O
primeiro longa-metragem de Yang Chao revela talento.
É o mínimo dizer, ele controla a arte
dos deslocamentos lentos para a tela, filtra a poesia
dos personagens através destes movimentos, e
tem um senso inato de filmar paisagens e compor seu
quadro. Dito tudo isso, ele tem um problema a resolver,
que Passagens evidentemente não resolve.
Trata-se de um filme parasita de uma outra estética,
estética essa que Yang conhece e reverencia em
sua estréia no longa. A estética é
a de Jia Zhang-ke (Plataforma, mas principalmente
Prazeres Desconhecidos) e a homenagem é
a colocação de uma motocicleta que morre
e, no meio da estrada não consegue mais dar a
partida (penúltimo plano de Prazeres Desconhecidos).
Não que devamos culpar previamente Passagens
por ser uma cópia, uma estética de segunda
mão. Claramente ele parece querer desenvolver
alguma coisa para além disso. E, em todo caso,
não é a simples estética emprestada
que faz do filme um projeto limitado; é acima
de tudo a maneira como uma maestria precoce parece fechar
seu filme dentro de um universo plácido dos signos,
todos controlados demais, domesticados e absolutamente
autoconscientes de sua significação, em
contraposição à selvageria histórica
e artística dos filmes de Jia. É aí
que a comparação se faz necessária
e Passagens perde.
Passagem para a legalidade. Ao contrário dos
três primeiros filmes de Jia Zhang-ke (Xiao
Wu, seu primeiro, ainda permanece inexibido no país
em festivais), todos clandestinos, Passagens
é um filme produzido segundo os trâmites
do governo oficial. A metáfora é fácil,
mas a tela confirma: as imagens do filme não
deixam de reproduzir uma certa submissão didática
aos preceitos do governo, um certo espírito de
bedel que paira sobre a cabeça de seus personagens,
a ponto às vezes de servir como propaganda institucional
pura saída da boca dos protagonistas ("Nós
devemos voltar pra escola e fazer o vestibular, só
estudando teremos mais chances para o futuro").
Mais uma vez, o processo de parasitagem é feito
mais para explicar do que para confundir, mais para
assentar do que para instalar fluxos. Ao no future
de Prazeres Desconhecidos, Passagens parece
querer acrescentar o capítulo final de esperança
que diz some future.
Tirando, no entanto, os lados institucional e parasitário
do projeto, Passagens consegue nos cativar bons
momentos de cinema. Sobretudo no começo. Inicialmente,
o que motiva a primeira viagem do casal de amigos, e
aquela que vai desencadear as outras, é um desses
empreendimentos claramente picaretas à moda Amway,
só que com cogumelos. Eles comprariam um kit,
fariam a criação, e em seguida os venderiam
para a mesma companhia a preços polpudos. Logo
que eles chegam à cidade, um dos moradores zomba
da idéia deles, dizendo com todas as letras que
trata-se da maior picaretagem. A maneira que, a partir
daí, os dois perambulam pela cidade e aceitam
entrar no jogo picareta por simples falta de perspectiva
melhor mostra a extrema penúria dos jovens adolescentes
para se estabelecerem fora do colégio: mais vale
uma esperança (que, naturalmente, vai ser frustrada)
do que um deserto completo. Nesse jogo de vai-e-vem
em que se constitui Passagens, nas idas e nos
retornos para casa, eles encontram com uma série
de personagens: uma gangue de bandidos, um mendigo louco
que cai da ponte, uma funcionária que trabalha
enganando os outros. Todos eles servem para espelhar,
de alguma forma a situação deles. Uma
vez na estrada, o caminho do jovem Si Xu vai se tornar
o mesmo do mendigo? Sua amiga se tornará a funcionária?
Entre nenhum morto e nenhum ferido, o filme, claro,
revela mais uma vez sua condição de meio-termo
e decide dividir a partilha: um volta pra casa, outro
fica na estrada.
O maior problema de Yang Chao em Passagens, um
filme que deveria ser sobre fluxos, é que o filme
parece guiar seus persongens mais do que os personagens
guiam o filme. Tudo que o filme dá em liberdade,
parece querer de volta rápido demais. Controle,
cristalização de significados, domesticação
da selvageria: em seu primeiro longa, Yang Chao faz
um filme acadêmico sobre um processo (as viagens
a esmo) que jamais poderia ser filmado dessa forma.
Falta um quê de aventura não na viagem
dos dois amigos, mas na própria mise-en-scène
de Yang, completamente despida de vertigem (chato dizer
isso do primeiro filme de alguém de talento).
O futuro dirá se ele está mais para Jia
Zhang-ke, um cineasta que ele certamente admira, ou
para Zhang Yimou, um cineasta cujo percurso ele parece
fadado a repetir.
Ruy Gardnier
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