PÍLULAS

Anoitecer Vermelho, de Edgardo Cozarinsky
Dans le Rouge du couchant, França/Espanha, 2003
Edgardo Cozarinsky, muito eficiente como documentarista (Cidadão Langlois, O Cinema dos Cahiers), decide fazer de seu próprio dilema entre duas cidades o tema de uma ficção. Três personagens sem nenhuma relação pessoal entre si vivem em Paris, mas guardam fantasmas de uma Buenos Aires natal que insiste em pesar sobre suas vidas de diferentes formas. Por alguns momentos em Anoitecer Vermelho, damos graças a deus que essas três histórias não vão se encontrar naquele famoso clichê das realidades distintas que acabam se misturando (Magnólia, Amores Brutos). Mas logo vamos vendo que a estrutura que alinhava as diferentes histórias é especulativa, num crescendo de angústia dos personagens em sua situação existencial. Estrutura frouxa, que não sustenta o interesse pelas trajetórias de cada um dos protagonistas (Bruno Putzulu, Marisa Paredes e Féodor Atkine) e tampouco o tema geral de uma Buenos Aires fantasmática que se faz presente através de sua ausência nos projetos de vida falhados de cada uma dessas pessoas. Filmar a falta não é fácil, e Cozarinsky acaba se tornando presa de seu projeto. Resta ao diretor a saída de Manuel Bandeira: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino". Atkine vai a um cabaré dançá-lo, Putzulu ensaia passos com uma menina linda num navio. Muito pouco como solução para um filme que nem chega a começar. (Ruy Gardnier)

O Cinema é meu Jardim, de Sérgio Rezende
Brasil, 2004
Ensaio de um didatismo poético raquítico, O Cinema é Meu Jardim consegue reunir, em seus pouco mais de 50 minutos, uma rara coleção de clichês esvaziados, flertando com uma espécie de tele-reportagem lírica que escorrega feio no brega. A partir de uma narração que nos presenteia com verdadeiras pérolas do lugar-comum sobre a relação homem-natureza, o diretor mescla imagens de flores e de jardins brasileiros com um tipo de “entrevistismo” elementar e banal, que nunca ultrapassa um telejornalismo rocambolesco e estéril. Em sua reta final, o filme ainda tenta emular matizes de “crítica social” ao chamar moradores de rua de “folhas esquecidas nas calçadas” e filmá-los de forma poético-opressiva pela cidade do Rio de Janeiro. E, como se já não bastasse, Resende termina seu filme (?) com uma espécie de apocalipse pós-naturalista, resumindo seu sentimento e projeto ideal de mundo à suposta simplicidade (e pureza insinuada) de um jardim tranqüilo e florido.“Esse plano é minha flor...o cinema é meu jardim”. Parece mais o filme de quem não tinha lá muito a dizer. (Felipe Bragança)

Como Matei um Santo, de Teona Strugar Mitevska
Kako ubiu svetek, Macedônia/França/Espanha, 2003
Os conflitos nos países da antiga Iugoslávia continuam rendendo assunto para os cineastas locais, como Mitevska, natural da Macedônia. O quadro das disputas étnicas e da resistência à OTAN em Skopje, cidade natal da diretora poderiam, a princípio, constituir uma boa premissa para despertar o interesse, como realmete acontece na meia-hora inicial, que consegue introduzir com alguma competência o espectador no confuso panorama onde se dá o reencontro entre a irmã que retorna dos Estados Unidos e o irmão seduzido pelo terrorismo. Mas Mitevska vai, aos poucos, demonstrando uma mão bastante frouxa, e o clima e uma certa força iniciais vão gradativamente se perdendo, terminando num estado geral de apatia, com uma conclusão que descamba para opções melodramáticas a princípio improváveis e incompatíveis com o que parecia ser a proposta inicial do trabalho. Fica, ao final da projeção, uma forte sensação de desperdício de um argumento promissor. (Gilberto Silva Jr.)

Descrença, de Andrei Nekrasov
Nedoverie/Disbelief, Rússia/EUA, 2004
Se há uma coisa sobre a qual Descrença não deixa pairar qualquer dúvida é que na Rússia pós-glasnost quase nada é o que parece ser. Se não tivesse qualquer outra qualidade, o filme já poderia ser lembrado só por apresentar mais algumas evidências sobre um dos casos mais escandalosos de terrorismo de Estado que se conhece no mundo - uma mistura fascinante de uma estrutura repressora montada em pleno regime comunista e que ressuscita numa versão Frankenstein em sua nova fase, capitalista. Se visto pela quase absurda dificuldade de se montar um discurso de oposição na Rússia de hoje, Descrença ganha força como um grito, uma necessidade extrema de falar algo, de qualquer jeito. Infelizmente, "de qualquer jeito" é uma expressão-chave. Como está, Descrença prima pelo desconjuntamento, pela falta de clareza de argumentação (que é mais do que uma admissão da complexidade do mundo, é mesmo produto da confusão de enunciação), pela mistura de registros e opções de forma muitas vezes desordenada e pela falta de critérios em que material argumentativo usar, e como ordená-lo. O que nos é apresentado aqui tem muitas vezes a sensação de ser um copião, um material bruto precisando de edição, de cortes, de arrumação. O que vemos é, então, tão somente o reflexo de um desejo de dizer algo, mesmo que não se saiba muito o quê, mesmo que não se saiba muito como. Parece apenas que se sabe o "porquê" desta necessidade de expressão, e por esta clareza o filme já possui valor histórico como objeto. Faltou tornar o valor extra-filme em potência de realização. (Eduardo Valente)

Garota Estratosfera, de M. X. Oberg
The Stratosphere Girl, Alemanha/Holanda/França/Reino Unido, 2004
Garota que se vê como uma heroína de histórias em quadrinhos entra curiosamente em Encontros e Desencontros, até que fatidicamente se vê enredada numa trama policialesca de quinta categoria, tem um idílio amoroso num cenário não utilizado do filme 1,99, e finalmente a trama policialesca vira um filme policial americano feito para televisão. Essa é a sinopse estética mais apropriada para um filme que vive parasitando estilos que não consegue dominar, tenta compor um estilo mas acaba no máximo sendo estiloso. Matthias X. Oberg, em seu terceiro longa-metragem, parece confiar unicamente na beleza de sua atriz principal, a estreante Chloë Winkel, para construir um filme charmoso, e no entanto acaba presa de um sem-número de clichês e climas que não conseguem evocar grande coisa. Sem maiores preocupações temáticas ou estéticas, sem trama para evoluir ou mesmo sentimentos a expressar – e bem poderia, porque o tema de uma menina de 18 anos perdida nos antros de call girls de Tóquio certamente poderia evoluir questões de deslocamento, falta de sentido, não saber onde se está, etc. –, Garota Estratosfera é um dos exercícios mais nulos a que alguém pode se entregar neste Festival do Rio. (Ruy Gardnier)

O Guerreiro Muai Thai, de Prachya Pinkanew
Ong bak, Tailândia, 2003
Ao mesmo tempo que, durante o festival, temos oportunidade de conhecer trabalhos da vanguarda do cinema tailandês, com filmes de Apichatpong Weerasethakul e Pan-Ek Ratanaruang, nos chega também esse exemplar de cinema-povão feito no mesmo país. É uma fita de ação que conta a história de um jovem de uma aldeia pobre que deve ir a Bangkock resgatar a cabeça de uma imagem sagrada, roubada do tempo local. Logo na chegada do herói a capital, o filme embarca num rítmo incessante, que começa como uma aventura cômica que pode ser comparada a uma espécie de Jackie Chan mais contido. Os tons cômicos são abandonados aos poucos, caindo ao final num clima mais violento. Não sem antes apresentar lutas de arena (meio ao estilo Jean Claude Van Damme) e uma seqüência de perseguição que acaba com a destruição de dezenas de táxis, num clima que lembra as comédias protagonizadas por Terrence Hill e Bud Spencer nos anos 70. As referências deixam bem claro o tipo de filme que se trata, com a porradaria comendo solta durante quase toda a projeção. Tudo numa narrativa onde impera uma tosqueira que acaba parecendo saudável por fazer um contraponto ao desfile de paninhos e frufruzeiras apresentado nesse festival pelos dois filmes do Grêmio Recreativo Escola de Samba-Kung Fu Zhang Yimou. (Gilberto Silva Jr.)

Hari Om,
de Bharatbala
Hari Om, Índia, 2004
Uma linda francesa perdida nas ruelas da Índia é um excelente pretexto para que Hari Om nos apresente a todas as peculiaridades pitorescas e belezas geográficas indianas. Isabelle, cansada da pouca atenção que seu noivo Benoît dá a ela, decide se perder no coração do país que está visitando e acaba encontrando Hari Om, um condutor de riquixá elétrico (aliás Vijay Raaz, grande estrela de Bollywood) muito simpático que se apaixona por ela. Como nos filmes de Didi Mocó, Hari Om é o homem pobre mas cheio de coração que se mete com a máfia, faz muitas trapalhadas, se apaixona pela mocinha linda, consegue um beijo mas depois deixa ela de mão beijada para o galã. No modo como filma seu país entre o exótico e o caloroso, Bharatbala, em seu primeiro longa-metragem, parece mais interessado em aproveitar a voga do cinema de Bollywood no Ocidente para fazer um típico filme "tipo exportação", daqueles que à saída da sessão só falta ter uma atendente de agência de viagens oferecendo pacotes promocionais para visitar a Índia. Naturalmente, há quem compre esse exotismo nacionalista, essa espécie de amor "ei, olhem para mim, olhem como eu consigo ser um país de terceiro mundo adorável e circense". Curioso em sua bizarrice, Hari Om tem um ritmo ágil que alavanca a história mas nos impede de entrar nos costumes e nas paisagens turísticas, tendo mais a ver com o "Palácio sobre trilhos", o trem em que inicialmente os dois franceses iniciam sua viagem, do que com os riquixás que nos fazem conhecer o coração do país. Tanto pior para um filme que tenta no máximo ser um guia turístico. (Ruy Gardnier)

Inconsciente, de Joaquin Oristell
Inconscientes, Espanha, 2004
O diretor-roteirista Oristell tenta, nesta comédia que se disfarça de produto “sério”, provocar risos e, ao mesmo tempo, fazer o espectador sentir-se inteligente – antigo golpe para buscar a adesão de quem assiste. Temos uma estrutura de filme de época, com todo o requinte de produção a que tem direito, passado na Barcelona do início do século, quando as teorias da psicanálise Freudiana começaram a ser divulgadas. Assim como estava também em gestação o cinema. Desta forma, o filme acumula referências e citações a ambos. Temos a história de uma mulher voluntariosa, esposa e filha de terapeutas, que se alia ao cunhado para descobrir pistas que levem ao seu marido, misteriosamente desaparecido. Numa trama construída em cima de reviravoltas e numa investigação baseada no diário do marido, que relata casos que parodiam as principais teorias de Freud, Oristell escreveu um roteiro excessivamente carregado de informações, que pouco a pouco parecem não fazer sentido. Sim, isso lembra um pouco a premissa de Á Beira do Abismo, só que, por trás deste tinhamos talentos como Howard Hawks, William Faulkner e Raymond Chandler. Ostrell está bem longe disso e o filme não nega sua longa carreira de roteirista e também a pouca experiência como diretor: leva muita fé no material escrito, sem cercá-lo de uma encenação eficiente, além de passar o tempo sem se decidir entre um humor pretensamente mais refinado e a vulgaridade, presente em diversos momentos. São poucas as piadas que realmente funcionam, como a da conferência do Dr. Alzheimer, mas a maioria fica mesmo perdida num contexto que, para citar um termo caro à psicanálise, pode ser considerado histérico. Ao menos Oristell soube escalar bons atores, que dão uma valorizada em seu material capenga, como Leonor Watling (se firmando como talentosa comediante, mesmo em filmes medíocres), Luis Tosar (fugindo dos papéis densos que o revelaram) e principalmente Mercedes Sampietro (genial como uma criada, digamos, enxerida). (Gilberto Silva Jr.)

Um Lugar Entre os Vivos, de Raul Ruiz
Ume place parmi les vivants, França, 2003
Que de linguagem cinematográfica Raul Ruiz entende, isso ninguém discute. No entanto, este Um Lugar entre os Vivos serve para pouco mais além de demonstrar isso. Ruiz faz uma incursão por um cinema altamente referencial e pela a boa e velha discussão do estatuto dos personagens no filme de ficção, da sua existência apenas como títeres para a urdidura de uma trama que não dominam. As metáforas possíveis a partir deste tema já foram usadas e reusadas das maneiras mais diferentes - e não parece ser interesse de Ruiz adicionar nenhuma particularmente nova. Na verdade, esta é a principal questão sobre o filme: Ruiz parece muito pouco interessado nele. Brinca de cinema (o que, é verdade, trata-se de impulso inicial que já deu vazão a obras bem interessantes), mas brinca como uma criança levemente entediada com o seu brinquedo - daquelas que já dominam todas as fases do seu joguinho eletrônico, mas nem por isso conseguem deixar de sentar-se para jogar mais uma partida. Para nós brasileiros, o filme permite uma aproximação bastante interessante: com o cinema de Guilherme de Almeida Prado, lembrando especialmente seu último filme, A Hora Mágica. Trata-se de aproximação rica porque Almeida Prado sempre foi um cineasta que, acima de tudo, acredita no artifício, faz dele sua profissão de fé - e por isso seus filmes possuem verdade em toda sua artificialidade. Ruiz não, ele parece afirmar o artifício por ser este impossível de ignorar, mas nem nisso ele acredita de todo - apenas o expõe seguidamente, quase como o mágico que já não crê mais nos seus truques e sente a necessidade de expô-los todos à platéia. Um Lugar entre os Vivos, paradoxalmente de novo, parece um filme morto. Muito bem filmado, mas morto. (Eduardo Valente)

Mil Meses, de Faouzi Bensaidi
Mille mois, França/Bélgica/Marrocos, 2003
Mil Meses se desenvolve como começa: sutilmente, sem impôr um olhar (os personagens gritam "nós vemos! agora sim!" olhando para algo fora de quadro que nunca nos é revelado), deixando que sua história e personagens vão impregnando o espectador, o que ele eventualmente consegue. Numa levada que muitas vezes remete ao cinema de Abbas Kiarostami (em especial aquele da primeira metade dos anos 90), no seu olhar humano e com respeito pelo tempo em que se desenvolvem as cenas, o marroquino Bensaidi acaba nos surpreendendo em seu desenvolvimento da história, que termina num ápice dramático em uma festa que chega a lembrar o caos de um Emir Kusturica - ainda que em outra chave, claro. Mas, no meio tempo entre esses dois espaços ele constrói um delicado retrato de personagens partindo de uma criança que forma seu olhar enquanto é cercado por prementes questões sociais (desde a dificuldade de arranjar-se trabalho até a seca que assola o país), afetivas (as idas e vindas amorosas de uma série de personagens, em especial seu professor no colégio), políticas (o pai do personagem está preso por agitação sindical) e até mesmo típicas da infância (a relação com os amigos, a admiração proto-amorosa por uma menina mais velha). O diretor consegue costurar todas essas dimensões com considerável talento, ainda que sem arroubos de genialidade. E assim se revela um cineasta a quem se deve acompanhar com atenção no futuro, porque se ainda não encontrou uma marca expressiva própria, demonstra aqui um olhar bastante cuidadoso para a construção audiovisual e para o trabalho com personagens e atores (Eduardo Valente)

Nascidos nos Bordéis, de Zana Briski e Ross Kaufman
Born into brothels: Calcutta's red light kids, Índia/EUA, 2004
Nascidos nos Bordéis não é um filme comovente sobre uma mulher que tenta salvar a vida de alguns meninos fadados a repetir a vida criminosa de drogas e prostituição nos guetos da luz vermelha da Índia. É sobretudo um filme de terror. Um filme sobre como uma documentarista, dotada de todas as verdades egocêntricas e etnocêntricas sobre como dar liberdade aos outros, vai num país "exótico e atrasado" para com a arte (a fotografia, o cinema) salvar quem ainda pode ser salvo do mar de lama: as pobres criancinhas. Há um quê de Michael Moore (a professora-cineasta lutando contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa da Índia para tirar os vistos de ração de seus alunos), como há um nojento fedor de autopromoção (as crianças sendo entrevistadas pela televisão indiana dizendo como tudo que a tia Zana ensina vai direto pro cérebro, como ela é boazinha e atenciosa, etc.) nessa enquete assistencialista que tenta aplacar a culpa social através de saídas voluntaristas que "fazem a diferença". O voluntarismo, como bem se sabe, serve mais para aliviar a consciência de quem pratica do que para salvar o outro a quem ele geralmente é destinado. Assim, depois que a diretora do filme se esforça para colocar todos os meninos na escola – a toques de caixa, para mostrar que fez sua parte –, as legendas nos informam que a maioria deles voltou para a família. A metáfora é clara: como George W. Bush concedendo aos iraquianos uma democracia que, para princípio de conversa, eles não pediram, tia Zana aparece com seus valores universais para dar "liberdade" a pessoas que vivem num contexto social e existencial em que essa liberdade não é possível. Em Nascidos nos Bordéis, a arte serve como álibi para uma prática invasiva, altamente questionável, e como desculpa para ser bonzinho com os outros e, assim, conseguir suas medalhinhas da Unicef (ou o senso do dever cumprido). Todo o poder à má-consciência. Como no igualmente lamentável Cine Mambembe, a tarefa do artista é agir como elemento invasivo porém carregando valores "universais" para iluminar a vida de pessoas humildes. Efeito "pixote": para um possível fotógrafo de carreira profissional bem-sucedida, quantos conviverão com uma lembrança frustrada de uma caucasiana bem trapalhona? A benevolência cretina de uma documentarista que vai embora enquanto os outros ficam com seus recém-criados desejos artísticos é algo de virar o estômago. Zana Briski jamais deve ter lido O Pequeno Príncipe; nele, se lê: "Tu és responsável por aquilo que cativas". De boas intenções... (Ruy Gardnier)

Nosso Tempo, de Rakhshan Baní-Etemad
Ruz-egar-e ma, Irã, 2002
Documentário que tenta captar o sentimento atual com relação a política, pegando dias que antecedem as eleições do Irã, mostrando a relação dos jovens presentes diretamente nas campanhas, ao mesmo tempo que traçando um panorama de quem seriam as diversas candidatas do sexo feminino a presidência. Se consegue levantar algum tipo de interesse nos primeiros quinze minutos é que, por mais que ande por caminhos tortos, ainda encontra alguma vida num possível interesse histórico. Mas, vai se tornando bastante apelativo na medida em que avança, sobretudo quando abandona de vez toda sua proposta anterior em prol de acompanhar o drama de uma destas candidatas, que, por viver com filha e avó e não ter homem algum em casa, passa por dificuldade na sociedade iraniana. Assunto delicado, não acaba por ser surpreendente o resultado final, tedioso, pouco corajoso e apelativo para além da conta. (Guilherme Martins)

Olga Benario - Uma Vida pela Revolução, de Galip Iytanir
Olga Benario - Ein lieben fur die revolution, Alemanha, 2003
Olga Benario – Um Vida pela Revolução é rapidamente identificável como um filme-slide, dois tempos de aula de história (a regulamentar 1h40) com sala escura e o professor de tempos em tempos mudando a fotografia que aparece na tela. O exemplo mais notável: assim que na banda sonora ouvimos "Em Paris...", a imagem mostra a torre Eiffel e o Arco do Triunfo. Para ilustrar as cenas da vida de Olga Benario, Otto Braun e Luiz Carlos Prestes, o filme se utiliza do costumeiro expediente de dramatizações com encenação primária – que, no entanto, não ficam nada a dever em relação ao filme de Jayme Monjardim, também completamente primário – que parecem nem ajudar nem atrapalhar o filme, só fazê-lo passar. Uma Vida pela Revolução acaba servindo apenas como um reles trabalho de correção histórica audiovisual da personalidade de Olga Benario: ela passava longe do esquematismo ninotchkiano criado pelos roteiristas de Olga como uma mulher que passa da revolução ao amor, e sua vida dificilmente seria palco de um filme para as pessoas chorarem ao ver uma mãe ter a filha retirada de seu colo. Mas isso já sabíamos, não? (Ruy Gardnier)

Sem Precedentes: A Eleição Americana de 2000, de Joan Sekler
Unprecedented: The 2000 Presidential Election, EUA, 2004
Veículo jornalístico, Sem Precedentes é mais um na série de produções militantes que questionam a legitimidade das eleições que levaram George Walter Bush ao poder. O filme passa em revista uma série de medidas tomadas principalmente no estado da Florida para diminuir o número de votantes democratas – sobretudo negros e ex-presidiários – numa política levada a cabo por Jeb Bush, irmão do então candidato GWB, e de Katherine Ross, que depois assumiu posição destacada na administração nacional de Bush. O filme apresenta uma série de irregularidades, de um banco de dados de ex-presidiários porcamente feito que impedia o direito ao voto de cidadãos que jamais cometeram crime algum até votos que foram contados como "em branco" porque as máquinas mecânicas de votação funcionavam de maneira falha e não furavam completamente os cartões de votação. O filme culmina com a decisão da Suprema Corte de declarar a impossibilidade da recontagem, levando assim George W. Bush à Casa Branca. Decisão tão imoral – e sabedora disso – que o próprio decreto dizia que a decisão não poderia ser válida como jurisprudência em futuros julgamentos. Qualquer pessoa que não nasceu ontem sabe que em qualquer instância, seja numa rinha de galos ou no Supremo, jamais há imparcialidade, e que todas as decisões são políticas. Por momentos, Sem Precedentes parece ter descoberto a pólvora, quando tinha material para fazer um filme com um pouco mais de sobriedade. Mas, num momento em que a voz do documetário militante na América – e sobretudo o questionamento das eleições americanas – está nas mãos de bobos de circo que posam como defensores da moralidade e da democracia, o filme acaba agradando pela relativa sobriedade. (Ruy Gardnier)

Sob o Céu do Líbano, de Randa Chahal Sabbag
Le cerf-volant, Líbano/França, 2003
Há controvérsias quanto a esta opinião, mas de minha parte sou radical: há pouca coisa que o mundo precise menos do que "lições de moral e bons sentimentos" vindas do cinema. A diretora Sabbaq se muniu desta missão catequisadora para tratar do conflito árabe-israelense, num filme que começa com uma imagem metafórica óbvia e termina com outra mais ainda, no sentido de nos dizer que, com o amor e a inocência típico dos adolescentes, "podemos quebrar as barreiras que nos separam". Nobre mensagem, pena que envolta num roteiro não apenas óbvio, como despreocupado com o humano de fato, pois não constrói um só personagem de verdade, apenas marionetes desta mensagem. Mensagem esta passada com uma mistura de comicidade burlesca e romantismo, ambos igualmente mal encenados, onde nem as histórias de amor são críveis, nem as piadas ultrapassam o nível mais baixo. Mas, claro, isso tudo envolto numa filmagem "clean" em belíssimo (não se trata de elogio) scope leva o filme ao sucesso em festivais do mundo todo (como o Leão de Prata em Veneza indica), com sua "mensagem de paz" e sua embalagem "for export". Este pieguismo inofensivo sempre foi o complemento exato e ineficaz aos esforços de intolerância, porque ambos supõem uma mesma compreensão maniqueísta do mundo. Detalhe importante: não é difícil imaginar com as mesmas situações básicas, a realização de um belo filme. Ou seja, toda a culpa vai sim para a diretora - que no entanto está ocupada com seu Leão de Prata. Melhor para ela, em nada bom para o mundo. (Eduardo Valente)

Temporada de Patos, de Fernando Eimbcke
Temporada de patos, México, 2004
Temporada de Patos é uma pequena comprovação de que bom cinema não se faz apenas com boas referências cinematográficas. Está claro no filme o desejo de dialogar com a obra de grandes nomes do cinema de situação e cotidiano moderno (Jarmush e Ozu chegam a ser citados nos agradecimentos), mas o filme peca por um roteiro que confunde rotina com banalidade e decupagem coloquial com descaso cênico. O preto-e-branco digital do filme é pouco expressivo (para não dizer feio), assim como seus enquadramentos chegam a incomodar pela incapacidade de trabalhar com a janela e lente escolhidas. Entre pequenas passagens cômicas e um lirismo-erotismo juvenil que nunca chega a deslanchar, o filme se arrasta com uma dose de cinismo que escapole ao controle do diretor. Os personagens são enquadrados em um tom de deboche misericordioso que tira da narrativa a possibilidade de se inscrever em qualquer linhagem do cinema de observação de gestos e temporalidades. De alguma forma, Temporada de Patos parece seguir um tipo de cartilha fria, esquemática, emulando um cinema que Eimbcke parece, ao menos por enquanto, mais admirar do que entender enquanto gênese de imagens e sentidos. Buscando fazer um cinema sobre o tédio, Eimbcke acabou por fazer um pequeno filme tedioso. (Felipe Bragança)