PELE RASGADA
Julien Samani, La peau trouée, França, 2004

Blood and Cigarettes

Não seria errado dizer que o espectador, se em qualquer momento da vida acompanhou algum programa documentário na TV (seja na National Geographic ou canais afins, seja num Globo Repórter da vida) sobre as atividades de pesca em alto-mar, pode achar que Pele Rasgada, num primeiro momento, pouco tem a adicionar em termos de ineditismo de imagem. Vale a pena repensar o pré-conceito, porque se Samani de fato não filma nada que nunca se tenha visto (e quem filma? diriam uns), o que importa mesmo aqui é COMO ele filma. E aí sim, pode-se dizer que o ineditismo é completo.

Mas, talvez seja melhor mesmo começar dizendo tudo aquilo que Pele Rasgada não é. Ele não é, por exemplo, um documentário sobre tubarões - porque nele os tubarões são apenas valorosos coadjuvantes com muito pouco papel a interpretar para além do de vítimas surpreendentemente indefesas. Não é também, uma aproximação National Geographic de maravilhamento perante a natureza selvagem - basta ver, quando surgem alguns golfinhos no mar, a completa incapacidade do filme de fazer daquilo assunto visualmente interessante por si mesmo. Não é, o que é mais difícil perceber num primeiro momento, um filme de heroicização de homens que exercem uma atividade pretensamente incomum ou quase sobre-humana - pelo contrário, o que se mostra o tempo todo é o caráter absolutamente comum daqueles homens (incomum talvez apenas, para nós, sua atividade - mas não para eles). E finalmente não é, de forma alguma, um filme especificamente sobre aqueles homens que acompanhamos ao longo do seu ritual de trabalho, da pesca dos tubarões - pelo menos não no sentido de dar a eles alguma individualidade, já que eles nunca têm sequer seus nomes mencionados, não há entrevistas com eles, e nem mesmo seus diálogos são compreensíveis (muitas vezes o som direto é modificado para que os diálogos se percam completamente na ruidagem externa). Então, o que é Pele Rasgada afinal?

Pele Rasgada é um filme sobre um processo: a pesca de tubarões na costa da Bretanha. E ponto. A forma encontrada por Samani para registrar este processo se aproxima mais, talvez, do cinema de um Frederick Wiseman: sua câmera se recosta até quase se fundir com as paredes dos ambientes (neste caso, quando há paredes), e deixa que os fatos se sucedam à sua frente. E acredita que, ao montá-los depois de uma determinada forma, eles possuam um sentido em si mesmos que escape à necessidade do cineasta impô-lo com palavras ou "imagens-símbolo". Neste processo, um elemento é essencial para Samani (como para Wiseman): o tempo - o tempo em que as ações se desenvolvem. Samani consegue, nos cinquenta e cinco minutos que seu filme dura, nos inserir naquela temporalidade, que é de fato o diferencial de tudo que se relaciona com o mar. Mas, faz isso sem forçar imagens ou tempos de plano "contemplativos", o que seria o óbvio; ao contrário, faz isso pela simples repetição rotineira dos atos, das poucas palavras ditas, da mecânica de uma profissão sendo exercida em condições um tanto incomuns para nós, mas comuns para os que a exercem. E é nesta observação quase zen, nesta repetição quase mântrica, que o filme nos coloca em estado de transe, nos faz ser parte daquela embarcação - aí sim, como nunca havíamos visto antes em nenhum documentário sobre o assunto.

Há, é claro, uma observação constante no filme sobre o estado quase animalesco do que signifique ser, ainda hoje (num mundo marcado por tantas relações virtuais entre seres vivos - não só humanos, mas também com a natureza), um caçador - porque afinal, é isso que são os pescadores de tubarão. Na forma como lidam com o ato de matar um ser vivo para sua subsistência, na forma como se empapam do sangue de outro ser (ele também, um predador), na forma como fazem dos atos de violência sua rotina de trabalho. Porém, o filme faz questão de não animalizar os humanos (não se trata de filme ecológico-boboca). E o ato que lhes concede a humanidade o tempo todo em que acompanhamos sua rotina (mesmo em meio à retirada, muitas vezes violenta, dos tubarões da água) também é um para enlouquecer os ecologistas/saudáveis em geral: o fumo. Os cigarros que os pescadores tiram o tempo todo de suas roupas empapadas de sangue e acendem na boca, com dificuldade só igual a constância, são os objetos que afirmam o tempo todo: podemos nos aproximar dos animais caçando, mas continuamos humanos, produtos de uma sociedade de organização tão complexa quanto a natureza, mas de outros signos e regras.

Tanto é assim que o filme começa e termina com a partida e chegada deles do porto (sem que a câmera desça do barco em nenhum momento), por um motivo simples: é esta volta à família que os torna, de novo, parte de algo para além da luta simples e direta pela sobrevivência (que é o que faz um animal ao caçar). Há um motivo por trás daquele sangue e cigarros todos, e ao contrário dos animais que devoram suas presas, ele está naquele porto. Uma sobrevivência, sim, mas de outra ordem lógica. E, mesmo que um homem que mata dezenas de tubarões sem se ferir, acabe todo cortado e sangrando ao tentar se barbear na volta para casa, ele não é menos homem e mais animal por causa disso. Pele Rasgada é um filme, em suma, sobre homens e sua rotina de trabalho. Mas é, de fato, um filme sobre homens, que lidam com animais e se aproximam do estado deles, mas nunca deixam de ser homens.

Eduardo Valente