Uma cena de Peões
é absolutamente determinante para o filme e para defini-lo
como uma obra de Eduardo Coutinho. E talvez mais definidor
ainda seja saber que ela não estava nos planos do diretor
para a montagem final. Entrou depois de muita reflexão
e discussão, segundo o próprio. O momento em questão
é aquele que Coutinho apelidou de “As regras do jogo”.
Nele, o diretor reúne-se em uma sala com alguns sindicalistas
para que eles, diante de imagens de filmes antigos (Linha de montagem, de Renato Tapajós; ABC da greve, de Leon Hirszman; e A greve, de João Batista de Andrade) e
fotografias de jornal e de arquivos pessoais/sindicais,
apontem os possíveis outros personagens para o documentário.
Peões é um
típico filme de Coutinho, com seus personagens captados
pela câmera em momentos de singularidade absoluta, em
uma celebração da construção de si pela fala. Mas nele,
habita uma tensão que o particulariza: essa procura
pelos personagens (que deu à filmagem um certo ar de
gincana tratada com seriedade) introduziu no filme a
problemática de sua feitura.
Porque há um problema prático que lhe é próprio: ele
tem um prazo muito curto para fazer o filme. Praticamente
um mês. E nesse tempo, tem que achar mais e melhores
personagens. E desta vez Coutinho não tem um sistema
espacial/lógico que os uma, como em Edifício
Master (os moradores de um prédio), Babilônia
2000 (os habitantes de uma comunidade em um morro)
ou mesmo Cabra Marcado para Morrer (os laços de
família). Em vez disso, ele trabalha com a rede. Rede
de relações. Alguém, que se lembra de alguém, que conhece
alguém que possa saber de outrem. É assim que se constitui
a pesquisa do filme.
Nesse sentido é que Peões
traz impresso em si a marca de sua feitura, assim como
Cabra (o filme que consagrou Coutinho e que, como se sabe, nasceu
– a fórceps – documentário da morte – um assassinato
– de sua feitura como ficção). Nas entrelinhas das entrevistas
do filme estão marcados esses laços. O que de antemão
reforça o desejo (de) manifesto de Coutinho, que é o
de não criar uma categoria. A “classe operária” do filme,
ainda que fosse uma generalidade, seria uma generalidade
possível, aquela produzida pelas relações que se puderam
manter ao longo do tempo. Os personagens só puderam
ser encontrados porque, na diáspora, deixaram marcas
para trás.
E é dessas marcas que fala o filme. Nele, pulsa uma
forte tensão, rara no cinema do diretor: aquela entre
a memória e a história. Isso porque Coutinho habitualmente
capta os personagens no momento de sua construção, na
fala do entrevistado. Neste filme, diferente disso,
ele tem um assunto, que o pressiona: seus personagens
pertencem de fato a uma categoria, categoria que dialogou
com a macro-história. Não são apenas pessoas, mas pessoas
que tomaram parte do grande movimento operário que promoveu
as grandes greves no ABC em 1979 e 1980.
Há uma tensão, então. E ela está marcada na montagem.
Isso porque às falas dos personagens juntam-se imagens
dos filmes usados para reavivar-lhes a memória, filmes
que são, antes de tudo, documentos históricos. “Juntam-se”,
entretanto, é uma ação que deve ser explicada. Isso
porque um clichê habitual de documentário historiográfico
é o uso do depoimento de testemunha para legendar uma
imagem de época. Não é o que acontece. Coutinho foge
da semiose como o diabo da cruz. Fazer isso seria criar
um sentido de composição a
priori. Em vez disso, edita em separada. Trecho
de filme em um momento. Falas dos personagens em outro.
Juntar, então, é pôr frente a frente, opor.
Essa oposição é, como se disse, o próprio sentido do
filme. As falas dos personagens não servem para comprovar
ou desmentir as cenas históricas e nem para testemunhas
sua participação nelas. Em vez disso, servem para reconstituir
particularidades onde a historiografia impõe noções
como as de “classe”, “movimento” ou “partido”.
É a operação por excelência do cinema de Coutinho. Em
Cabra, a família desmontada pela luta política
e pelo assassinato do pai é retomada como uma série
de pessoas quase sem ligação. Em Theodorico,
Imperador do Sertão, a construção do real feita
pelo próprio objeto o demarca não como coronel nordestino,
mas como narrador. Em ambos os exemplos e em Peões, essa tensão entre particular e universal
é ao mesmo tempo circunstancial e determinante. Veja-se
o caso do Globo Repórter sobre o fazendeiro: Coutinho,
em vez de apenas entrevistar Theodorico ou de fazer
uma reportagem mostrando o seu poder, praticamente entrega
a direção do filme nas mãos dele. A câmera de Dib Lutfi
o acompanha e ele vai aonde quer e diz o que quer. Ora,
Coutinho faz um filme sobre o poder em que o poder está
inscrito na própria filmagem. O mesmo acontece em Cabra:
a impossibilidade da família salta, decalcada, da própria
estrutura do filme, que se move atrás de seus personagens.
Peões começa no Ceará atual, um ponto de partida
aparentemente improvável para um filme sobre as greves
de São Bernardo do Campo no começo dos anos 80. E começa
com um plano feito da janela de um carro, que anda,
mostrando a rua e casas que passam. Curiosamente (Coutinho,
claro, renegará o símbolo), a imagem flui da direita
para a esquerda (e não da esquerda para a direita, o
sentido eleito pelo mundo ocidental como o do fluxo
normal da escrita e, portanto, do tempo). O jogo de
presente-passado apresentado pela abertura é revelador:
o filme não dá conta de uma diáspora apenas, mas de
duas. Não se trata apenas de para onde foram os operários
participantes do movimento sindical que “se perderam”
depois de 1980. Trata-se de de onde vieram os operários
que constituíram a classe operária brasileira. Nesse
sentido, vale a máxima de que São Paulo é o estado mais
rico do Nordeste brasileiro.
E é onde Peões
se toca com seu filme parceiro, Entreatos: Lula
(que no filme de Coutinho é muito mais uma referência
histórica, um antipersonagem) é um dos di-diaspóricos.
Sua segunda saída é o contra-exemplo do filme, mas sua
primeira, o abandono do Nordeste por São Bernardo, é
a mesma. É peão, portanto.
Essa condição, aliás, é o ponto de encontro entre as
duas forças em tensão na fita. A fala final assume um
tom de síntese: define a categoria e ainda permite a
Coutinho a mea
culpa de não ser um deles. Ser peão é, em certo
sentido, uma dualidade. É ser um soldado raso da industrialização
brasileira, explorado e chamado à luta pela igualdade,
mas é, ao mesmo tempo, fazer parte de uma elite intelectual
e artística: o peão sabe seu ofício, conhece-o como
poucos, executa-o como ninguém. É aquele sem o qual
a fábrica (na época utópica dos filmes de arquivo) não
funcionaria, mas é aquele que a fábrica (na época realista
de hoje) não pode mais manter. Nesse sentido, enquanto
problematiza o choque entre memória e história e a definição
estanque de categorias limítrofes, Peões ainda se insere na filmografia de Coutinho como um filme de
visão de mundo: toda nostalgia desconstrutiva que se
poderia afirmar ao se olhar para trabalhadores saudosos
da “era das revoluções” ou para a decadência de quem
já foi outrora soldado da transformação e agora se acomoda
na velhice doente se transforma – como em Cabra,
Theodorico
ou mesmo em Santo Forte – em índice de que a política
é, no limite, uma moral. Peões
não é um filme emocional, embora emocione. É um filme
sobre as possibilidades do político como ethos
cotidiano.
Alexandre Werneck
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