Anoitecer Vermelho, de
Edgardo Cozarinsky
Dans le Rouge du couchant, França/Espanha,
2003
Edgardo Cozarinsky, muito eficiente como documentarista
(Cidadão Langlois, O Cinema dos Cahiers),
decide fazer de seu próprio dilema entre duas
cidades o tema de uma ficção. Três
personagens sem nenhuma relação pessoal
entre si vivem em Paris, mas guardam fantasmas de uma
Buenos Aires natal que insiste em pesar sobre suas vidas
de diferentes formas. Por alguns momentos em Anoitecer
Vermelho, damos graças a deus que essas três
histórias não vão se encontrar
naquele famoso clichê das realidades distintas
que acabam se misturando (Magnólia, Amores
Brutos). Mas logo vamos vendo que a estrutura que
alinhava as diferentes histórias é especulativa,
num crescendo de angústia dos personagens em
sua situação existencial. Estrutura frouxa,
que não sustenta o interesse pelas trajetórias
de cada um dos protagonistas (Bruno Putzulu, Marisa
Paredes e Féodor Atkine) e tampouco o tema geral
de uma Buenos Aires fantasmática que se faz presente
através de sua ausência nos projetos de
vida falhados de cada uma dessas pessoas. Filmar a falta
não é fácil, e Cozarinsky acaba
se tornando presa de seu projeto. Resta ao diretor a
saída de Manuel Bandeira: "A única coisa
a fazer é tocar um tango argentino". Atkine vai
a um cabaré dançá-lo, Putzulu ensaia
passos com uma menina linda num navio. Muito pouco como
solução para um filme que nem chega a
começar. (Ruy
Gardnier)
O Cinema é meu Jardim, de Sérgio
Rezende
Brasil, 2004
Ensaio de um didatismo poético raquítico, O Cinema
é Meu Jardim consegue reunir, em seus pouco mais
de 50 minutos, uma rara coleção de clichês esvaziados,
flertando com uma espécie de tele-reportagem lírica
que escorrega feio no brega. A partir de uma narração
que nos presenteia com verdadeiras pérolas do lugar-comum
sobre a relação homem-natureza, o diretor mescla imagens
de flores e de jardins brasileiros com um tipo de “entrevistismo”
elementar e banal, que nunca ultrapassa um telejornalismo
rocambolesco e estéril. Em sua reta final, o filme ainda
tenta emular matizes de “crítica social” ao chamar moradores
de rua de “folhas esquecidas nas calçadas” e filmá-los
de forma poético-opressiva pela cidade do Rio de Janeiro.
E, como se já não bastasse, Resende termina seu filme
(?) com uma espécie de apocalipse pós-naturalista, resumindo
seu sentimento e projeto ideal de mundo à suposta simplicidade
(e pureza insinuada) de um jardim tranqüilo e florido.“Esse
plano é minha flor...o cinema é meu jardim”. Parece
mais o filme de quem não tinha lá muito a dizer. (Felipe
Bragança)
Como Matei um Santo, de Teona Strugar Mitevska
Kako ubiu svetek, Macedônia/França/Espanha,
2003
Os conflitos nos países da antiga Iugoslávia continuam
rendendo assunto para os cineastas locais, como Mitevska,
natural da Macedônia. O quadro das disputas étnicas
e da resistência à OTAN em Skopje, cidade natal da diretora
poderiam, a princípio, constituir uma boa premissa para
despertar o interesse, como realmete acontece na meia-hora
inicial, que consegue introduzir com alguma competência
o espectador no confuso panorama onde se dá o reencontro
entre a irmã que retorna dos Estados Unidos e o irmão
seduzido pelo terrorismo. Mas Mitevska vai, aos poucos,
demonstrando uma mão bastante frouxa, e o clima e uma
certa força iniciais vão gradativamente se perdendo,
terminando num estado geral de apatia, com uma conclusão
que descamba para opções melodramáticas a princípio
improváveis e incompatíveis com o que parecia ser a
proposta inicial do trabalho. Fica, ao final da projeção,
uma forte sensação de desperdício de um argumento promissor.
(Gilberto Silva Jr.)
Descrença, de Andrei Nekrasov
Nedoverie/Disbelief, Rússia/EUA, 2004
Se há uma coisa sobre a qual Descrença
não deixa pairar qualquer dúvida é
que na Rússia pós-glasnost quase
nada é o que parece ser. Se não tivesse
qualquer outra qualidade, o filme já poderia
ser lembrado só por apresentar mais algumas evidências
sobre um dos casos mais escandalosos de terrorismo de
Estado que se conhece no mundo - uma mistura fascinante
de uma estrutura repressora montada em pleno regime
comunista e que ressuscita numa versão Frankenstein
em sua nova fase, capitalista. Se visto pela quase absurda
dificuldade de se montar um discurso de oposição
na Rússia de hoje, Descrença ganha
força como um grito, uma necessidade extrema
de falar algo, de qualquer jeito. Infelizmente, "de
qualquer jeito" é uma expressão-chave.
Como está, Descrença prima pelo
desconjuntamento, pela falta de clareza de argumentação
(que é mais do que uma admissão da complexidade
do mundo, é mesmo produto da confusão
de enunciação), pela mistura de registros
e opções de forma muitas vezes desordenada
e pela falta de critérios em que material argumentativo
usar, e como ordená-lo. O que nos é apresentado
aqui tem muitas vezes a sensação de ser
um copião, um material bruto precisando de edição,
de cortes, de arrumação. O que vemos é,
então, tão somente o reflexo de um desejo
de dizer algo, mesmo que não se saiba muito o
quê, mesmo que não se saiba muito como.
Parece apenas que se sabe o "porquê"
desta necessidade de expressão, e por esta clareza
o filme já possui valor histórico como
objeto. Faltou tornar o valor extra-filme em potência
de realização. (Eduardo
Valente)
Garota Estratosfera, de M. X. Oberg
The Stratosphere Girl, Alemanha/Holanda/França/Reino
Unido, 2004
Garota que se vê como uma heroína de histórias
em quadrinhos entra curiosamente em Encontros e Desencontros,
até que fatidicamente se vê enredada numa
trama policialesca de quinta categoria, tem um idílio
amoroso num cenário não utilizado do filme
1,99, e finalmente a trama policialesca vira
um filme policial americano feito para televisão.
Essa é a sinopse estética mais apropriada
para um filme que vive parasitando estilos que não
consegue dominar, tenta compor um estilo mas acaba no
máximo sendo estiloso. Matthias X. Oberg, em
seu terceiro longa-metragem, parece confiar unicamente
na beleza de sua atriz principal, a estreante Chloë
Winkel, para construir um filme charmoso, e no entanto
acaba presa de um sem-número de clichês
e climas que não conseguem evocar grande coisa.
Sem maiores preocupações temáticas
ou estéticas, sem trama para evoluir ou mesmo
sentimentos a expressar e bem poderia, porque
o tema de uma menina de 18 anos perdida nos antros de
call girls de Tóquio certamente poderia evoluir
questões de deslocamento, falta de sentido, não
saber onde se está, etc. , Garota Estratosfera
é um dos exercícios mais nulos a que alguém
pode se entregar neste Festival do Rio. (Ruy
Gardnier)
O Guerreiro Muai Thai, de Prachya Pinkanew
Ong bak, Tailândia, 2003
Ao mesmo tempo que, durante o festival, temos oportunidade
de conhecer trabalhos da vanguarda do cinema tailandês,
com filmes de Apichatpong Weerasethakul e Pan-Ek Ratanaruang,
nos chega também esse exemplar de cinema-povão feito
no mesmo país. É uma fita de ação que conta a história
de um jovem de uma aldeia pobre que deve ir a Bangkock
resgatar a cabeça de uma imagem sagrada, roubada do
tempo local. Logo na chegada do herói a capital, o filme
embarca num rítmo incessante, que começa como uma aventura
cômica que pode ser comparada a uma espécie de Jackie
Chan mais contido. Os tons cômicos são abandonados aos
poucos, caindo ao final num clima mais violento. Não
sem antes apresentar lutas de arena (meio ao estilo
Jean Claude Van Damme) e uma seqüência de perseguição
que acaba com a destruição de dezenas de táxis, num
clima que lembra as comédias protagonizadas por Terrence
Hill e Bud Spencer nos anos 70. As referências deixam
bem claro o tipo de filme que se trata, com a porradaria
comendo solta durante quase toda a projeção. Tudo numa
narrativa onde impera uma tosqueira que acaba parecendo
saudável por fazer um contraponto ao desfile de paninhos
e frufruzeiras apresentado nesse festival pelos dois
filmes do Grêmio Recreativo Escola de Samba-Kung Fu
Zhang Yimou. (Gilberto
Silva Jr.)
Hari Om, de Bharatbala
Hari Om, Índia, 2004
Uma linda francesa perdida nas ruelas da Índia
é um excelente pretexto para que Hari Om
nos apresente a todas as peculiaridades pitorescas e
belezas geográficas indianas. Isabelle, cansada
da pouca atenção que seu noivo Benoît
dá a ela, decide se perder no coração
do país que está visitando e acaba encontrando
Hari Om, um condutor de riquixá elétrico
(aliás Vijay Raaz, grande estrela de Bollywood)
muito simpático que se apaixona por ela. Como
nos filmes de Didi Mocó, Hari Om é o homem
pobre mas cheio de coração que se mete
com a máfia, faz muitas trapalhadas, se apaixona
pela mocinha linda, consegue um beijo mas depois deixa
ela de mão beijada para o galã. No modo
como filma seu país entre o exótico e
o caloroso, Bharatbala, em seu primeiro longa-metragem,
parece mais interessado em aproveitar a voga do cinema
de Bollywood no Ocidente para fazer um típico
filme "tipo exportação", daqueles
que à saída da sessão só
falta ter uma atendente de agência de viagens
oferecendo pacotes promocionais para visitar a Índia.
Naturalmente, há quem compre esse exotismo nacionalista,
essa espécie de amor "ei, olhem para mim,
olhem como eu consigo ser um país de terceiro
mundo adorável e circense". Curioso em sua
bizarrice, Hari Om tem um ritmo ágil que
alavanca a história mas nos impede de entrar
nos costumes e nas paisagens turísticas, tendo
mais a ver com o "Palácio sobre trilhos",
o trem em que inicialmente os dois franceses iniciam
sua viagem, do que com os riquixás que nos fazem
conhecer o coração do país. Tanto
pior para um filme que tenta no máximo ser um
guia turístico. (Ruy Gardnier)
Inconsciente, de Joaquin Oristell
Inconscientes, Espanha, 2004
O diretor-roteirista Oristell tenta, nesta comédia que
se disfarça de produto “sério”, provocar risos e, ao
mesmo tempo, fazer o espectador sentir-se inteligente
– antigo golpe para buscar a adesão de quem assiste.
Temos uma estrutura de filme de época, com todo o requinte
de produção a que tem direito, passado na Barcelona
do início do século, quando as teorias da psicanálise
Freudiana começaram a ser divulgadas. Assim como estava
também em gestação o cinema. Desta forma, o filme acumula
referências e citações a ambos. Temos a história de
uma mulher voluntariosa, esposa e filha de terapeutas,
que se alia ao cunhado para descobrir pistas que levem
ao seu marido, misteriosamente desaparecido. Numa trama
construída em cima de reviravoltas e numa investigação
baseada no diário do marido, que relata casos que parodiam
as principais teorias de Freud, Oristell escreveu um
roteiro excessivamente carregado de informações, que
pouco a pouco parecem não fazer sentido. Sim, isso lembra
um pouco a premissa de Á
Beira do Abismo, só que, por trás deste tinhamos
talentos como Howard Hawks, William Faulkner e Raymond
Chandler. Ostrell está bem longe disso e o filme não
nega sua longa carreira de roteirista e também a pouca
experiência como diretor: leva muita fé no material
escrito, sem cercá-lo de uma encenação eficiente, além
de passar o tempo sem se decidir entre um humor pretensamente
mais refinado e a vulgaridade, presente em diversos
momentos. São poucas as piadas que realmente funcionam,
como a da conferência do Dr. Alzheimer, mas a maioria
fica mesmo perdida num contexto que, para citar um termo
caro à psicanálise, pode ser considerado histérico.
Ao menos Oristell soube escalar bons atores, que dão
uma valorizada em seu material capenga, como Leonor
Watling (se firmando como talentosa comediante, mesmo
em filmes medíocres), Luis Tosar (fugindo dos papéis
densos que o revelaram) e principalmente Mercedes Sampietro
(genial como uma criada, digamos, enxerida). (Gilberto
Silva Jr.)
Um Lugar Entre os Vivos, de Raul Ruiz
Ume place parmi les vivants, França,
2003
Que de linguagem cinematográfica Raul Ruiz entende,
isso ninguém discute. No entanto, este Um
Lugar entre os Vivos serve para pouco mais além
de demonstrar isso. Ruiz faz uma incursão por
um cinema altamente referencial e pela a boa e velha
discussão do estatuto dos personagens no filme
de ficção, da sua existência apenas
como títeres para a urdidura de uma trama que
não dominam. As metáforas possíveis
a partir deste tema já foram usadas e reusadas
das maneiras mais diferentes - e não parece ser
interesse de Ruiz adicionar nenhuma particularmente
nova. Na verdade, esta é a principal questão
sobre o filme: Ruiz parece muito pouco interessado nele.
Brinca de cinema (o que, é verdade, trata-se
de impulso inicial que já deu vazão a
obras bem interessantes), mas brinca como uma criança
levemente entediada com o seu brinquedo - daquelas que
já dominam todas as fases do seu joguinho eletrônico,
mas nem por isso conseguem deixar de sentar-se para
jogar mais uma partida. Para nós brasileiros,
o filme permite uma aproximação bastante
interessante: com o cinema de Guilherme de Almeida Prado,
lembrando especialmente seu último filme, A
Hora Mágica. Trata-se de aproximação
rica porque Almeida Prado sempre foi um cineasta que,
acima de tudo, acredita no artifício, faz dele
sua profissão de fé - e por isso seus
filmes possuem verdade em toda sua artificialidade.
Ruiz não, ele parece afirmar o artifício
por ser este impossível de ignorar, mas nem nisso
ele acredita de todo - apenas o expõe seguidamente,
quase como o mágico que já não
crê mais nos seus truques e sente a necessidade
de expô-los todos à platéia. Um
Lugar entre os Vivos, paradoxalmente de novo, parece
um filme morto. Muito bem filmado, mas morto. (Eduardo
Valente)
Mil Meses, de Faouzi Bensaidi
Mille mois, França/Bélgica/Marrocos,
2003
Mil Meses se desenvolve como começa: sutilmente,
sem impôr um olhar (os personagens gritam "nós
vemos! agora sim!" olhando para algo fora de quadro
que nunca nos é revelado), deixando que sua história
e personagens vão impregnando o espectador, o
que ele eventualmente consegue. Numa levada que muitas
vezes remete ao cinema de Abbas Kiarostami (em especial
aquele da primeira metade dos anos 90), no seu olhar
humano e com respeito pelo tempo em que se desenvolvem
as cenas, o marroquino Bensaidi acaba nos surpreendendo
em seu desenvolvimento da história, que termina
num ápice dramático em uma festa que chega
a lembrar o caos de um Emir Kusturica - ainda que em
outra chave, claro. Mas, no meio tempo entre esses dois
espaços ele constrói um delicado retrato
de personagens partindo de uma criança que forma
seu olhar enquanto é cercado por prementes questões
sociais (desde a dificuldade de arranjar-se trabalho
até a seca que assola o país), afetivas
(as idas e vindas amorosas de uma série de personagens,
em especial seu professor no colégio), políticas
(o pai do personagem está preso por agitação
sindical) e até mesmo típicas da infância
(a relação com os amigos, a admiração
proto-amorosa por uma menina mais velha). O diretor
consegue costurar todas essas dimensões com considerável
talento, ainda que sem arroubos de genialidade. E assim
se revela um cineasta a quem se deve acompanhar com
atenção no futuro, porque se ainda não
encontrou uma marca expressiva própria, demonstra
aqui um olhar bastante cuidadoso para a construção
audiovisual e para o trabalho com personagens e atores
(Eduardo Valente)
Nascidos nos Bordéis, de Zana Briski e
Ross Kaufman
Born into brothels: Calcutta's red light kids,
Índia/EUA, 2004
Nascidos nos Bordéis não é
um filme comovente sobre uma mulher que tenta salvar
a vida de alguns meninos fadados a repetir a vida criminosa
de drogas e prostituição nos guetos da
luz vermelha da Índia. É sobretudo um
filme de terror. Um filme sobre como uma documentarista,
dotada de todas as verdades egocêntricas e etnocêntricas
sobre como dar liberdade aos outros, vai num país
"exótico e atrasado" para com a arte
(a fotografia, o cinema) salvar quem ainda pode ser
salvo do mar de lama: as pobres criancinhas. Há
um quê de Michael Moore (a professora-cineasta
lutando contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa
da Índia para tirar os vistos de ração
de seus alunos), como há um nojento fedor de
autopromoção (as crianças sendo
entrevistadas pela televisão indiana dizendo
como tudo que a tia Zana ensina vai direto pro cérebro,
como ela é boazinha e atenciosa, etc.) nessa
enquete assistencialista que tenta aplacar a culpa social
através de saídas voluntaristas que "fazem
a diferença". O voluntarismo, como bem se
sabe, serve mais para aliviar a consciência de
quem pratica do que para salvar o outro a quem ele geralmente
é destinado. Assim, depois que a diretora do
filme se esforça para colocar todos os meninos
na escola – a toques de caixa, para mostrar que fez
sua parte –, as legendas nos informam que a maioria
deles voltou para a família. A metáfora
é clara: como George W. Bush concedendo aos iraquianos
uma democracia que, para princípio de conversa,
eles não pediram, tia Zana aparece com seus valores
universais para dar "liberdade" a pessoas
que vivem num contexto social e existencial em que essa
liberdade não é possível. Em Nascidos
nos Bordéis, a arte serve como álibi
para uma prática invasiva, altamente questionável,
e como desculpa para ser bonzinho com os outros e, assim,
conseguir suas medalhinhas da Unicef (ou o senso do
dever cumprido). Todo o poder à má-consciência.
Como no igualmente lamentável Cine Mambembe,
a tarefa do artista é agir como elemento invasivo
porém carregando valores "universais"
para iluminar a vida de pessoas humildes. Efeito "pixote":
para um possível fotógrafo de carreira
profissional bem-sucedida, quantos conviverão
com uma lembrança frustrada de uma caucasiana
bem trapalhona? A benevolência cretina de uma
documentarista que vai embora enquanto os outros ficam
com seus recém-criados desejos artísticos
é algo de virar o estômago. Zana Briski
jamais deve ter lido O Pequeno Príncipe;
nele, se lê: "Tu és responsável
por aquilo que cativas". De boas intenções...
(Ruy Gardnier)
Nosso Tempo, de Rakhshan Baní-Etemad
Ruz-egar-e ma, Irã, 2002
Documentário que tenta captar o sentimento atual com
relação a política, pegando dias que antecedem as eleições
do Irã, mostrando a relação dos jovens presentes diretamente
nas campanhas, ao mesmo tempo que traçando um panorama
de quem seriam as diversas candidatas do sexo feminino
a presidência. Se consegue levantar algum tipo de interesse
nos primeiros quinze minutos é que, por mais que ande
por caminhos tortos, ainda encontra alguma vida num
possível interesse histórico. Mas, vai se tornando bastante
apelativo na medida em que avança, sobretudo quando
abandona de vez toda sua proposta anterior em prol de
acompanhar o drama de uma destas candidatas, que, por
viver com filha e avó e não ter homem algum em casa,
passa por dificuldade na sociedade iraniana. Assunto
delicado, não acaba por ser surpreendente o resultado
final, tedioso, pouco corajoso e apelativo para além
da conta. (Guilherme
Martins)
Olga Benario - Uma Vida pela Revolução,
de Galip Iytanir
Olga Benario - Ein lieben fur die revolution,
Alemanha, 2003
Olga Benario – Um Vida pela Revolução
é rapidamente identificável como um filme-slide,
dois tempos de aula de história (a regulamentar
1h40) com sala escura e o professor de tempos em tempos
mudando a fotografia que aparece na tela. O exemplo
mais notável: assim que na banda sonora ouvimos
"Em Paris...", a imagem mostra a torre Eiffel
e o Arco do Triunfo. Para ilustrar as cenas da vida
de Olga Benario, Otto Braun e Luiz Carlos Prestes, o
filme se utiliza do costumeiro expediente de dramatizações
com encenação primária – que, no
entanto, não ficam nada a dever em relação
ao filme de Jayme Monjardim, também completamente
primário – que parecem nem ajudar nem atrapalhar
o filme, só fazê-lo passar. Uma Vida
pela Revolução acaba servindo apenas
como um reles trabalho de correção histórica
audiovisual da personalidade de Olga Benario: ela passava
longe do esquematismo ninotchkiano criado pelos roteiristas
de Olga como uma mulher que passa da revolução
ao amor, e sua vida dificilmente seria palco de um filme
para as pessoas chorarem ao ver uma mãe ter a
filha retirada de seu colo. Mas isso já sabíamos,
não? (Ruy Gardnier)
Sem Precedentes: A Eleição Americana
de 2000, de Joan Sekler
Unprecedented: The 2000 Presidential Election,
EUA, 2004
Veículo jornalístico, Sem Precedentes
é mais um na série de produções
militantes que questionam a legitimidade das eleições
que levaram George Walter Bush ao poder. O filme passa
em revista uma série de medidas tomadas principalmente
no estado da Florida para diminuir o número de
votantes democratas – sobretudo negros e ex-presidiários
– numa política levada a cabo por Jeb Bush, irmão
do então candidato GWB, e de Katherine Ross,
que depois assumiu posição destacada na
administração nacional de Bush. O filme
apresenta uma série de irregularidades, de um
banco de dados de ex-presidiários porcamente
feito que impedia o direito ao voto de cidadãos
que jamais cometeram crime algum até votos que
foram contados como "em branco" porque as
máquinas mecânicas de votação
funcionavam de maneira falha e não furavam completamente
os cartões de votação. O filme
culmina com a decisão da Suprema Corte de declarar
a impossibilidade da recontagem, levando assim George
W. Bush à Casa Branca. Decisão tão
imoral – e sabedora disso – que o próprio decreto
dizia que a decisão não poderia ser válida
como jurisprudência em futuros julgamentos. Qualquer
pessoa que não nasceu ontem sabe que em qualquer
instância, seja numa rinha de galos ou no Supremo,
jamais há imparcialidade, e que todas as decisões
são políticas. Por momentos, Sem Precedentes
parece ter descoberto a pólvora, quando tinha
material para fazer um filme com um pouco mais de sobriedade.
Mas, num momento em que a voz do documetário
militante na América – e sobretudo o questionamento
das eleições americanas – está
nas mãos de bobos de circo que posam como defensores
da moralidade e da democracia, o filme acaba agradando
pela relativa sobriedade. (Ruy
Gardnier)
Sob o Céu do Líbano, de Randa Chahal
Sabbag
Le cerf-volant, Líbano/França,
2003
Há controvérsias quanto a esta opinião,
mas de minha parte sou radical: há pouca coisa
que o mundo precise menos do que "lições
de moral e bons sentimentos" vindas do cinema. A diretora
Sabbaq se muniu desta missão catequisadora para
tratar do conflito árabe-israelense, num filme
que começa com uma imagem metafórica óbvia
e termina com outra mais ainda, no sentido de nos dizer
que, com o amor e a inocência típico dos
adolescentes, "podemos quebrar as barreiras que nos
separam". Nobre mensagem, pena que envolta num roteiro
não apenas óbvio, como despreocupado com
o humano de fato, pois não constrói um
só personagem de verdade, apenas marionetes desta
mensagem. Mensagem esta passada com uma mistura de comicidade
burlesca e romantismo, ambos igualmente mal encenados,
onde nem as histórias de amor são críveis,
nem as piadas ultrapassam o nível mais baixo.
Mas, claro, isso tudo envolto numa filmagem "clean"
em belíssimo (não se trata de elogio)
scope leva o filme ao sucesso em festivais do mundo
todo (como o Leão de Prata em Veneza indica),
com sua "mensagem de paz" e sua embalagem "for export".
Este pieguismo inofensivo sempre foi o complemento exato
e ineficaz aos esforços de intolerância,
porque ambos supõem uma mesma compreensão
maniqueísta do mundo. Detalhe importante: não
é difícil imaginar com as mesmas situações
básicas, a realização de um belo
filme. Ou seja, toda a culpa vai sim para a diretora
- que no entanto está ocupada com seu Leão
de Prata. Melhor para ela, em nada bom para o mundo.
(Eduardo Valente)
Temporada de Patos, de Fernando Eimbcke
Temporada de patos, México, 2004
Temporada de Patos é uma pequena comprovação
de que bom cinema não se faz apenas com boas
referências cinematográficas. Está
claro no filme o desejo de dialogar com a obra de grandes
nomes do cinema de situação e cotidiano
moderno (Jarmush e Ozu chegam a ser citados nos agradecimentos),
mas o filme peca por um roteiro que confunde rotina
com banalidade e decupagem coloquial com descaso cênico.
O preto-e-branco digital do filme é pouco expressivo
(para não dizer feio), assim como seus enquadramentos
chegam a incomodar pela incapacidade de trabalhar com
a janela e lente escolhidas. Entre pequenas passagens
cômicas e um lirismo-erotismo juvenil que nunca
chega a deslanchar, o filme se arrasta com uma dose
de cinismo que escapole ao controle do diretor. Os personagens
são enquadrados em um tom de deboche misericordioso
que tira da narrativa a possibilidade de se inscrever
em qualquer linhagem do cinema de observação
de gestos e temporalidades. De alguma forma, Temporada
de Patos parece seguir um tipo de cartilha fria,
esquemática, emulando um cinema que Eimbcke parece,
ao menos por enquanto, mais admirar do que entender
enquanto gênese de imagens e sentidos. Buscando
fazer um cinema sobre o tédio, Eimbcke acabou
por fazer um pequeno filme tedioso. (Felipe
Bragança)
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