PASSAGENS
Yang Chao, Lu cheng, China, 2004

O primeiro longa-metragem de Yang Chao revela talento. É o mínimo dizer, ele controla a arte dos deslocamentos lentos para a tela, filtra a poesia dos personagens através destes movimentos, e tem um senso inato de filmar paisagens e compor seu quadro. Dito tudo isso, ele tem um problema a resolver, que Passagens evidentemente não resolve. Trata-se de um filme parasita de uma outra estética, estética essa que Yang conhece e reverencia em sua estréia no longa. A estética é a de Jia Zhang-ke (Plataforma, mas principalmente Prazeres Desconhecidos) e a homenagem é a colocação de uma motocicleta que morre e, no meio da estrada não consegue mais dar a partida (penúltimo plano de Prazeres Desconhecidos).
Não que devamos culpar previamente Passagens por ser uma cópia, uma estética de segunda mão. Claramente ele parece querer desenvolver alguma coisa para além disso. E, em todo caso, não é a simples estética emprestada que faz do filme um projeto limitado; é acima de tudo a maneira como uma maestria precoce parece fechar seu filme dentro de um universo plácido dos signos, todos controlados demais, domesticados e absolutamente
autoconscientes de sua significação, em contraposição à selvageria histórica e artística dos filmes de Jia. É aí que a comparação se faz necessária e Passagens perde.

Passagem para a legalidade. Ao contrário dos três primeiros filmes de Jia Zhang-ke (Xiao Wu, seu primeiro, ainda permanece inexibido no país em festivais), todos clandestinos, Passagens é um filme produzido segundo os trâmites do governo oficial. A metáfora é fácil, mas a tela confirma: as imagens do filme não deixam de reproduzir uma certa submissão didática aos preceitos do governo, um certo espírito de bedel que paira sobre a cabeça de seus personagens, a ponto às vezes de servir como propaganda institucional pura saída da boca dos protagonistas ("Nós devemos voltar pra escola e fazer o vestibular, só estudando teremos mais chances para o futuro"). Mais uma vez, o processo de parasitagem é feito mais para explicar do que para confundir, mais para assentar do que para instalar fluxos. Ao no future de Prazeres Desconhecidos, Passagens parece querer acrescentar o capítulo final de esperança que diz some future.

Tirando, no entanto, os lados institucional e parasitário do projeto, Passagens consegue nos cativar bons momentos de cinema. Sobretudo no começo. Inicialmente, o que motiva a primeira viagem do casal de amigos, e aquela que vai desencadear as outras, é um desses empreendimentos claramente picaretas à moda Amway, só que com cogumelos. Eles comprariam um kit, fariam a criação, e em seguida os venderiam para a mesma companhia a preços polpudos. Logo que eles chegam à cidade, um dos moradores zomba da idéia deles, dizendo com todas as letras que trata-se da maior picaretagem. A maneira que, a partir daí, os dois perambulam pela cidade e aceitam entrar no jogo picareta por simples falta de perspectiva melhor mostra a extrema penúria dos jovens adolescentes para se estabelecerem fora do colégio: mais vale uma esperança (que, naturalmente, vai ser frustrada) do que um deserto completo. Nesse jogo de vai-e-vem em que se constitui Passagens, nas idas e nos retornos para casa, eles encontram com uma série de personagens: uma gangue de bandidos, um mendigo louco que cai da ponte, uma funcionária que trabalha enganando os outros. Todos eles servem para espelhar, de alguma forma a situação deles. Uma vez na estrada, o caminho do jovem Si Xu vai se tornar o mesmo do mendigo? Sua amiga se tornará a funcionária? Entre nenhum morto e nenhum ferido, o filme, claro, revela mais uma vez sua condição de meio-termo e decide dividir a partilha: um volta pra casa, outro fica na estrada.

O maior problema de Yang Chao em Passagens, um filme que deveria ser sobre fluxos, é que o filme parece guiar seus persongens mais do que os personagens guiam o filme. Tudo que o filme dá em liberdade, parece querer de volta rápido demais. Controle, cristalização de significados, domesticação da selvageria: em seu primeiro longa, Yang Chao faz um filme acadêmico sobre um processo (as viagens a esmo) que jamais poderia ser filmado dessa forma. Falta um quê de aventura não na viagem dos dois amigos, mas na própria mise-en-scène de Yang, completamente despida de vertigem (chato dizer isso do primeiro filme de alguém de talento). O futuro dirá se ele está mais para Jia Zhang-ke, um cineasta que ele certamente admira, ou para Zhang Yimou, um cineasta cujo percurso ele parece fadado a repetir.


Ruy Gardnier