematíssimas
figuras que Antonio Pompêo e Werner Schünemann
interpretam).
Não é nunca papel do crítico dizer
que filme o(a) cineasta deveria ter feito, e sim analisar
aquele que lhe é apresentado. No entanto, é
impossível não afirmar que Quase Dois
Irmãos seria um filme muito melhor se, pelo
menos, abrisse mão de suas banais incursões
historicizantes ou contemporâneas. Ou seja: se
ao invés de tentar seu "jogo triplo", simplesmente
se ativesse com mais tempo, atenção e
carinho a dar a palavra para os personagens na prisão
da Ilha Grande. Além de Lucia Murat não
ser cineasta de primeira viagem, sua história
pessoal prova sua intimidade com o tema das prisões
políticas, e assim ela reconhece e dá
premência a esta narrativa central. No entanto,
era caso de se pedir mais do que isso: as entradas do
passado (sempre cercado de um não-explicado artificialismo
de encenação e ambiência, de uma
solenidade engessante) e das cenas atuais (todas elas
nunca passando ou do mais repetitivo retrato clichê
hiperrealista pós-Cidade de Deus da marginalidade
das favelas cariocas, ou de um tedioso clima de debate
televisivo sociológico nas conversas do senador
com o traficante preso) servem apenas para tentar dar
"estofo" para o que acontece na prisão.
Só que o efeito é exatamente oposto: enquanto
esta sequência de acontecimentos por si mesma
poderia adquirir vida própria e trazer um olhar
efetivamente novo e engajante ao espectador, ela acaba
sendo sufocada pelas suas relações "históricas"
ou seus efeitos no "presente". Os personagens dos anos
70 não precisavam de forma alguma, por exemplo,
serem os mesmos das outras partes. Mas como se deseja
que assim o sejam para que possam ganhar estatuto de
"metáforas vivas" das relações
sociais cariocas, eles acabam tornados pouco mais do
que símbolos de uma história social de
relações. E, como símbolos que
são, não conseguem adquirir significado
outro que não o desejado para eles cena após
cena pelos seus criadores - aprisionados não
só na tela, mas principalmente por esta ordem
narrativa.
Uma opção estética de Quase
Dois Irmãos acaba oferecendo a comparação
que mais ajuda a explicar seu resultado final: o uso
de tons diferentes na fotografia do filme para cada
uma das três partes lembra muito (ainda que menos
saturado) o efeito obtido por Steven Soderbergh em Traffic.
E, no fundo, é dos mesmos pecados do filme do
americano que sofre o de Murat: se Soderbergh objetiva
fazer um "retrato completo" do panorama do tráfico
internacional de drogas (do produtor ao consumidor,
por assim dizer), Murat faz o mesmo aqui num painel
sócio-histórico. Ambos são esforços
totalizadores de compreensão de realidades -
só que estas cismam em escapar destas tentativas
de tecer teses completas. E, assim como no filme de
Soderbergh, Quase Dois Irmãos sobrevive
na tela apenas de espasmos de momentos genuinamente
belos (reafirmando que boa parte deles vindo de Bauraqui),
uma vez que o todo que tenta torná-lo uno não
parece respirar por muito tempo (tanto que as cenas
da década de 50, por exemplo, são quase
esquecidas na narrativa, parecendo um resto de algo
que não se concretizou). É uma pena, porque
ali no meio parecia haver um belo filme em algum lugar,
mais especificamente nos olhos de Bauraqui.
Eduardo Valente
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