Blood and Cigarettes
Não seria errado dizer que o espectador, se em
qualquer momento da vida acompanhou algum programa documentário
na TV (seja na National Geographic ou canais afins,
seja num Globo Repórter da vida) sobre as atividades
de pesca em alto-mar, pode achar que Pele Rasgada,
num primeiro momento, pouco tem a adicionar em termos
de ineditismo de imagem. Vale a pena repensar o pré-conceito,
porque se Samani de fato não filma nada que nunca
se tenha visto (e quem filma? diriam uns), o que importa
mesmo aqui é COMO ele filma. E aí sim,
pode-se dizer que o ineditismo é completo.
Mas, talvez seja melhor mesmo começar dizendo
tudo aquilo que Pele Rasgada não é.
Ele não é, por exemplo, um documentário
sobre tubarões - porque nele os tubarões
são apenas valorosos coadjuvantes com muito pouco
papel a interpretar para além do de vítimas
surpreendentemente indefesas. Não é também,
uma aproximação National Geographic de
maravilhamento perante a natureza selvagem - basta ver,
quando surgem alguns golfinhos no mar, a completa incapacidade
do filme de fazer daquilo assunto visualmente interessante
por si mesmo. Não é, o que é mais
difícil perceber num primeiro momento, um filme
de heroicização de homens que exercem
uma atividade pretensamente incomum ou quase sobre-humana
- pelo contrário, o que se mostra o tempo todo
é o caráter absolutamente comum daqueles
homens (incomum talvez apenas, para nós, sua
atividade - mas não para eles). E finalmente
não é, de forma alguma, um filme especificamente
sobre aqueles homens que acompanhamos ao longo do seu
ritual de trabalho, da pesca dos tubarões - pelo
menos não no sentido de dar a eles alguma individualidade,
já que eles nunca têm sequer seus nomes
mencionados, não há entrevistas com eles,
e nem mesmo seus diálogos são compreensíveis
(muitas vezes o som direto é modificado para
que os diálogos se percam completamente na ruidagem
externa). Então, o que é Pele Rasgada
afinal?
Pele Rasgada é um filme sobre um processo:
a pesca de tubarões na costa da Bretanha. E ponto.
A forma encontrada por Samani para registrar este processo
se aproxima mais, talvez, do cinema de um Frederick
Wiseman: sua câmera se recosta até quase
se fundir com as paredes dos ambientes (neste caso,
quando há paredes), e deixa que os fatos se sucedam
à sua frente. E acredita que, ao montá-los
depois de uma determinada forma, eles possuam um sentido
em si mesmos que escape à necessidade do cineasta
impô-lo com palavras ou "imagens-símbolo".
Neste processo, um elemento é essencial para
Samani (como para Wiseman): o tempo - o tempo em que
as ações se desenvolvem. Samani consegue,
nos cinquenta e cinco minutos que seu filme dura, nos
inserir naquela temporalidade, que é de fato
o diferencial de tudo que se relaciona com o mar. Mas,
faz isso sem forçar imagens ou tempos de plano
"contemplativos", o que seria o óbvio;
ao contrário, faz isso pela simples repetição
rotineira dos atos, das poucas palavras ditas, da mecânica
de uma profissão sendo exercida em condições
um tanto incomuns para nós, mas comuns para os
que a exercem. E é nesta observação
quase zen, nesta repetição quase mântrica,
que o filme nos coloca em estado de transe, nos faz
ser parte daquela embarcação - aí
sim, como nunca havíamos visto antes em nenhum
documentário sobre o assunto.
Há, é claro, uma observação
constante no filme sobre o estado quase animalesco do
que signifique ser, ainda hoje (num mundo marcado por
tantas relações virtuais entre seres vivos
- não só humanos, mas também com
a natureza), um caçador - porque afinal, é
isso que são os pescadores de tubarão.
Na forma como lidam com o ato de matar um ser vivo para
sua subsistência, na forma como se empapam do
sangue de outro ser (ele também, um predador),
na forma como fazem dos atos de violência sua
rotina de trabalho. Porém, o filme faz questão
de não animalizar os humanos (não se trata
de filme ecológico-boboca). E o ato que lhes
concede a humanidade o tempo todo em que acompanhamos
sua rotina (mesmo em meio à retirada, muitas
vezes violenta, dos tubarões da água)
também é um para enlouquecer os ecologistas/saudáveis
em geral: o fumo. Os cigarros que os pescadores tiram
o tempo todo de suas roupas empapadas de sangue e acendem
na boca, com dificuldade só igual a constância,
são os objetos que afirmam o tempo todo: podemos
nos aproximar dos animais caçando, mas continuamos
humanos, produtos de uma sociedade de organização
tão complexa quanto a natureza, mas de outros
signos e regras.
Tanto é assim que o filme começa e termina
com a partida e chegada deles do porto (sem que a câmera
desça do barco em nenhum momento), por um motivo
simples: é esta volta à família
que os torna, de novo, parte de algo para além
da luta simples e direta pela sobrevivência (que
é o que faz um animal ao caçar). Há
um motivo por trás daquele sangue e cigarros
todos, e ao contrário dos animais que devoram
suas presas, ele está naquele porto. Uma sobrevivência,
sim, mas de outra ordem lógica. E, mesmo que
um homem que mata dezenas de tubarões sem se
ferir, acabe todo cortado e sangrando ao tentar se barbear
na volta para casa, ele não é menos homem
e mais animal por causa disso. Pele Rasgada é
um filme, em suma, sobre homens e sua rotina de trabalho.
Mas é, de fato, um filme sobre homens, que lidam
com animais e se aproximam do estado deles, mas nunca
deixam de ser homens.
Eduardo Valente
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